Alfama. Moradores trocam roupa por publicidade no estendal

Alfama. Moradores trocam roupa por publicidade no estendal


As opiniões sobre publicidade nos estendais dos moradores de Alfama dividem-se. Uns acham que mais dinheiro ao final do mês é sempre bom, mas outros dizem que é um aproveitamento por parte das empresas.


Renda, alimentação, medicamentos e uma reforma que não chega para cobrir as despesas. Esta é a realidade da maioria das pessoas que ainda vive em Alfama, daquelas cujas suas casas ainda não foram substituídas pelo famoso alojamento local. Maria Carminda Santos faz parte desse grupo que vive no coração de um dos bairros mais antigos de Lisboa e, até amanhã, a fachada do prédio onde mora está apetrechada com publicidade do supermercado Minipreço. Parece roupa que acabou de sair da máquina, mas não, é mesmo uma nova forma de publicitar qualquer coisa.

Desde a passada quarta-feira, as molas dos estendais do primeiro, segundo e terceiro andares daquele prédio penduram publicidade a um produto em promoção e ao aniversário daquela cadeia de supermercado. “Não me ocupa espaço nenhum, eles perguntaram se podiam pôr ali e eu deixei”, contou Maria Carminda. Não sabe quanto é que vai ganhar com isso, mas garante que tudo o que vier é bom. A mulher de 67 anos vive naquela casa há 66 anos, praticamente desde que nasceu, e não quer sair dali. “Pago 200 euros de renda, mas o senhorio não aumenta, porque sabe as minhas dificuldades, sabe o que tenho passado”. Quando fala de dificuldades, Maria Carminda refere-se ao filho que está preso a uma cadeira de rodas e que, apesar de ter 31 anos, depende da mãe. “Mas ele está a tirar um curso de informática no Lumiar, é inteligente”, diz com orgulho.

O projeto “Estende a renda”, desenvolvido pela agência NOSSA em parceria com a Associação do Património e População de Alfama (APPA) ainda é bebé. Esta é a primeira semana em que se estende publicidade nos estendais de Alfama e a maior parte das pessoas ainda não percebeu muito bem o objetivo, nem quanto vai lucrar. Afinal, é publicidade que tem de ser paga. José Morais, outro morador do bairro de Alfama, explica bem o conceito do projeto: “Isto é uma publicidade ao aniversário do supermercado, vai estar aqui uma semana e eles [supermercado, APPA e agência NOSSA] querem alertar para os problemas do bairro”. Sobre os problemas, entenda-se as rendas excessivas e a pressão que existe para que os velhos inquilinos abandonem as casas. Também não sabe quanto é que vai ganhar, “mas se for 10 ou 20 euros”, diz que não quer mais publicidade no seu estendal. “Não posso estender aqui a roupa, se for menos do que 20 euros, não vale a pena”, disse José Morais, acrescentando que “os supermercados gastam milhares de euros em publicidade na rua e na televisão, por isso, para terem no estendal também têm de pagar mais”.

Apesar de a maior parte dos moradores que aceitaram publicidade nos estendais não saber quanto é vai ganhar com isso, Maria de Lurdes Pinheiro, presidente da APPA, garantiu ao i que todos os moradores foram informados. No final do período experimental, as 12 famílias selecionadas pela associação vão receber dois vales no valor de 25 euros cada um para utilizarem no supermercado Minipreço. Esta informação foi, aliás, também confirmada ao i pelo gabinete de comunicação do Minipreço.

“Escolhemos as famílias mais carenciadas para receberem os vales, falámos com elas, porque conhecemos o bairro e as pessoas que ali vivem, mas não sabemos se depois de quarta-feira vão continuar a receber publicidade”, explicou Maria de Lurdes Pinheiro, acrescentando que o projeto é experimental e que não há qualquer tipo de vínculo com as empresas para obrigar os moradores a pendurar promoções por mais tempo.

O problema das rendas excessivas e dos despejos é matéria do dia em Alfama. Sobre despejos, Maria Luísa fala na primeira pessoa, mas como resistente. Aderiu ao projeto promovido pela APPA, paga 37 euros de renda, vive sozinha, tem 87 anos e, no prédio de três andares, é a única moradora – o resto é alojamento local. “O senhorio quer mandar-me embora, já me ofereceu dinheiro, mas eu não preciso de dinheiro, preciso de saúde”, disse Maria Luísa.

Para já, o “estende a renda” abrange 12 famílias, mas há mais gente que também quer participar. O supermercado responsável pela publicidade que fica mais perto do bairro de Alfama fica na Graça, a cerca de um quilómetro. Lá, o i encontrou uma senhora que perguntava ao gerente da loja como podia fazer para se inscrever no projeto. “Moro em Alfama e se posso receber vales para gastar aqui, então também quero”, disse a mulher.

Há quem ache a ideia “inarrável” Se para uns dá jeito e para outros tanto faz, há quem não concorde com a publicidade de forma quase gratuita feita numa zona histórica da cidade de Lisboa. Contactado pelo i, Bruno Palma, do Movimento Fórum Cidadania Lisboa e filho de Alfama, considera que pendurar publicidade nas cordas destinadas à roupa é uma forma de descaracterizar os bairros mais antigos de Lisboa.

“Alfama e Lisboa precisam de pessoas que gostem delas, acho inqualificável, porque isto é um aproveitamento comercial”, referiu. Bruno Palma recordou ainda o ano de 2011, altura em que a freguesia – presidida por Filipe Pontes – se opôs à publicidade de marcas de cerveja nas varandas dos moradores do bairro que, aliás, mais tarde foram colocadas e ainda hoje permanecem.

O membro do Movimento Fórum Cidadania Lisboa dá ainda o exemplo do país vizinho, onde os bairros históricos permanecem “imaculados”. “A isto chama-se poluição”, acrescenta.

As opiniões dividem-se, a campanha termina na quarta-feira e, por agora, os moradores esperam pelos vales que podem utilizar no supermercado.