Nova crise? Alarmes já começaram a soar e arrastam todos os setores

Nova crise? Alarmes já começaram a soar e arrastam todos os setores


A taxa de inflação não dá tréguas e os valores refletem-se no mercado e que vão desde os produtos alimentares que estão a  bater recordes aos preços das casas no mercado de arrendamento. A juntar a isto há que somar os preços da luz, do gás e dos combustíveis, além da ameaça de novo aumento…


O crescimento económico está a abrandar. Este é um dos principais impactos da guerra e Portugal não fica alheio a esta tendência. E a fatura é paga tanto pelos consumidores, como pelas empresas.  “Para Portugal e outros países longínquos, os principais impactos da guerra foram reforçar o choque de preços da última fase da pandemia. Isso a que agora se chama ‘inflação’ e a conexa subida das taxas de juro são os sintomas principais. Acabou o período doentio de taxas anormalmente baixas”, diz ao i João César das Neves.

Mas os cofres do Estado agradecem. As administrações públicas registaram, até julho, um excedente orçamental de 432 milhões de euros, em contabilidade pública, evidenciando uma melhoria de 7 589 de euros comparando com os mesmos meses de 2021, período ainda afetado pela pandemia. No entanto, face ao primeiro semestre de 2022 o saldo acumulado recuou 681 de euros. De acordo com os últimos dados orçamentais, a receita fiscal e contributiva aumentou 17,2% face ao mesmo período de 2021 (uma evolução de 13,6% em relação aos primeiros sete meses de 2019). Comparando com junho deste ano, registou-se uma variação de 21,6%. “Esta evolução deve-se ao contributo da receita fiscal (21,1% face a 2021 e 12,5% em relação a 2019), em particular à recuperação do IVA (+24,7% relativamente a 2021 e +16,5% face a 2019), bem como da receita contributiva (+9,6% comparando com 2021 e +16,2% comparando com 2019), que refletem a recuperação económica dos últimos meses face ao ano anterior”, disse o Ministério das Finanças. 

Inflação

A taxa de inflação que tem vindo a bater recordes atrás de recordes – de acordo com os últimos dados do Eurostat, a inflação homóloga avançou em julho para os 8,9% na zona euro, face aos 8,6% de junho deste ano e aos 2,2% de julho de 2021, enquanto na União Europeia (UE) atingiu os 9,8% – é vista como um dos principais impactos negativos na economia portuguesa e não só. 

As contas da DECO não deixam margem para dúvidas. Abastecer a despensa ficou mais caro desde que começou a guerra na Ucrânia e, atualmente, as famílias portuguesas podem ter de pagar 209,81 euros por um cabaz de bens alimentares essenciais, um aumento de 14,26%. E os valores têm vindo a subir. “Um cabaz de bens alimentares essenciais custa esta semana 209,81 euros, mais 1,48% face ao que custava há apenas uma semana (17 de agosto), e mais 14,26% em comparação com o que custava na véspera da explosão do conflito armado na Ucrânia (23 de fevereiro)”, diz a entidade. 

A contribuir para este aumento está, em grande parte, o custo do peixe e da carne, ou seja, categorias alimentares cujo preço mais aumentou nos últimos seis meses. Entre 23 de fevereiro e 24 de agosto, o preço do peixe registou um aumento de 19,10% (mais 11,52 euros). Para comprar apenas um quilo de salmão, de pescada, de carapau, de peixe-espada-preto, de robalo, de dourada, de perca e de bacalhau, o consumidor pode agora ter de gastar, em média, 71,83 euros. Já na carne o aumento foi de 17,14% (5,53 euros) nos últimos seis meses. Fazendo as contas a apenas um quilo de lombo de porco, de frango inteiro, de febras de porco, de costeletas do lombo de porco, de bifes de peru, de carne de novilho para cozer e de perna de peru, o gasto pode agora ser, em média, de 37,77 euros, segundo a organização de defesa do consumidor. 

No entender de Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, a inflação é o principal impacto negativo na economia portuguesa. No entanto, admite que poderia ser mais baixa se o Governo tivesse implementado uma política orçamental expansionista alicerçada numa maior redução dos impostos sobre os combustíveis fósseis importados, abdicando de uma parte maior do ISP (Imposto sobre Produtos Petrolíferos), bem como do IVA, nomeadamente aquele que recai sobre os hidrocarbonetos. 

E faz as contas:  a receita do ISP do Executivo português subiu 84,7 milhões no primeiro semestre deste ano, relativamente ao semestre homólogo de 2021, para 1608,6 milhões. Também entre os mesmos semestres, o IVA aumentou cerca de 25% de 7920,7 milhões para 10052,3 milhões de euros. 

