Só um punhado de sérvios sabe hoje quem foi Peter Egner, sobretudo gente mais velha, que não esquece as atrocidades cometidas pelos nazis em Belgrado. Quando chegaram à capital da então Jugoslávia, em 1941, as forças de Adolf Hitler transformaram a feira internacional do orgulho jugoslavo, uma espécie de Expo 98 criada em 1937, num campo de concentração para prender e executar judeus, comunistas, ciganos e opositores. O campo era tão próximo do centro da velha Belgrado, apenas separado pelo rio Sava, que os habitantes da outra margem conseguiam ouvir os gritos das pessoas que, todos os dias, eram executadas às centenas pelos alemães.
Egner era o guarda mais odiado, contam testemunhas que sobreviveram à perseguição. Depois de a Segunda Guerra firmar a derrota dos nazis, fugiu da Jugoslávia para os Estados Unidos, onde lhe foi dada nacionalidade americana em 1966. Durante décadas manteve a versão contada aos serviços de imigração, de que apenas combatera na Força Aérea alemã, ocultando o facto que seria desenterrado já no princípio do século xxi, quando um punhado de judeus sérvios, liderado por Aleksandar Mošić – que viu a mãe ser levada para o campo Staro Sajmište e nunca mais voltar – lançou uma iniciativa para transformar o antigo campo de concentração num monumento de homenagem às vítimas do Holocausto na Sérvia.
O que Egner escondera foi que, em vez de ter pilotado aviões de guerra, foi membro activo e líder de um dos famigerados Einsatzgruppen, os batalhões que Hitler criou com vista a pôr em prática a sua “solução final” e acabar com os judeus e ciganos da Europa, a ponta da lança nazi responsável pelas limpezas étnicas na então Jugoslávia. Quando a Sérvia pediu a extradição de Egner aos EUA, em 2010, o antigo guarda das SS continuou a negar responsabilidades na execução de dezenas de milhares de pessoas em Belgrado e noutros campos de concentração nazis. Um ano depois, a 1 de Fevereiro de 2011, apenas 20 dias antes da primeira audiência num tribunal de Seattle, onde vivia, Egner morreu. Tinha 88 anos e nunca chegou a ser julgado pelas atrocidades que cometeu.
Ao abandono
Chamam-lhe o “campo de concentração esquecido”, apesar de ter sido ali que milhares de judeus de Belgrado, mais outros milhares de pessoas trazidas da Checoslováquia e da Áustria, foram mortos pelos membros dos Einsatzgruppen.
“É o único campo da Europa muito visível, os prisioneiros não eram escondidos do resto da população, e isso foi intencional”, contava em 2003 Aleksandar Mošić, que criou a Associação Memorial Sajmište para que ninguém esqueça para o que serviu aquele espaço – hoje ocupado por casas de famílias ciganas e ateliês de artistas, com um passado impossível de adivinhar se não fosse a pequena placa que ali foi posta, no meio de um arvoredo, a explicar que a feira foi palco de execuções em massa. “Queriam intimidar os sérvios mostrando-lhes o que se passava ali, porque os sérvios eram muito mais corajosos na resistência aos fascistas que outros países”, escreveu Mošić no livro “Os Judeus em Belgrado”. Antes da Segunda Guerra Mundial viviam cerca de 10 400 judeus em Belgrado e quase 16 mil em toda a Sérvia. Mais de 24 mil foram mortos no Holocausto. Mošić e o pai, que se refugiaram em Split, na actual Croácia, foram dos poucos sobreviventes.
A placa de cobre que o governo sérvio montou em Staro Sajmište há 20 anos passa totalmente despercebida. Hoje é impossível perceber, quando se passeia naquela margem do rio Sava, que estamos no coração de um antigo campo de concentração onde mais de 30 mil pessoas foram assassinadas. Nos primeiros meses de 1941, após a chegada das tropas nazis a Belgrado, todos os judeus, ciganos e comunistas foram obrigados a registar-se com as SS e passaram a usar as braçadeiras que marcavam o seu futuro inelutável.
