Steven Pinker. Os piores anjos e a nossa natureza

Steven Pinker. Os piores anjos e a nossa natureza


Em “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, Steven Pinker defende que a humanidade está cada vez menos violenta e que devemos isso ao Estado moderno e ao progresso tecnológico e científico possibilitados pela grande revolução política da época moderna. Será mesmo assim?


Qualquer pensamento político digno de análise inclui na sua raiz uma antropologia política, um posicionamento central acerca daquilo que somos: a nossa tendência natural é para o conflito ou para a cooperação? Ou em forma de hipótese: quando desprovidos das instituições de poder o nosso instinto regressa a uma ancestralidade animalesca ou, pelo contrário, reproduz as mesmas lógicas de cooperação e convivência que fundam essas instituições?

A resposta a esta questão desata todo um complexo de alternativas relativamente ao papel do poder e à sua função de restringir ou alargar aquilo que, à falta de expressão mais adequada, podemos chamar liberdade natural. Contudo, a resposta propriamente dita alicerça-se em dois grandes filões do pensamento político ocidental. Por um lado, a tradição aristotélica. Por outro, a revolução hobbesiana, que veio dar nome emblemático a uma antropologia política que já se intuía no pensamento de autores como Xenofonte, Tucídides, Santo Agostinho e, mais próximo de Hobbes, Maquiavel. Procurando simplificar, o que se discute é se aquilo a que chamamos política tem no seu fundamento o desenvolvimento da natureza humana ou se, pelo contrário, corresponde a um triunfo sobre essa natureza ou talvez a uma arte de a domesticar num mundo caótico, na versão de Maquiavel n’O Príncipe.

Serve isto para se compreender que Steven Pinker, especialista em linguística e ciências cognitivas e autor de O Instinto da Linguagem, neste seu segundo livro a ser editado em português, se coloca claramente dentro do filão hobbesiano. Na sua opinião, o pensamento do autor do Leviatã está no centro nevrálgico de um processo de transição, ou melhor, de viragem na tendência conflitual da natureza humana, coincidente com a ascensão do racionalismo e, principalmente, do Estado moderno, forjado entre o final do período medieval e as ruínas da Guerra dos Trinta Anos.

Esta suposta viragem corresponde à proposta mais polémica e desafiante deste livro: que nos últimos séculos e, mais significativamente, a partir do período pós-Segunda Guerra Mundial, se verificou um decréscimo significativo da violência entre os homens. Identificando um conjunto de tendências, a que Pinker chama exactamente os melhores anjos da nossa natureza (expressão furtada ao discurso inaugural de Lincoln), e que acabam por se reconduzir maioritariamente ao nascimento e ascensão do Estado moderno, ao triunfo das ideias do iluminismo, ao monopólio do direito de punir e ao progresso científico, económico e social posterior à revolução industrial, o autor propõe que o processo civilizacional possibilitou a vitória sobre o instinto animalesco e a competição pela sobrevivência, potenciado pelo desenvolvimento do aparelho do Estado e que se traduziu numa redução significativa da violência e do conflito.

O que Pinker conclui em Os Anjos Bons da Nossa Natureza, e que de acordo com o autor é relativamente surpreendente numa época em que a violência explícita tem uma presença cada vez mais significativa nos meios de comunicação, é que estamos progressivamente menos violentos e que a probabilidade de perecermos vítimas dessa violência é hoje consideravelmente menor que no passado. Combinando o pensamento de uma série de autores e uma análise das estatísticas de mortes violentas, Pinker sugere que o progresso civilizacional triunfou sobre o império da violência, numa tendência iniciada com o período moderno mas mais visível nos últimos sessenta anos.

 

Tradução: Miguel Serras Pereira 
Nº de Páginas: 1016
Preço: 27€
Edição: Relógio D'Água
 

