Carne para canhão

Carne para canhão


Criado pelos índios, o xamã ensinou-lhe a tirar partido das propriedades das plantas que afastam os espíritos malignos


O pregador estrito, de salmo na boca e Bíblia na mão, é um dos tipos característicos do género western. Morris, por exemplo, dedicou-lhe um dos últimos álbuns de Lucky Luke, e o nosso Vítor Péon congeminou uma curiosa figura de reverendo-pistoleiro que não terá passado dos esboços. No álbum desta semana, um desses espécimes é a personagem secundária tóxica da narrativa – à frente de um bando de sicários – e também agent provocateur ao serviço de interesses não muito pios.

Em 1861, o Kansas, estado recente, tornara-se palco da luta entre esclavagistas do Missouri, a leste, e antiescalavagistas do Nebraska, a norte, uma vez que as autoridade estaduais dispunham do poder de optar por um dos sistemas, graças a uma lei de 1854, apontada como uma das causas da Guerra da Secessão, prestes a deflagrar. Markham, assim se chama a criatura, levanta as populações em comícios acalorados contra os malditos esclavagistas, “que recusam o progresso industrial e as novas leis alfandegárias (…), necessárias à recuperação financeira do nosso grande país”; ao mesmo tempo que, obcecado pelo pecado, e em especial com as mulheres “adúlteras”, corre as cidades para fazer “justiça” com as próprias mãos, sendo o companheiro abatido e a mulher levada para o celeiro onde é chicoteada até à morte.

O pregador deixa a sua assinatura no local: uma folha das Escrituras com a parábola da mulher adúltera, presa por um crucifixo invertido e encimada por uma conveniente bandeira da Confederação. Esta criatura temível está, porém, marcada pela perseguição, de que vai tendo suspeitas: um cavaleiro misterioso de quem nada se sabe, vai na sua peugada, pelo rasto de crime que deixa. Ninguém sabe de quem se trata e nós, leitores, também não.

Algumas reminiscências partilhadas dizem-nos que ainda criança se viu órfão após o massacre dos pais – que aparecendo num relance não tinham aspecto de colonos, antes citadinos. Criado pelos índios, o xamã ensinou-lhe a tirar partido das propriedades das plantas que afastam os espíritos malignos e o protegem do dom congénito, benção ou maldição: a capacidade de ver o passado de quantos se cruzam no seu caminho.

Lonesome, de Yves Swolfs (Bruxelas, 1955), autor também da série Durango (1980), com um traço soberbo e dotes de fisionomista, engendrou uma personagem fragmentada, à procura de si própria. Ágil com as armas e arguto, se há coisa de que desconfia é do bicho-homem, sentimento aligeirado quando se depara com uma prostituta honrada ou um jornalista destemido.

Jornalista em cuja boca Yves Swolfs pôs a amarga visão que tem do poder político-finaceiro, sempre por detrás das catástrofes, a Guerra da Secessão, mas que assenta que nem uma luva na que está em curso na Europa: “Falo-lhe de uma casta que nunca sofrerá as consequências da guerra devastadoras que nos prepara… mas da qual, pelo contrário, tirará o melhor partido!…” Ao contrário da carne para canhão, que geralmente nem sabe o que lhe está a acontecer.

BDTeca

ABECEDÁRIO  

M, de Modesto e Pompom (Franquin, 1955). Um excêntrico e irascível Modesto, a namorada Pompom, de pinta adolescente, mas a mais adulta da série, e Félix, um inconveniente vendedor de artefactos que não servem para nada, com a ocasional aparição de três sobrinhos endiabrados. De saída da revista Spirou para a Tintin, Franquin ensaiou aqui situações que viria a desenvolver em Gaston Lagaffe, de novo no primeiro semanário.
 

 

 

LIVROS

Duke – 6. Para Lá da Pista, por Hermann e Yves H. “Postos em fuga no episódio anterior, o sargento Bair e o seu braço direito, o cabo Copeland, conseguiram recuperar alguns homens para juntar à sua causa. Duke e Swift são apanhados pelo grupo conduzido por Blair e têm de largar o dinheiro. São, no entanto, surpreendidos pela intervenção do tenente que os salva. Todo este pequeno mundo, movido por aspirações divergentes, está prestes a penetrar no terrível deserto do Nevada. Mas para lá da pista dominada pelo calor, é o seu destino que eles terão de enfrentar.” (Arte de Autor, Estoril, 2022).

 

Bat Alan – Biografía de un Asesinato Social, de Ramón Boldú. Esta é a história verídica de Alan, um miúdo trasgénero, entusiasta do Batman – era conhecido por “Bat-Alan”, que aos 16 anos se suicidou após um percurso de bullying, nomeadamente na escola. O propósito do autor catalão é o de prevenir e ajudar aqueles para quem a diferença congénita torna a vida impossível. (Edição Astiberri, Bilbau, 2022).