Vila-Matas no quarto da hiper-literatura

Vila-Matas no quarto da hiper-literatura


O espanhol Enrique Vila-Matas é o tipo de escritor cujo objecto é a própria escrita e o seu produto aquilo que talvez pudéssemos nomear de hiper-literatura. No seu mais recente livro, a ficção parece ficar presa a uma permanente hipnose por si mesma.


Deve o escritor ser alguém que debruçado na janela conta o que vai na rua, lançando a sua voz para o meio dos leitores, que nela deambulam sem cuidados até se darem conta dos detalhes narrados desde essa vantajosa posição: a estranheza do que vestem, a bizarria dos gestos comuns? Sem dúvida. Mas deveremos impedi-lo de voltar para o quarto quente onde acabou de acordar, ou que a ele se dedique primeiro, ou exclusivamente, como um gato a tratar do próprio pêlo? Tendo a vida que leva de fazer parte da realidade, mesmo se não for pessoa de descer à rua, seria injusto negar a quem escreve que a use, servindo-se de si mesmo como tema, e do seu próprio quarto. É de admitir por isso (até porque os resultados podem ser bons) esse tipo escritor que é muitas vezes Vila-Matas, cujo objecto é a própria escrita e o produto aquilo que talvez pudéssemos nomear, inventando, de hiper-literatura.

Confirmado no panorama espanhol e internacional, autor de mais de vinte obras e receptor de múltiplos prémios literários, Vila-Matas publicou esta sua mais recente obra em 2022, depois de um interregno de três anos, período permeado por pandemias e desarranjos graves na sua própria saúde. Nela começa logo por definir, por meio de um protagonista que facilmente se confunde com o seu próprio criador, os cinco tipos principais de escritores:  “1) Os que não têm nada de contar; 2) Os que deliberadamente não contam nada; 3) Os que não contam tudo; 4) Os que esperam que deus um dia lhes conte tudo, inclusive porque é tão imperfeito; 5) Os que se renderam ao poder da tecnologia que parece estar a transcrever tudo e, portanto, a converter em prescindível o ofício do escritor”. Deixa entrevista uma sexta categoria, misteriosa, onde talvez aproveitássemos para colocar a habitação específica para aqueles criadores que vivem fascinados pelo mundo privado dos seus processos, o tal acolhedor quarto onde todas as manhãs acordam. É verdade que Vila-Matas nunca se deixou vencer pelo demónio do enredo, dedicando-se a dissecar com maior ou menor precisão o cenário, os faits divers, os avatares da coreografia literária (que não sendo literatura ela mesma, dela se alimentam, às vezes sugando-lhe os alicerces), mas desta feita parece vir à liça sobretudo para defender-se de alguns monstros particulares, onde entrevemos um muito incomodativo bloqueio criativo: esse que mais tarde ou mais cedo acabará por afectar qualquer plumitivo responsável, remetendo-o temporariamente para o silêncio ou, como é o caso, para o mobiliário doméstico, incluindo, por inerência, aquilo que acumulou nas estantes. Entre o seu espólio (que é imenso, como o leitor terá oportunidade de verificar), o protagonista encontra David Markson, fazendo menção rápida a Readers Block (livro de 1996, por traduzir entre nós), obra que talvez reproduza, à revelia, muito do que emperra este romance. Sob a ironia do título (que substitui  intencionalmente a comum expressão Writers Block) narra-se as dificuldades de um escritor em avançar num romance em mãos, por se ver constantemente interrompido por citações, recordações sobre a vida de outros escritores, suas amarguras, pormenores das suas biografias frequentemente trágicas ou tiranizadas por críticos ou outros escritores – sendo que estas divagações (não directamente as de um escritor mas as de um leitor bloqueado pela sua própria memória) acabam por ser o material único da obra. O jogo é propositado (quem está bloqueado é o leitor, pela sua memória, e é a memória do leitor que impede a contraparte produtiva de avançar), mas nem por isso menos frustrante. Assim delineada, parece a ficção ficar restrita a um olhar-se ao espelho, e à permanente hipnose por si mesma, presa a um feitiço que a si própria lançou e arriscando-se, com isso, a excluir o leitor menos fascinado por esse tipo de labirintos.

