Depois de Contos Completos, Não Posso Nem Quero, Os Nossos Desconhecidos é a terceira coletânea de contos de Davis publicada pela Relógio D’Água. Ao todo são 144 contos aleatoriamente interligados, onde não falta a habitual ironia da autora, nem a sua aprimorada argúcia em repescar do quotidiano pequenos gestos, prontos a provocar a mais prazerosa risada ou a convocar o leitor para uma reflexão mais demorada.
Lydia Davis (n. 1947) decidiu que este livro, Os Nossos Desconhecidos (2023) só iria estar disponível em livrarias independentes, em bibliotecas e na Bookshop.org, um site criado para ajudar as livrarias tradicionais. Esta decisão prendeu-se com a preocupação de Davis com a posição de destaque que a Amazon no setor livreiro. Este foi o primeiro livro publicado pela Bookshop.org sob a chancela Bookshop Editions, com o objetivo de voltar a dar o devido protagonismo às livrarias de bairro.
A escritora é uma observadora acutilante de tudo o que a rodeia. Do que se move à sua volta, e do que a faz mover interiormente. É uma observadora de pássaros, de desconhecidos, de uma tradicional festa de bairro, de um turista, de uma empregada de loja, de um dançarino de sapateado reformado, de um fotógrafo itinerante, de um gato laranja numa escada de incêndio, de uma vegetariana a usar um colar cervical, de uma desconfiada governanta alemã, de um homem de pé ao telemóvel junto a uma sinagoga, de duas mulheres sentadas num sofá de um salão de hotel.
Chelsea Leu considera que “uma história de Lydia Davis, tal como a conhecemos ao longo de cinco décadas e sete coleções, é um feito de omissões. Muitas vezes, não mais do que uma página, às vezes disposta como poesia, captura alguma situação quotidiana com quase todo o contexto eliminado, de modo que, livre de qualquer lugar ou tempo definido, torna-se carismaticamente estranha”.
Às vezes o leitor exaspera-se perante tanta estranheza e aleatoriedade. Sente-se em desespero como se chegasse a um certo ponto sem saber como ali foi parar. É como se chegasse e já estivesse a meio de um filme, de uma zanga, de uma sala de jantar a abarrotar de gente que nunca viu, ou a chegar do nada a alguma conclusão. Exaspera-se porque está sempre à espera de que o raciocínio da narradora o guie e acompanhe e que termine em algo preciso, lógico e acertado, mas a verdade é que quase sempre culmina em algo despropositado ou acidental. E o leitor sente-se perdido. É como se desse por si diante de uma ratoeira de perguntas de escolha múltipla, onde todas as possíveis respostas se revelam falsas.
Em O Artista de Palestras, a narradora mostra-se grande fã de um autor. Anda embrenhada a ler uma palestra que ele deu em Filadélfia. Ao ler essa palestra sente que consegue ouvi-lo, embora nunca tenha escutado a sua voz. Quando finalmente tem a oportunidade de o conhecer, cria-se uma grande tensão. Porém, no final ela não vai poder trocar uma única palavra com ele. Essa tensão é o que mais alimenta as suas narrativas. “Ando a ler isto no banho, e, mesmo que não estivesse no banho, creio que há uma certa intimidade em ler algo escrito por alguém que se interessa pela escrita, em particular uma palestra que ele próprio deu uma vez. Algum tempo depois, estou numa festa e vejo o autor da palestra. Debruça-se por entre várias pessoas para me apertar a mão, segurando com a outra mão as duas lapelas do seu casaco de bombazina e sorrindo com a simpatia de quem acaba de chegar a uma festa, mas sem falar. Não fala, e até ao fim da noite estou demasiado longe para o conseguir ouvir e não o vejo falar, de modo que para mim, durante essa parte da noite, ele permanece mudo. Mas, ao regressar a casa, o livro continua aberto em cima do rebordo da banheira, e aí, embora um pouco menos simpático do que em pessoa, um pouco mais sério, ele fala demoradamente e sem interrupções.”