A sina da morte chegou depressa para todos os homens, que ao longo dos primeiros meses foram alinhados em Staro Sajmište e executados a tiro, de frente para o rio. Foi aqui que os fuzilamentos deram lugar a outro tipo de execuções nazis, em que as vítimas eram trancadas em carrinhas e mortas por asfixiamento pela inalação dos fumos dos tubos de escape. Conta-se que o chefe das SS, Heinrich Himmler, deu ordens para esta alteração de técnica porque estava a ficar preocupado com a saúde mental dos carrascos que, todos os dias, fuzilavam pessoas à beira do Sava e noutras partes da Sérvia. Quando passaram a usar carrinhas de gaseamento, onde depois transportavam os corpos para valas comuns longe da cidade, os nazis já tinham matado quase todos os homens adultos. As vítimas do asfixiamento aberrante em Belgrado foram sobretudo mulheres e crianças, mais de 8 mil, 50 de cada vez.
Staro Sajmište tornou-se um dos mais importantes pontos estratégicos do plano de acção de Hitler. Para ali eram levados prisioneiros de toda a Jugoslávia e países circundantes. Tão importante que uma das primeiras coisas que os nazis fizeram quando aqui chegaram foi construir uma ponte a ligar as duas margens do rio Sava; a única que existia até então estava longe do centro. Anos mais tarde, prevendo a derrota iminente, as forças nazis bateram em retirada e armadilharam com explosivos a ponte Stari Savski, uma das seis que hoje existem na capital sérvia. Queriam destruir a passagem e atrasar as tropas soviéticas e o exército de libertação da Jugoslávia, mas o plano não lhes correu bem, uma história que os sérvios conhecem e contam com orgulho. Quando viu que os nazis tinham instalado os explosivos, Miladin Zarić, um professor do ensino secundário que vivia em Belgrado e tinha uma grande experiência em minas e explosivos adquirida durante a Primeira Guerra Mundial, cortou os fios do detonador e impediu a demolição da ponte. É a única construída pelos nazis durante a sua ocupação que se mantém na Europa de hoje.
Onde pára a memória
Existe um website dedicado ao Staro Sajmište, com documentação, entrevistas a sobreviventes e os planos de transformar o local num monumento da Sérvia que mantenha viva a memória das vítimas do Holocausto na Jugoslávia. Contudo, parece estar tão ao abandono como o próprio local, denunciando que a última visita de grupo organizada pelos defensores da memória colectiva aconteceu em 2012. Quando pedimos direcções nas ruas de Belgrado para o “antigo campo de concentração” ninguém sabe do que falamos. Passamos a ponte verde a pé, a que os nazis não conseguiram destruir, e mal damos pelo espaço. Parece um simples bosque de pequenas dimensões ao lado de um campo de futebol relvado. E quando chegamos ao coração do espaço nada denuncia a terra que pisamos, não fossem as fotografias de arquivo divulgadas no site de uma torre de cimento que continua ali, hoje quase em ruínas, rodeada por uma espécie de favela.
Uma mulher cigana de lenço na cabeça ajuda um jardineiro a recolher ramos e folhas que as árvores despiram, enquanto uma sérvia pára o carro para nos perguntar se sabemos onde é a livraria inglesa que lhe disseram haver por perto. De longe avistamos a placa montada em 1995 a declarar que mais de 30 mil pessoas foram aqui executadas pelos nazis; ao lado dela, um ramo de flores num arranjo com papel crepe vermelho é comido pela terra. Alguém já o espezinhou.
Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, as autoridades jugoslavas começaram a atribuir os espaços nos edifícios ao abandono a artistas emergentes, que ali criaram os seus ateliês. É o que nos conta Slobodan Čočić, um arquitecto de Belgrado cujo melhor amigo chegou a pintar alguns quadros em Staro Sajmište. Ao longo dos anos, as famílias mais pobres foram ocupando outros espaços do recinto da feira tornada campo de concentração tornada parque ao abandono, encontrando um abrigo que até hoje ninguém lhes tirou mas contribuindo inadvertidamente para apagar a memória do que ali aconteceu em meados do século XX.
Paramos em frente à torre central, confusos com o anonimato do espaço, e olhamos para cima. A grande ironia é uma estrela de David que corta o pilar de cimento a meio. Ali bem perto, havemos de perceber, ao caminhar de regresso à ponte, uma família de refugiados, talvez da Síria, talvez do Iraque ou do Afeganistão, montou entre as árvores a tenda oferecida pelo alto comissariado da ONU. Também não saberão que, tal como outros sírios e afegãos e iraquianos que foram realojados temporariamente no antigo campo de concentração nazi de Heidenau, na Alemanha, o sítio onde escolheram abrigar-se aqui na Sérvia antes de seguirem caminho para norte também foi em tempos um complexo de matança.
