Hugo Carvalheira Neves. Caderno de campo poético

Hugo Carvalheira Neves. Caderno de campo poético


“Certa Parentela”, livro de estreia de Hugo Carvalheira Neves, reúne poemas onde a juventude é afirmada enquanto tal, reclamando para si um tom menor. Erros, desacertos, sobras, são o que pretende que permaneça deste livro que se assemelha a um caderno de campo, onde o poeta vai anotando, fazendo variações, roubando, contemplando, sempre em relação…


Tanto o título do livro como a epígrafe de Carlos de Oliveira que o abre – de onde o primeiro é retirado – deviam colocar-nos logo de sobreaviso. “Certa Parentela” (ed. do lado esquerdo, Julho de 2019), livro de estreia de Hugo Carvalheira Neves, não pretende ser mais, e tem disso perfeita consciência, que uma certa relação que estabelece a esse conjunto de parentes, a essas afinidades a que o título alude – onde facilmente se nota a presença excessiva de Herberto Helder, objecto de diversas glosas e de “notas de rodapé”, na esperança nunca necessariamente cumprida de “alguma coisa dita/ por si própria”. Este tom menor assumido sem pudor algum, “pequeno nó que trazes/ de não ter boca alguma”, que abre para uma “pequena morte/ a dar para um baixo poema aos vinte e cinco”, aponta, nestas 80 páginas de poemas, para um momento juvenil, para uma juventude que toma consciência de si mesma – evita, em todo o rigor, a banalidade da infância, em que tantas vezes o discurso poético tende a cair. Um pouco paradoxalmente, na medida em que a juventude vem tecida desta consciência excessiva que demonstra relativamente à sua condição de sobrevindo, este conjunto de poemas sabe, como afirma Carlos de Oliveira, que “não se foge completamente a certos contextos literários, a certa parentela” – e assume-o sem qualquer pudor, sem qualquer forma de resistência. 

Se estes poemas têm o mérito de nunca cair na apropriação – nunca, em momento algum, se nota essa pretensão desprovida de pensamento que leva alguém a usar o possessivo relativamente a um qualquer poeta –, há neles qualquer coisa que recorda uma espécie de caderno de campo poético. Em número excessivo, sem dúvida (uma edição mais atenta conseguiria rasurar o ruído e tirar todo o excedente), parecem ser o trabalho de alguém que vai lendo e tirando notas – “leve nota de rodapé”, como afirma no último poema, sabendo que “em lado nenhum há clave alguma para jardim algum” –, retirando um verso ou uma palavra para trabalhar a partir daí, um tema que mede de outra forma, interrogando essa “certa parentela”, aproximando-se e tentando desviar-se um pouco. É daí que lhe vem, aliás, esse tom menor assumido, como se a juventude, tendo consciência de si própria, se soubesse imprecisa, cheia de erros, de deslizes, de defeitos: o “qualquer erro infante de percurso”, o “duro princípio”, a ideia de “pousar o pé (…)/ incerto, torto, esquerdo”, “lado mais servil do que dá contorno ao poema”, a “pequena morte” e essa outra ideia de “encheres os papéis só com começo / das coisas de perfil que não cooperam”, com “poemas que vão sendo a muita merda debaixo do tapete/ os braços esticados aos céus em emulação”. Num dos seus momentos mais interessantes, por exemplo, Hugo Carvalheira Neves recusa qualquer forma de relação de descendência relativamente aos poemas que escreve, aprofundando essa arte menor dos versos.

“e já que, segundo consta, carne da tua carne são
faz por fundar deles nenhum sentido
e afunda o que de mais fundo consegues: a caneta, o lápis, um ou dois dedos, a esferográfica menor,
faz por desentender como se semeia uma sede
e se colhe ao acaso uma outra imperceptível na onda que retorna
já que nada sabes de filhos, nem filhas, 
nem de parentela
por muito, que parece, tempo curto para saber deles
é pelo teu erro à cintura que os medes (…)”

