Aurora Negra. A casa é delas

Aurora Negra. A casa é delas


Cleo Tavares, Isabél Zuaa e Nádia Yracema levam ao D. Maria II um espetáculo em que, como mulheres negras, reclamam o direito à construção das suas narrativas.


Cleo Tavares, Isabél Zuaa, Nádia Yracema. Três mulheres, três atrizes, três mulheres atrizes negras num palco. O adjetivo é o que aparece quase sempre nas descrições das personagens que interpretam: mulher negra. Não aqui: este espetáculo escreveram-no elas próprias. Aqui dizem-se elas negras, pelas suas palavras, dizem-se pretas. “I’m so black. Black, black, black”, cantam numa das cenas de Aurora Negra, projeto com que venceram a segunda edição da bolsa de criação Amélia Rey Colaço e que se estreia esta noite no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, como espetáculo de abertura de temporada da Sala Estúdio.

E continuam, num rolo de agressões, de preconceitos: “I’m so black que sou a primeira a acordar e a última a deitar, I’m so black que me chamam ‘preta, mas bonita, mas inteligente, mas educada’. Eu sou tão preta que quando entra uma batida todos se afastam para eu dançar”. Tão pretas que delas não se esperava que estivessem no palco, mas sim a limpá-lo. “Eu sou tão preta que, quando está escuro, pedem-me para sorrir” – e sorriem e, forçando ainda o sorriso, Isabél Zuaa segue: “Eu sou tão preta, que todos assumem que não nasci cá”. Dizem Cleo Tavares e Nádia Yracema que elas não. Mas Zuaa sim. “Ninguém sai. A casa é nossa”.

A casa é delas, sim, a casa que constroem neste espetáculo. Como este palco, palco a que sobem, que usam, que tomam para, por uma vez, contar histórias que sejam as suas. Em crioulo, em tchokwe e em português, o português que não entendem continuar, mais de quatro décadas passadas depois da independência dos países onde têm as suas origens, a ser língua oficial. Usando as suas vozes, as suas palavras, os seus corpos, as suas histórias, mesmo que aqui e ali ficcionadas. Mais as músicas da infância e as de outras partes da vida, registos sonoros e fílmicos criados (como as músicas que as próprias escreveram com composição de Carolina Varela, Yaw Tembe) de raiz para este espetáculo. Registos que juntam às suas as vozes de crianças, das suas mães, das outras mulheres negras que não sendo suas mães também foram, serão sempre:_as mulheres negras que ajudaram a abrir o caminho (ainda apertado) que lhes permite hoje estarem aqui. Estar aqui e a representar, por uma vez, personagens que as representam, as personagens que mais as representam: elas próprias. “Cada um representa-se a si”, sublinha Zuaa em conversa com o i. “Não representamos todas as mulheres negras como uma atriz branca não representa todas as mulheres brancas”.

E se fosse Maria da glória? e se fôssemos nós? Mas vamos a este aqui, de que em Aurora Negra, que além de outras cidades portuguesas tem já estreias confirmadas no Brasil e em Cabo Verde. Iniciam-no com uma proposta de aliança a uma rainha: Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga. Sim, essa mesma nascida a 4 de abril de 1819 no Rio de Janeiro, Brasil. Essa que conhecemos por D. Maria II, a que dá o nome a esta casa, esta mesma casa. “Viemos propor-te uma aliança. Não sei, não sabemos, se poderás fazer alguma coisa, mas antes de te retraíres, de te agarrares àquilo que sempre conheceste e te foi ensinado, peço-te que ouças. Estás a ouvir-nos? Imagina que estás em tua casa com os teus filhos e de repente, sem que possas ripostar, mudar o curso das coisas, fazer-te ouvir, eles te são retirados sem que possas voltar a reclamá-los como teus”, diz-lhe Yracema.

Continua a dirigir-se a D. Maria, mas fala para cada um de nós. Pedem-lhe que imagine o seu corpo a atravessar o Atlântico entre todos os corpos dos escravos, “corpos cheios de dor, cheios de trauma”: “Imagina o que seria de ti, dos teus filhos, dos teus netos e dos teus bisnetos se esta fosse a tua história?” Não se imagina.

“Não conheces o lugar para onde te trouxeram, não conheces aqueles com quem partilhas um espaço exíguo: nem os mortos nem os ainda vivos. Imagina, Maria da Glória, que a partir desse momento a tua vida não conhece outra coisa se não sujeição forçada? O que seria feito então do teu veredicto: ’Se morrer, morrerei no meu posto’? O que seria feito da ‘Boa Mãe’, da ‘Educadora’? Educares quem se não tens quem te ouça? Existem problemas que são iguais desde a nossa chegada aqui, no século XII, até hoje, 2020, Maria da Glória”.

Sobre o que se perde do que não fica traduzido nesta aurora, encolhem os ombros. Assim foi também para as mulheres e homens arrastados para lá do Atlântico forçados a uma vida, a uma terra que, essa não, não era a sua.