Uma semana depois do curto passeio por Staro Sajmište, a Câmara de Belgrado anunciou que já chegou a acordo com os habitantes e artistas que ocupam o espaço para que se mudem e se possa dar início às obras que tornarão o monumento uma realidade. “Estamos prontos para começar a reconstruir a torre central e os espaços adjacentes, mas é um processo que vai durar anos, não pode ser concluído em seis meses nem num ano”, declarou o vereador Goran Vesic a um jornal local, depois de uma reunião com o cônsul-geral dos EUA na Sérvia, Met Flangen, e com o enviado especial do Departamento de Estado norte-americano para o Holocausto, Nikolas Din. Mošić, agora com 96 anos, talvez ainda veja o seu sonho tornar-se realidade.
Saber a fuga de cor
Milos e a mulher, Zorica, têm dedicado todo o seu tempo livre a cozinhar comida vegetariana para distribuir nos parques centrais de Savamala, a artéria ribeirinha de Belgrado que alberga a estação central de comboios, o terminal de autocarros e, desde Agosto, milhares de refugiados que invariavelmente passam por aqui a caminho dos países nórdicos. Hoje trouxeram o filho de cinco anos, Srjan, para um dos parques, antes de o levarem na sua primeira viagem à Índia. Adoram Krishna, são sérvios e não esquecem o som das bombas que caíram na sua cidade há não muito tempo, em 1999, quando a NATO lançou a primeira ofensiva não autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU contra a Sérvia. Vários edifícios do governo e das forças armadas foram atacados com mísseis pelas forças dos aliados, e uma delas atingiu um edifício não longe daqui, o antigo estado-maior da força aérea, a poucos passos do centro de informação de asilo criado em Setembro para apoiar os que hoje fogem de guerras no Médio Oriente e de perseguições em África.
“Usamos o nosso estúdio de ioga para fazer arroz e cozinhar outras coisas e trazemos a comida para distribuir aqui”, explica Milos, enquanto o filho brinca com dois carrinhos num monte de pedras, ao lado de um rapaz não muito mais velho que, sentado no chão da tenda, come a refeição trazida por Milos. “Vê só”, diz a olhar longamente o primogénito, com umas calças de fato-de-treino que vão ficando cada vez mais encardidas nos joelhos ao longo da brincadeira. “Se não fosse loiro era confundido com uma destas crianças refugiadas… Somos iguais, nós e eles.” Srjan podia ter sido um refugiado como os seus avós e muitos outros habitantes da ex-Jugoslávia durante a última guerra dos Balcãs.
Em 1992, um ano depois do início da guerra, a tanto a Áustria como a Hungria davam abrigo a 50 mil refugiados jugoslavos, a Suécia a 40 mil, a Suíça a 13 mil, a Holanda a 4 mil e Itália a 7 mil pessoas. A Alemanha encimava a lista, como agora, dando asilo a 200 mil refugiados no primeiro ano. Na altura as críticas recaíam sobre o Reino Unido, França, Espanha e Portugal, que continuavam a recusar-se a seguir o exemplo e a aliviar os países que mais gente acolhiam. No final da guerra, a 14 de Dezembro de 1995, o saldo de refugiados estava bem acima das mais de 600 mil pessoas que, 20 anos depois, já fugiram para a Europa desde Janeiro deste ano — encontrando ironicamente nos Balcãs a rota mais segura para chegarem à Alemanha, pelo menos até agora.
Numa altura em que os governos nacionais europeus e o governo turco de Ahmet Davutoglu, o fantoche do presidente Recep Tayyip Erdogan, usam estes refugiados como instrumentos políticos ou moeda de troca, a situação no terreno perante as dezenas de milhares de chegadas diárias é quase sempre a oposta. Ao contrário do que acontence nos debates nas repetitivas reuniões entre os chefes de governo, aqui, nas ruas e nas fronteiras, não se faz política, pratica-se a empatia – na Sérvia como na Croácia, onde as feridas da guerra dos Balcãs ainda estão por sarar. Segundo dados recolhidos pelo Centro de Pesquisa e Documentação de Sarajevo ao longo de vários anos, mais de 4 mil civis sérvios e quase 3 mil cidadãos croatas contam-se entre as 101 mil vítimas do declínio da Jugoslávia (os números são muito superiores quando se incluem os soldados caídos em combate).
