E assim vamos, embalados nas nuvens…


Já nos incêndios florestais de 2017 e 2018 que mostraram a “injustiça” de uma parte do país sem Estado que o protegesse, também os cidadãos foram os culpados.


Estrepsíades, um ateniense abastado, proprietário de vinhas, rebanhos, colmeias e olivais, descurara a gestão da sua fortuna e estava crivado de dívidas. Atormentado com o assédio dos prestamistas, e perante a recusa das feiticeiras da Tessália, temerosas de castigo dos deuses, em alterarem as fases da lua que regulavam as datas dos pagamentos, recorreu aos serviços de uma escola de filósofos sofistas que, mediante pagamento, exerciam a arte da retórica como forma de vencer litígios ou ludibriar os credores. Assim principia Aristófanes a sua comédia, As Nuvens.    

Para os sofistas era retórica que determinava a verdade e esta era a que melhor se prestava a ser manipulada, explorando ao limite a sua qualificação como “justa” ou “injusta” e manobrando artificiosamente os conceitos para tornar vencedoras as causas que defendiam. Esquecendo por momentos a sorte de Estrepsíades, e saltando 2500 anos, também por cá verdade e justiça são cada vez mais determinadas pelos sofistas que enxameiam os ministérios da nação. 

Injusta era a oposição ideológica do Governo em negociar com os privados o apoio contra a covid, o que provocou considerável número de vítimas por falta de cuidados médicos; mas quando o avolumar da pandemia impôs a aceitação da oferta estrangeira, só entendível se esgotada a capacidade nacional, logo tal resistência se tornou num “justo processo de negociação que nunca trouxe qualquer problema”. Excepto, claro, para quem faleceu sem assistência, mas logo “justos” e convenientes estudos vão normalizando causas e número de falecimentos.“Injusto” foi o desconfinamento no Natal e Ano Novo; todavia, conhecidas as consequências, logo a verdade sofista tornou “justa” a decisão, culpando os cidadãos, suprema ironia, por terem desconfinado, e inocentando o governo cuja decisão radicou numa justa ignorância da perigosidade das novas estirpes covídicas, mesmo que toda a Europa já as conhecesse, uma “injustiça” que só calhou a Portugal. 

Também na falta de vacinas contra a gripe comum, a verdade sofista ilibou o governo por falhar o aprovisionamento, responsabilizando quem logrou vacinar-se pela “injustiça” sofrida por quem não o conseguiu. Já nos incêndios florestais de 2017 e 2018 que mostraram a “injustiça” de uma parte do país sem Estado que o protegesse, também os cidadãos foram os culpados. Os cidadãos que não limparam as matas, o SIRESP, a trovoada seca, o downburst, tudo serviu para a “verdade” sofista inocentar o falhanço governamental.  

Antes e agora, é a “justa causa” da neutralidade carbónica que esconde uma “injusta” política energética geradora dos custos mais elevados da Europa e esquece consequências económicas e sociais e milhares de desempregados, de Sines a Matosinhos. Como também os tão proclamados “justos” apoios à perda de rendimentos devida à covid, se transformaram na “injustiça” de não chegarem aos destinatários, bem confirmada nas quebras das execuções orçamentais.  

Foi graças à retórica sofista que Estrepsíades se livrou dos seus credores, por “injustos” serem os empréstimos que estimularem a sua má gestão. Mas também logo dela foi vítima quando o perdulário Fidípides, seu filho, considerou “justo” espancar o pai para obter parte da herança, pois “injusto” seria não a gozar de imediato. E de “justiça” em injustiça, foi em nome da “justiça” que, desesperado, Estrepsíades incendiou a escola sofista que lhe restituíra a fortuna. 

Para Aristófanes era nas nuvens que se geravam as grandes trovoadas e tempestades, daí o nome da peça, grandiosa metáfora das consequências trágicas dos procedimentos astuciosos, inversores dos valores e da verdade. Coincidentemente, ainda Aristófanes vivia e Atenas perdia a guerra com Esparta. É que, lá como cá, sempre que tais condutas se expandem e o povo as consente, da comédia inicial podem resultar em tragédia. 