Lydia Davis é perita a recriar a partir de uma cena banal, um qualquer incidente, curiosidade, uma palestra como a de Filadélfia acima citada, ou alguma cena conjugal, algo que muito facilmente, e em poucas linhas, se pode converter numa gargalhada ou num devaneio. Em A Outra Ela, a história narrada tem lugar num espaço doméstico e passa-se entre marido e mulher. Não há propriamente uma sequência de ações. Não há uma instância temporal, um início, um meio e um fim, o que é hábito na sua escrita. Há, sim, uma cena entre dois personagens relatada em sete linhas que se desmembrará como um animal vivo e a agonizar aos olhos do leitor. “Do sítio onde está, noutra parte da casa, ela ouve a voz dele no quarto, ao longe, falando-lhe suavemente, domesticamente, atenciosamente. Ele não sabe que ela não está no quarto. E então, por um momento, ela sente que existe outra ela, com ele, uma ela talvez melhor, e que ela própria é uma ela rejeitada, uma ela desprezada, ali ao fundo do corredor, muito longe do quarto onde algo agradável se passa entre os dois.”
Como esta, quase todas as suas narrativas são geralmente muito curtas, mas não é por isso que a intensidade dos seus pensamentos e das suas associações deixa de ter um vasto alcance. Mas esse grau de intensidade provoca muito frequentemente uma certa desilusão, que Davis intencionalmente procura. Ou seja, quando o leitor começa a ler uma história, entusiasma-se e convence-se de que vai ler algo brilhante e chegar a uma conclusão fantástica. Mas é dececionado uma e outra vez. Davis não procura a conclusão óbvia. Como um raciocínio matemático, ela mais que o resultado, procura os múltiplos caminhos que a levarão a um número possível. Por exemplo, em Uma Questão de Perspetiva, a narradora vê uma coisa branca a deslocar-se no ar à sua frente junto a casa e pensa que está a ter uma visão ou a presenciar alguma coisa única e nunca vista, mas não. “Pensei que fosse uma enorme borboleta branca a esvoaçar – uma borboleta branca rara! Mas era apenas uma carta registada, a passar em frente da janela na mão do carteiro.” A rara borboleta branca que ela pensava que estava a ver, mesmo antes de se dar conta que não era uma borboleta, provoca no leitor uma sensação de expectativa. De alerta. Está-se sempre em alerta em cada texto seu, mesmo que por pouco tempo, e pouco importa se no final nos sentimos defraudados. Porque essa desilusão está unicamente ligada a outra característica que é o grande suporte da sua obra: a subversão. Davis desconstrói com minúcia todos os espôndilos da anatomia narrativa. O hábito de contar uma história, destruindo a ordem estabelecida dos acontecimentos e livre de espaço e tempo, é muito seu.
A índole paródica é também uma característica muito peculiar e constante em todos os seus contos. “Com extraordinária habilidade ele está no cimo do seu escadote, a arruinar com o maior cuidado a casa mais antiga da cidade.”
O título do livro, Os Nossos Desconhecidos, tem o nome de um dos contos mais extensos que consta da terceira parte e está dividido em 11 partes. Basicamente cada um se centra numa, ou em várias pessoas que a narradora considera estranhos: os vizinhos. Os seus e de amigos seus, ou de pessoas com quem priva. “As pessoas que conheço têm hábitos que em nada se parecem com os meus. Estes hábitos surpreendem-me e, contudo, não surpreendem outras pessoas: são tomados como certos. (…) Somos semelhantes a uma família e diferentes de uma família, visto que nos juntámos como desconhecidos e formámos uma aliança temporária, enquanto os membros de uma família muitas vezes se tornam desconhecidos e estão ligados apenas pelo sangue.”
Ao longo destes 11 textos, os vizinhos da narradora ou de amigos seus, vão-se surpreendentemente transformando. Há uns que se transformam em amargos inimigos e outros que, do nada, passam de insuportáveis a imprescindíveis. A passagem de uma retaliação a um sorriso, de um insulto a uma receção calorosa de boas-vindas está suspensa de forma periclitante numa linha divisória invisível. Esta linha divisória invisível funciona em Davis como uma espécie de vedação elétrica que a todo o momento o leitor deseja trepar.