O economista diz ainda que as crescentes preocupações com o aperto no fornecimento de gás da Rússia e com o aproximar do inverno vão continuar a pressionar a inflação na zona euro e poderão forçar o Banco Central Europeu (BCE) a uma maior contração monetária, baseada numa subida dos juros acima do esperado. “Diante deste cenário, intensifica-se a deterioração das perspetivas económicas na Zona Euro. Neste contexto, acentua-se o agravamento das dificuldades para a economia nacional e para o Executivo português”. 

E não hesita: “O combate à inflação, e aos seus vícios, é para o BCE mais importante do que evitar uma recessão. Por isso, esta insistência do banco central será cada vez mais visível, nem que imponha uma recessão mais ou menos cavada. É certo também que uma recessão é deflacionista, aumentando o desemprego, diminuindo o rendimento disponível, abrandando os gastos das famílias e, por fim, aliviando a pressão sobre os preços”. 

Energia

A par da inflação também a energia é outros dos rostos dos impactos que estão a afetar todos os países, ao ponto da presidente da Comissão Europeia ter defendido ontem, uma “intervenção de emergência e uma reforma estrutural” no mercado da eletricidade da União Europeia, admitindo “as limitações” da configuração atual, exacerbadas pela crise. “Os preços da eletricidade em alta estão a expor as limitações da atual configuração do nosso mercado de eletricidade, [que] foi desenvolvido para diferentes circunstâncias. É por isso que estamos agora a trabalhar numa intervenção de emergência e numa reforma estrutural do mercado da eletricidade”, revelou Ursula von der Leyen.

Para Ricardo Evangelista, diretor executivo da ActivTrades Europe, “a subida do preço da energia foi a consequência mais notada da invasão da Ucrânia”.

Também o analista da XTB Henrique Tomé sublinha que os produtos energéticos sofreram uma escala de preços, “aumentando ainda mais as pressões inflacionistas que na altura já se faziam sentir”, em que os aumentos do gás têm sido mais problemáticos, depois de a EDP Comercial ter anunciado que ia aumentar o preço do gás às famílias em média 30 euros mensais – mais taxas e imposto, o que corresponderá a mais cinco a sete euros de taxas e impostos – e de a Galp seguir o exemplo, não revelando, no entanto, qual será o valor desse aumento. Ontem foi a vez de a Goldenergy também avançar com um aumento médio do preço gás de seis euros para a maioria dos clientes, a partir de outubro.

Para “fintar” estes aumentos vai ser possível às famílias e aos pequenos negócios acederem ao mercado regulado desta energia. “Os preços do mercado regulado serão menos de metade dos preços dos comercializadores que anunciaram o seu aumento. Acreditamos mesmo que com esta mudança muitos consumidores passarão a ter uma fatura de gás inferior à atual”, revelou o ministro do Ambiente.

De acordo com Duarte Cordeiro, esta medida vai vigorar pelo prazo máximo de 12 meses e poderá abranger até cerca de 1,5 milhões de clientes. Outra medida diz respeito ao relançamento do programa Bilha Solidária, para o qual mobilizou financiamento do Fundo Ambiental, recordando que “há duas semanas impôs um preço máximo para a venda de garrafas de gás, medida que protege mais de dois milhões de consumidores”.

Já em relação aos possíveis aumentos da energia e após a “guerra” com a Endesa que anunciou amentos na ordem dos 40% e que acabou por recuar, depois da polémica com o Governo, o Executivo acredita que o mecanismo ibérico tem contribuído para reduzir o preço do mercado grossista [em Portugal], mediante a limitação dos preços do gás para produção de eletricidade”, tal como tem sido defendido pelo regulador, permitindo aos produtores venderem eletricidade aos comercializadores, com valores abaixo do de grandes países europeus, como a Alemanha e França.  

Combustíveis 

Também o petróleo foi uma das matérias-primas onde mais se sentiu o aumento dos preços. Após a invasão registou-se um disparo no valor do barril de Brent, referência europeia, que atingiu um máximo em março, de 139,13 dólares. A partir de ontem conte com uma subida de 11 cêntimos no gasóleo para 1,887 euros, enquanto  e o preço a gasolina deverá manter-se nos 1,778 por litro. É certo que os valores continuam a beneficiar de três medidas de mitigação implementadas pelo Governo e que vão ser reavaliadas no final deste mês. O desconto no ISP equivalente a uma descida da taxa do IVA dos 23% para 13%, a compensação por via de redução de ISP da receita adicional de IVA, e a suspensão da atualização da taxa de carbono baixaram em 28,2 cêntimos a carga fiscal do gasóleo e em 32,1 cêntimos a carga fiscal da gasolina.