“Eu nem sabia falar inglês”
Hoje há agentes da polícia que parecem ter corações empedernidos, como um croata que, na estação de Tovarnik, na fronteira com a cidade sérvia de Šid, tenta ignorar os risos marotos de um miúdo sírio que tenta incitá-lo à brincadeira. Ou como um outro que, no campo improvisado de Opatovac, para onde os refugiados são levados quando entram na Croácia a fim de receberem algum apoio antes de seguirem caminho, reage assim quando anunciamos ao que vamos: “Jornalistas? Al-Qaeda? Al-Jazeera?” Atónitos, metemos a primeira e arrancamos, apenas para descobrir que a passagem está quase totalmente vedada a jornalistas e que a linha de montagem criada para tirar os refugiados da Croácia o mais depressa possível funciona na perfeição.
Os casos destes agentes – talvez cansados dos turnos de 24 horas à chuva que outros colegas, mais simpáticos, denunciam –, e sobretudo a postura dos actuais governos destes países chocam de frente com o genuíno entusiasmo da sociedade civil, de famílias sérvias como a de Milos ou de Karoljna, uma rapariga de 19 anos nascida e criada em Tovarnik que se juntou à Cruz Vermelha Croata assim que os milhares de refugiados começaram a passar por aqui, depois de a Hungria fechar totalmente a fronteira com a Sérvia, a 15 de Setembro.
Nesta estação de comboios, Karolina é uma espécie de rainha da diplomacia. Caiu nas boas graças dos agentes da polícia e é a última cara que os refugiados vêem antes de serem metidos nos comboios que, até há uma semana, atravessavam a Hungria em direcção à Áustria e agora seguem para a atolada fronteira com a Eslovénia. “Cada pessoa é uma pessoa, seja um agente da polícia seja um sírio ou um iraquiano, quem quer que seja. Tento manter as coisas calmas, gerir as situações que surgem, porque às vezes há um polícia mais enervado que até nem é má pessoa, está só cansado, ou há um homem entre os refugiados que fica irritado por causa desta divisão”, explica-nos a apontar para a tenda de campanha montada pelo exército croata para proteger da chuva os que chegam. Debaixo da lona caqui, a polícia organiza dois grupos diferentes à medida que chegam os autocarros: um com famílias, o outro com os homens e rapazes que viajam sozinhos, para depois os distribuir pelas carruagens.
Karoljna desculpa-se várias vezes pelo seu inglês, quer falar mas às vezes faltam-lhe as palavras. “Eu nem sabia falar inglês antes disto. Quando tudo começou era impossível não vir ajudar, eu sei o que é isto, sou nova mas ouço as histórias dos meus pais, em tempos fomos nós que tivemos de fugir da guerra e dos tiros, fomos nós que tivemos de ir pedir ajuda noutros sítios sem poder levar nada connosco, que deixámos tudo para trás. Então se era preciso aprender inglês, pois aprendi inglês.” Tovarnik fica na região de Vukovar, uma das mais castigadas pela guerra dos Balcãs a seguir a Srebrenica, a cidade bósnia outrora de maioria muçulmana onde se deu o primeiro genocídio da Europa desde o Holocausto. Vinte anos depois, os que não conseguem aprender inglês ajudam como podem. “É a coisa mais bonita disto tudo, ver toda esta gente de Tovarnik, de Vukovar, de Lovas, todos estes habitantes de todas estas aldeias e cidades a cozinhar para os refugiados, a dar-lhes abraços e a dizer-lhes em croata que estão seguros, que nós ajudamos. Eles não sabem croata, mas acho que entendem.”
Antes de as autoridades se organizarem para gerir estas passagens no território croata, diz Karoljna, os refugiados apareciam de todo o lado, pelo meio das florestas, por várias passagens não oficiais nas fronteiras, e iam parar às pequenas terriolas esfarrapados, com fome e sede. “Ninguém lhes fez mal, ninguém lhes disse que não”, diz a rainha de Tovarnik, os grandes olhos castanhos a brilharem de emoção. “Toda a gente os ajudou porque toda a gente se lembra. Ninguém esquece a guerra.”
Nota: Os jornalistas viajam no âmbito do projecto "Aquele Outro Mundo que é o Mundo", promovido pela ACEP, CEsA, seisXX e Coolpolitics, com o apoio do Instituto Camões e da Fundação Gulbenkian