Particularmente avesso a qualquer ideia de inspiração, a qualquer fôlego que lhe chegue de outro lugar (“os homens falam dos deuses que varrem da terra/ eu olho para os figos e não percebo nada”), esta poesia de juventude que se sabe e quer de juventude – mas não se deve desconfiar de tanto auto-conhecimento, de tamanha modéstia fingida? – pretende também encerrar-se numa recusa. Não é apenas o “nenhum sentido”, o “grande engano esse teu” do mesmo poema, ou as imagens que orbitam em torno do rasgão e de dentes cravados (“e com os dentes puxas: nome, pele, tudo”; “mas a boca, a língua/ mais nobres que qualquer engano/ e de os poder cravar em algo”) que apontam para essa recusa; há também esse “duro minério” que quer passar “de boca em boca”, ou o “trabalho inglório da carne mastigada” – que é o deles, mesmo quando explica, mesmo quando diz “olhem que aqui é estrela ou luva”, como se houvesse um mal-entendido fundamental entre o poema e quem o lê.

“e do poema da minha passagem escolho um bem duro de roerem
com um só sem superlativo mais que tudo
desse, disso
traço-lhes o laço bem incauto
contra o redil fácil que vão tecendo”

Que este poema comece por falar numa “reverência a uma fome outra de maior” e num adjectivo “colhido a saque entre os livros”, entrando assim nesta condição de caderno de campo poético composto por roubos e por variações, mostra que, na relação à tradição poética, Hugo Carvalheira Neves prefere esse lado servil, de onde se sai sem nada para mostrar, sem “aparição”, sem “espanto imaturo”, onde o pouco sabe a muito, com uma “mão cheia de cinza” – mão “outra de igual menor” relativamente aos poetas que lê, de onde só pode resultar algo da ordem do desacerto, do “canhoto”, numa referência explícita, uma de entre muitas, a Herberto Helder: do erro. O último poema, aliás, condensa esta dimensão de sobrevinda, de juventude, de iniciação também, que se vai notando um pouco ao longo do livro – é necessário realçar, igualmente, que “Certa Parentela” pretende ser um livro com princípio, meio e fim, algo que, num campo poético cheio de colecções de poemas díspares, começa a rarear.

“o teu trabalho agora é nascer
de ver o que sobra quando alguém acende a luz do quarto
ou de rompante abrem as cortinas para deixar entrar 
lux
lumen
dia perdido já a meio
saem para ele, como tu, à claridade que promete
sais tu, agora, à língua que deixaste lá atrás
e partes e repartes ao encontro da leve nota de rodapé
alguma coisa dita
por si própria
na pequena paixão que pede esse lugar.”

Se, por um lado, há qualquer coisa neste poema que aponta para a aprendizagem, para o final de um percurso, como se agora, finalizando o caderno de campo, pudesse enfim recolher as notas todas, reuni-las na sua disparidade, retirar as ideias principais e, por fim, partir para outra coisa, por outro lado, essa ideia de “sobra” acaba por ir em sentido oposto. E, de facto, todas estas notas, todos os apontamentos, todas as observações mais ou menos interessantes, pretendem ser agora lidas em busca dessa “língua que deixaste lá atrás”, os erros e desacertos que pretendem ser essa “pequena paixão” em tom menor. Resta saber, no entanto, para onde nasce esta poesia, agora que esta juventude se esgotou e o caderno de apontamentos se encontra fechado.

Uma última nota, no entanto. Sobre a poesia contemporânea costuma dizer-se – mas trata-se mais de um julgamento sumário, de uma acusação – que são mais aqueles que a escrevem do que aqueles que a lêem, querendo com isto afirmar, na realidade, que aqueles que escrevem (poesia) não lêem (poesia). Mas também se pretende assinalar, se preferirmos ser mais brandos no julgamento, que a relação à tradição poética – que fazia com que Luís Miguel Nava pudesse escrever um ensaio dedicado à presença de Sá de Miranda na poesia da segunda metade do século XX – se encontra em forte quebra ou, e esta é a minha hipótese absolutamente por provar, que uma parte daqueles que publicam poesia se limita a ler os seus contemporâneos, fazendo com que um conjunto de tropos e de vocábulos sejam repetidos sem serem interrogados (quanto mais morto, mais vivo, diria Freud). Em todo o caso, “Certa Parentela” parece situar-se num movimento inverso, de pura subsunção a outras vozes – na esperança, certa ou incertamente, de “alguma coisa dita/ por si própria”. E este gesto inusitado é suficientemente excêntrico para dele haver notícia.