Imobiliário 

O mercado imobiliário não fica alheio a esta turbulência e afeta todos os consumidores: não só aqueles que têm casa ou que pretendem adquirir, como os que estão no arrendamento. Em julho, o Banco Central Europeu (BCE) anunciou a subida das taxas de juro em 50 pontos bases –  em vez dos 25 pontos inicialmente previstos – o que irá penalizar todos aqueles que têm em mãos um crédito para pagar ou os que estão prestes a fechar negócio. Foi a primeira subida dos juros em mais de uma década, para tentar travar a escalada da inflação e, tudo indica que, o banco central deverá seguir o mesmo aumento na próxima reunião agendada para setembro. Isto, numa altura, em que a Reserva Federal dos EUA (Fed) também está a dar passos largos na subida das taxas. 

E para arrendar, os alarmes têm vindo a soar. A explicação é simples: os contratos estão indexados ao aumento da taxa média de inflação nos 12 meses terminados em julho. O valor final será apresentado amanhã, mas há quem aponte para valores próximos dos 5%. Isto significa que, os senhorios têm liberdade para solicitar aos inquilinos um aumento nessa ordem de valores a partir de janeiro de 2023. Um valor significativo tendo em conta que, este ano, as rendas aumentaram apenas 0,43%.

Um cenário que já levou a Associação de Proprietários a pedir ao Governo português para seguir o exemplo de Espanha que impôs um limite máximo de 2% na atualização dos valores a aplicar no próximo ano. Ao i, Romão Lavadinho já veio garantir que “aumentos de 7% ou 8% nas rendas são completamente incomportáveis”. Mas para isso, defende que seja publicada por parte do Governo uma norma que defina um teto máximo de subida. 

Opinião contrária tem o presidente da Associação Nacional de Proprietários ao considerar que o “contrato de arrendamento é celebrado e só tem de ser honrado”, afastando assim um cenário de intervenção de travão no aumento das rendas. E não hesita ao apontar o dedo ao Executivo: “Este Governo não faz mais nada há sete anos a não ser hostilizar os proprietários”.

Uma opinião partilhada pela Associação Lisbonense de Proprietários ao garantir que mais de 30% dos proprietários em Portugal teme a possibilidade de um congelamento administrativo das rendas devido à subida da inflação.

Mercados 

A negociação dos mercados tem sido caracterizada, nos últimos meses, por uma grande volatilidade. A explicação é simples: Os receios de uma recessão global afetam o sentimento dos investidores. “O primeiro semestre do ano foi um dos piores dos últimos anos, afetado pelas políticas monetárias restritivas adotadas pelos principais Bancos Centrais, em conjunto com as preocupações sobre o risco de recessão e também pela invasão russa à Ucrânia que apanhou os mercados de surpresa e provocou fortes quedas dos ativos de risco”, diz Henrique Tomé. 

Mas, em contrapartida, o ouro foi um dos materiais que registou uma subida, nomeadamente por ser visto como um ativo de refúgio.

Recessão à vista? E a resposta do Governo é suficiente?

Ricardo Evangelista, diretor executivo da ActivTrades, prevê “um cenário que deixa antever, antes do final do ano, uma recessão na zona euro” e garante que as perspetivas não são animadoras. “Um agravamento da conjuntura económica dentro da zona euro irá certamente forçar uma revisão das metas económicas. O objetivo para o crescimento do PIB em particular poderá ter que ser revisto”.

João César das Neves mostra-se também cético em relação ao futuro. “É tudo ainda muito incerto, mas até pode ser melhor do que se teme. Claro que também pode ser pior». Face a este cenário, admite que as metas económicas possam ser revistas”.

O mesmo diz Henrique Tomé, analista da XTB, ao garantir que o desfecho desta situação continua a ser uma incógnita, mas lembra que “é importante notar que a Rússia também está a sofrer severas consequências económicas com a guerra. A economia russa continua isolada e o país não tem capacidade financeira para continuar a suportar os custos da invasão na Ucrânia” e, mesmo reconhecendo que é difícil avançar com previsões, afirma que a resolução do conflito poderá chegar a um acordo se voltar a existir espaço para o diálogo entre todos os países envolvidos.

Quanto às metas económicas, o analista afirma que poderão novamente ser revistas e possivelmente em baixa, apesar de “nesta fase ser difícil avançar com projeções, uma vez que existem muitas incertezas nos mercados”. 

Uma opinião partilhada por Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa ao considerar que face a tudo o que está a acontecer “é provável que o Executivo seja forçado a rever em baixa o crescimento do PIB e em alta a inflação projetada para este ano”. 

Resposta do Governo César das Neves admite que o “impacto foi suficientemente rápido e incerto para não ter resposta política evidente, pelo que as críticas não são óbvias. O único ponto em que se pode falar de falha é no apoio às classes mais desfavorecidas, que mais uma vez foram as mais afetadas e não tiveram apoio suficiente”.

Já para Paulo Rosa considera que o Governo tem procurado mitigar os efeitos negativos da guerra na população mais vulnerável, mas acredita que em relação “ao fenómeno nefasto da inflação, o Executivo poderia ter ido mais além, nomeadamente no que concerne à política fiscal dos combustíveis fósseis”.