Economista e Gestor – pcardao@gmail.com

E assim vamos, embalados nas nuvens…


Já nos incêndios florestais de 2017 e 2018 que mostraram a “injustiça” de uma parte do país sem Estado que o protegesse, também os cidadãos foram os culpados.


Estrepsíades, um ateniense abastado, proprietário de vinhas, rebanhos, colmeias e olivais, descurara a gestão da sua fortuna e estava crivado de dívidas. Atormentado com o assédio dos prestamistas, e perante a recusa das feiticeiras da Tessália, temerosas de castigo dos deuses, em alterarem as fases da lua que regulavam as datas dos pagamentos, recorreu aos serviços de uma escola de filósofos sofistas que, mediante pagamento, exerciam a arte da retórica como forma de vencer litígios ou ludibriar os credores. Assim principia Aristófanes a sua comédia, As Nuvens.    

Para os sofistas era retórica que determinava a verdade e esta era a que melhor se prestava a ser manipulada, explorando ao limite a sua qualificação como “justa” ou “injusta” e manobrando artificiosamente os conceitos para tornar vencedoras as causas que defendiam. Esquecendo por momentos a sorte de Estrepsíades, e saltando 2500 anos, também por cá verdade e justiça são cada vez mais determinadas pelos sofistas que enxameiam os ministérios da nação. 

Injusta era a oposição ideológica do Governo em negociar com os privados o apoio contra a covid, o que provocou considerável número de vítimas por falta de cuidados médicos; mas quando o avolumar da pandemia impôs a aceitação da oferta estrangeira, só entendível se esgotada a capacidade nacional, logo tal resistência se tornou num “justo processo de negociação que nunca trouxe qualquer problema”. Excepto, claro, para quem faleceu sem assistência, mas logo “justos” e convenientes estudos vão normalizando causas e número de falecimentos.“Injusto” foi o desconfinamento no Natal e Ano Novo; todavia, conhecidas as consequências, logo a verdade sofista tornou “justa” a decisão, culpando os cidadãos, suprema ironia, por terem desconfinado, e inocentando o governo cuja decisão radicou numa justa ignorância da perigosidade das novas estirpes covídicas, mesmo que toda a Europa já as conhecesse, uma “injustiça” que só calhou a Portugal. 

Também na falta de vacinas contra a gripe comum, a verdade sofista ilibou o governo por falhar o aprovisionamento, responsabilizando quem logrou vacinar-se pela “injustiça” sofrida por quem não o conseguiu. Já nos incêndios florestais de 2017 e 2018 que mostraram a “injustiça” de uma parte do país sem Estado que o protegesse, também os cidadãos foram os culpados. Os cidadãos que não limparam as matas, o SIRESP, a trovoada seca, o downburst, tudo serviu para a “verdade” sofista inocentar o falhanço governamental.  

Antes e agora, é a “justa causa” da neutralidade carbónica que esconde uma “injusta” política energética geradora dos custos mais elevados da Europa e esquece consequências económicas e sociais e milhares de desempregados, de Sines a Matosinhos. Como também os tão proclamados “justos” apoios à perda de rendimentos devida à covid, se transformaram na “injustiça” de não chegarem aos destinatários, bem confirmada nas quebras das execuções orçamentais.  

Foi graças à retórica sofista que Estrepsíades se livrou dos seus credores, por “injustos” serem os empréstimos que estimularem a sua má gestão. Mas também logo dela foi vítima quando o perdulário Fidípides, seu filho, considerou “justo” espancar o pai para obter parte da herança, pois “injusto” seria não a gozar de imediato. E de “justiça” em injustiça, foi em nome da “justiça” que, desesperado, Estrepsíades incendiou a escola sofista que lhe restituíra a fortuna. 

Para Aristófanes era nas nuvens que se geravam as grandes trovoadas e tempestades, daí o nome da peça, grandiosa metáfora das consequências trágicas dos procedimentos astuciosos, inversores dos valores e da verdade. Coincidentemente, ainda Aristófanes vivia e Atenas perdia a guerra com Esparta. É que, lá como cá, sempre que tais condutas se expandem e o povo as consente, da comédia inicial podem resultar em tragédia. 

Economista e Gestor – pcardao@gmail.com