A narrativa de Pinker, contudo, não sobrevive a um escrutínio mais apertado. Se é notável a interpretação e o destaque que dá a Hobbes, também não deixa de ser verdade que a sua leitura do autor mostra alguns equívocos. Ao contrário do que Pinker parece sugerir, a sua interpretação e análise de Hobbes não é nova. Até mesmo entre nós alguns autores, como Paulo Merêa, leram Hobbes em moldes semelhantes ou, pelo menos, compatíveis com a interpretação de Pinker. O autor falha também em compreender a dupla dimensão do estado de natureza hobbesiano. É que este é um thought experiment, ou seja, uma hipótese que pensa o homem desprovido de autoridade civil e dotado de uma liberdade natural que lhe permite qualquer acto na prossecução dos desejos, mas, por outro lado, não se limita a ser um estado em potência, devendo ser assumido como um facto histórico, isto é, como uma ameaça que pesa permanentemente sobre o homem não apenas pelas inclinações egoístas da sua natureza na ausência de poder disciplinador, mas porque em períodos históricos de ausência ou insuficiência de poder civil a autotutela rapidamente ocupa o lugar e os privilégios do poder civil, dando corpo à guerra de todos contra todos. Não é por ser composto por uma multiplicidade de corpos mortais – os homúnculos do frontispício de Abraham Bosse – que o monstro hobbesiano é um deus-mortal, é-o, antes, porque a guerra de todos contra todos não deve ser lida apenas como uma metáfora ou uma mitologia, mas como uma síntese apenas algo hiperbólica da ameaça que ininterruptamente paira sobre as fundações do Estado e da sociedade.

O que Pinker pretende fazer não é, na verdade, particularmente novo. O triunfo do Estado moderno e a disseminação do capitalismo, combinados com uma certa miopia intelectual de quem observa de perto os padrões civilizacionais do ocidente e vê o oriente algo desfocado, tornou comum um tipo de discurso, com claras reminiscências positivistas, de confiança no progresso científico e na vitória da razão sobre a contenda. Pinker é uma espécie de Fukuyama, mas com uma visão ainda mais incompreensivelmente panorâmica e com uma crença na pacificação humana capaz de sacrificar e manipular os factos históricos e os dados estatísticos que analisa em favor de uma ideia que, mesmo sendo enternecedora e optimista, é irreal. Ao mesmo tempo, a fé de Pinker na capacidade pacificadora do intelecto humano não deixa de ser curiosa num ateu declarado. Os Anjos Bons da Nossa Natureza é, nesta perspectiva, uma pura utopia. Pinker descreve o processo de evolução do Estado moderno desde os seus alicerces hobbesianos até à sua marca weberiana, a monopolização pelo Estado do direito de punir, não desconfiando por um momento que a narrativa da redução da violência foi, na maioria dos casos, apenas uma reconfiguração e que o Leviatã erguido por Hobbes foi tomado de assalto pelo capitalismo e, consequentemente, pelo poder económico, criando novas formas de domínio e exploração que só cegamente não são formas de violência. A este propósito, leia-se, por exemplo, a recensão de Paulo Merêa ao ensaio de Carl Schmitt sobre o Leviatã de Hobbes, onde o jurista português conta a velha história do aprendiz de feiticeiro que invoca um demónio e depois perece às mãos desse mesmo demónio, para explicar que o pensamento hobbesiano foi uma das primeiras vítimas do grande demónio convocado por Hobbes, o Estado moderno.

Por outro lado, Pinker também parece não compreender que a violência se tem mostrado cíclica e avessa a qualquer profecia de desaparecimento. Nassib Taleb, que esboçou uma das críticas mais incisivas ao pensamento de Pinker e aos seus métodos de análise de dados – um problema que mancha significativamente a credibilidade científica das conclusões apresentadas em Os Anjos Bons da Nossa Natureza –, explica como o autor, no fundo, cede a uma espécie de profecia do fim das crises que o tempo se encarregará de provar errada, da mesma forma que as palavras de H. T. Buckle em 1885 e Ben Bernanke em 2004 foram refutadas, respectivamente, pela Primeira Grande Guerra e pela crise de 2007. Muitos dirão até, e com propriedade, que a história em muito pouco tempo já se encarregou de provar o erro de Pinker, seja com o novo terrorismo, com a crise na Turquia e na Ucrânia, com a cada vez maior tensão entre a NATO e a Rússia e com a mera possibilidade de uma presidência de Donald Trump.

Sem prejuízo do que se disse, importa dizer que, mesmo com todas as críticas, Os Anjos Bons da Nossa Natureza apresenta uma proposta desafiante e que merece análise. A ascensão do Estado moderno e o desenvolvimento do aparelho público de poder possibilitaram uma viragem significativa na violência humana, mas o desenvolvimento económico assimétrico e o capitalismo contrabalançaram essa viragem com uma reconfiguração das formas de exploração e domínio. Pinker está certo acerca do Estado enquanto força motriz para desenvolver os melhores anjos da nossa natureza, mas menosprezou claramente o poder destrutivo dos antigos demónios e, principalmente, os novos demónios criados pelo progresso.