Will Eisner, um escolhido (1)

Will Eisner, um escolhido (1)


Em Um Contrato com Deus (o resto do título perdeu-se na edição portuguesa), o autor oferece-nos evocações infanto-juvenis da vivência num prédio do Bronx, na ressaca da Grande Depressão de 1929.


Filho de imigrantes judeus, nado e criado no Bronx, Will Eisner (1917-2005) é um dos nomes maiores da 9ª Arte, sendo-lhe atribuído a cunhagem do termo graphic novel (novela ou romance gráfico). Enquanto autor, o longo percurso é marcado pela criação de Sheena, Rainha da Selva (1937), uma versão feminina de Tarzan, e, principalmente, The Spirit, publicado entre 1940 e 1952, um esplêndido policial de que falaremos em breve, que firmou Eisner como um autor de primeiríssima água. Após um período dilatado de afastamento da BD comercial, em 1978 publica um conjunto de quatro narrativas, Um Contrato com Deus e Outras Histórias de um Prédio, o livro que aqui nos traz.

Entre os comics infantis, as sagas de super-heróis exploradas à outrance e uma resposta underground e satirizante, havia na América pouco ou nenhum espaço para uma forma de expressão madura, não obstante nomes como Winsor McCay (Little Nemo), Harold Foster (Príncipe Valente) ou Charles M. Schulz (Peanuts), autores cujo génio fazia com que as respectivas obras atravessassem as fronteiras espessas dos quadradinhos. Eisner tinha consciência da especificidade da arte sequencial, que não se confundia com qualquer outra, começando assim a explorar uma forma de comics literários, até então quase um oxímoro, como salienta num prefácio de 2004. Através dela tudo podia dizer-se, como num filme ou um romance, na sua gramática própria.

Em Um Contrato com Deus (o resto do título perdeu-se na edição portuguesa), o autor oferece-nos evocações infanto-juvenis da vivência num prédio do Bronx, na ressaca da Grande Depressão de 1929. Um prédio, como um paquete de longo-curso ou até uma composição num caminho-de-ferro continental, é um habitat extraordinário para a criação literária, como se sabe, uma mina para quantos observam e trabalham o comportamento humano. E ele aí está, cru e humaníssimo a desfilar diante dos olhos. Na história que dá título ao livro, Frimme Hersch era um rapaz de tal modo altruísta que os aldeões vizinhos julgavam-no um escolhido de Deus. E assim, após mais um pogrom nessa Santa Mãe Rússia que periodicamente se dedicava a massacrar judeus, aqueles quotizam-se e enviam-no para a América. Antes, Frimme fixara na pedra um contrato com a divindade, em que se comprometia a dedicar a vida ao Bem. Um dia, já no Bronx, uma menina recém-nascida é depositada à sua porta, acomodada numa caixa de laranjas. Um sinal, certamente, e Frimme cria-a extremosamente como filha, até que uma doença arrebata-a, na flor da idade. O homem faz então a mesma pergunta que tantos judeus dirigiram ao longo da História à cruel potestade, da expulsão e conversão forçada nos reinos peninsulares, passando pelo suplício do Capitão Dreyfus, ao limiar das câmara de gás: “Se Deus exige que os homens honrem os seus compromissos / não está ele também sob compromisso??”. Eisner perdera a única filha, de dezasseis anos; a agonia de Hersch é a sua, com um final perturbador. Mas o encantamento não acaba aqui: na próxima semana haverá mais Eisner.

Um Contrato com Deus

Texto e Desenho Will Eisner

Editora Levoir, Lisboa, 2015

 

BDTECA

 

ABECEDÁRIO
P, de Peanuts (Charles M. Schulz, 1950).
Um grupo de crianças do Middlewest norte-americano, conhecidas no mundo inteiro graças à sensibilidade de um autor cujo alter ego infantil, é cheio de insegurança e vontade desajeitada de ser querido, para impaciência tantas vezes do resto da malta. Mas, ao fim de todo este tempo e desde sempre, “nós amamos-te, Charlie Brown!”

LIVROS
Os Anos de Ouro de Mickey – 1952-1954, por Bill Walsh e Floyd Gottefredson.
Um sósia de Mickey engana toda a gente, incluindo o Coronel Cintra, e comete uma série de crimes. Só não enganou Pluto, que mantém aprisionado. O volume inclui ainda as histórias A Cidade dos Autómatos, O Sapato Mágico e O Gorila Civilizado (Panini). 

L’Île d’Olm, de Marc Jondot. Um dia, a morte visita Arthur, um rapaz sonhador que trabalha para o velho tio, sempre mergulhados no livros. O emissário da terra da verdade, ainda inexperiente, convida Arthur a segui-lo até à ilha de Olm, onde encontrará resposta para todas as suas dúvidas. Uma BD fantástica, no duplo sentido do termo (Mosquito).