É mais ou menos a este vale que vemos Vila-Matas descer, e não são assim tão diferentes os caminhos percorridos, embora arejados pela técnica de um excelente contador de histórias. Por este lado, o livro tem um ritmo irrepreensível, no seu atar e desatar de ideias complexas remitidas a uma linguagem simples e quase directa. Isso é apreciável sobretudo em Paris, o primeiro capítulo, uma “biografia do estilo”, como o próprio a caracteriza, destinada a recuar ao tempo em que o escritor, não escrevendo, se dedicava a construir a existência que justificasse a futura nomeação, imitando, sem grande pontaria, o estilo de vida do autor expatriado parisiense na década de 1920. Leia-se o encontro com o quase português Antonio Tabucchi:

“Meses depois da minha passagem por Vecchiano e Roma, conheci Tabucchi numa festa em Barcelona (…). Quis contar-lhe que tinha visitado Vecchiano, a sua cidade natal, mas ele, sem sequer olhar para mim, propôs-me que o seguisse até um balcão do bar que ficava do outro lado da sala. (…) Comecei a andar atrás de Tabucchi, que parecia levar uma faca de mato porque demonstrava uma espantosa facilidade para abrir caminho na selva de bebedores. E num momento deste trabalhoso trajeto até o outro lado da sala perguntou-me à queima-roupa e misturando o sotaque italiano em português:

 – Amigo, por que me perxegues?

(…)

Nesse dia enquanto atravessávamos a selva daquela sala até ao balcão mais próximo, fiz de conta que não captava a sua indirecta (e cartão de apresentação) e dediquei-me a contar que em Paris tinha renunciado a escrever, mas que depois, de volta a Barcelona, mudara de ideias e me pusera a redigir histórias como louco, chegando até deixar a própria vida atirada para uma valeta.

 Quererás tu dizer transformando a vida em literatura disse Tabucchi, porque repara que o próprio facto de me dizeres que em Paris renunciaste a escrever já é literatura, e essa lei não podemos subtrair-nos, nem tu nem eu, não achas?”

A dificuldade em praticar a escrita e a vida em simultâneo, ou a inevitável exclusão de uma pela outra, parece ser o mote das páginas seguintes, para um narrador que confessa: “Assim que terminei o fragmento “Paris”, que o leitor possivelmente acaba de ler, estive três anos sem escrever nada, absolutamente nada, à deriva. Assim que deixei de escrever, começaram a acontecer-me coisas; isso foi bem estranho”. O que acontece tem a ver tem, justamente, com quartos, primeiro num hotel de Cascais, depois num outro em Montevideu, que dá o título ao livro e é o capítulo central, ou vórtice da narrativa, ancorando-a no conto de Cortázar A porta condenada: uma porta extra, escondida por trás de um armário num quarto exíguo (localizável num hotel real em Montevideu), deixa passar sons estranhos de uma habitação contígua, cuja origem nunca sairá esclarecida. É visitando este quarto e sua porta na capital do Uruguai, definida como “o espaço de ficção que existia ao mesmo tempo no mundo real ou, por outras palavras, num espaço de um mundo real que não seria nada sem um mundo de ficção, e ao contrário, e assim até ao infinito”, que o autor em crise pretende resolver o enguiço, o eterno conflito entre objectividade da produção e a passividade receptiva do trabalho criativo, essa obrigação exasperante de esperar pela musa. Não é por aqui que o protagonista encontra a passagem entre mundo e literatura, pelo contrário, espera-o ainda um último quarto, que é talvez o inverso desse que Virgínia Woolf gostaria que conhecessem todos os escritores, o quarto individual e solitário onde se prepararia em silêncio algo para oferecer ao mundo. Criado em exclusivo para o protagonista por uma amiga, artista plástica, no interior de uma exposição, é um espaço cheio de vozes maldizentes, cujo insulto maior é repetirem as melhores frases inventadas pelo autor ao longo da sua vida. Bogotá é, como os outros, um capítulo cheio de agilidade narrativa e ideias densas, mas acaba por não resolver nem a impaciência do leitor nem a aparente impotência de quem escreve, recluso para sempre no quarto imaginário onde se entrincheirou e o destino lhe reserva apenas a visitação dos fantasmas mais caseiros. As tentativas do protagonista não passam, por isso, da enunciação de um problema que nunca temos a satisfação de ver resolvido. Aquilo com que ficamos, como em Readers Block, é a infindável conexão da literatura, no modo como ela se mistura dentro e entre as cabeça de cada um dos seus inventores: a rede infinita que liga citações, evocações de estilo e passos biográficos, descrições de encontros, entendimentos e dissensões artísticas, vozes e discussões. E disso acaba por resultar pouco, ou não resultar bastante, porque a narrativa não parece ser capaz do esforço para sair do quarto, e tentar o passo que pudesse fornecer uma mutação própria, um gesto pessoal acrescentado, o nó de uma nova ficção.