Criado pelo escritor napolitano Maurizio de Giovanni, em 2005, Luigi Alfredo Ricciardi, filho dos barões de Malomonte, originário de Cilento, no sul de Itália, é uma personagem que se estreia em edição portuguesa, na Colecção Aleph, a mesma que publica Dylan Dog, misturando, tal como sucede com o “detetive do pesadelo”, o policial e o sobrenatural. Ricciardi detém uma estranha faculdade, herdada da mãe, que lhe inferniza a existência: junto de um cadáver, consegue ver os últimos momentos dessa pessoa, desde que vítima de morte violenta, crime ou acidente… Esta revelação obteve-a aos cinco anos diante de alguém assassinado por motivos passionais. Vida marcada por um negrume insuportável, Ricciardi é um solitário melancólico, para quem viver um amor é impossível. Conta com os cuidados de uma velha criada; e apenas com o adjunto, o sargento bonacheirão Raffaele Maione, encontra os breves momentos de distensão que a vida lhe permite. A ação decorre no final dos anos 20, em pleno fascismo, que, nas três narrativas deste livro inaugural, apenas aparece de raspão (retratos do Duce e Vítor Manuel III, e uma alusão a um bando de rufias). Na primeira história, intitulada “Dez cêntimos”, recuamos uma década, para 1919, quando o jovem Luigi, chegado a Nápoles para cursar filosofia — a única disciplina que considera apropriada para o tormento em que vive —, se depara com a visão de uma criança doce que vendia flores na rua. Como não lhe bastasse ser pobre, era ainda indefesa; a maldade do mundo não lhe estava vedada; a narrativa seguinte, “Os vivos e os mortos”, temos a pedofilia escondida mas facilitada por quem se move livremente e sem suspeitas; finalmente, “Mammarella”, ou quando um menino-da-mamã – e que mamã… – deixa vir ao de cima anos de recalcamento. O pano de fundo é a excessiva e luminosa Nápoles, estuante de vida e gente, cheia de uma buliçosa azáfama e, ao mesmo tempo, cenário de crime e morte. A cidade aparece como uma grande personagem, a verdadeira parceira das digressões quotidianas de Ricciardi, em cujos becos e encruzilhadas, desvãos e subterrâneos, fluem os dias, enquanto se desenrolam dramas junto a tabernas e salões aristocráticos, sacristias e bordéis, lugares nem sempre frequentáveis. De Giovanni (Nápoles, 1958) não é um autor de fumetti; argumentistas adaptam a narrativa à linguagem BD; com que acerto, só conhecendo o texto matriz para o dizer; o trabalho dos desenhadores, mais expressionista Bigliardo, de traço mais aberto Siniscalchi, é eficaz na transposição para a imagem da atmosfera pesada de crime e morte numa cidade e país ruidosamente a caminho da guerra.
Comissário Ricciardi – Primeiros Inquéritos
Texto Sergio Brancato e Claudio Falco
Desenho Daniele Bigliardo e Luigi Siniscalchi
Editora A Seita, Prior Velho, 2021.
BDteca
Abecedário
B, de Boule & Bill (Roba, 1959). Uma BD superlativa, do melhor que alguma vez se fez no género criança e mascote, ao nível de um Charlie Brown & Snoopy e Calvin & Hobbes. Boule é um rapazinho de uma família de classe média, inspirado no filho de Jean Roba; e Bill um cocker spaniel, que pensa connosco. A vida pura com as atribulações domésticas de todos os dias. Em Portugal a série nunca foi publicada em álbum, exceto em periódicos como os inevitáveis Cavaleiro Andante e Spirou, entre outros. Existem edições brasileiras, já da autoria de Laurent Verron, o continuador designado por Roba.
Livros
Nestor Burma – A Noite de Saint-Germain des Prés, por Emmanuel Moynot, a partir do romance de Léo Malet. Nestor Burma, detetive privado, é uma personagem criada em 1942 para uma série de livros policiais com o título genérico de “Os Novos Mistérios de Paris”. uma espécie de alter ego de Malet (1909-1996), anarquista e meio vadio, poeta e surrealista, escritor de policiais, com múltiplos pseudónimos. “Paris, Verão de 1957. Nunca a fauna das letras e das artes poderia atrair Nestor Burma a Saint-Germain-des-Prés. Mas dois ‘casos’ a rebentar no bairro – um suicídio insuficientemente credível para ser verdade e um avultado roubo de joias – ele é obrigado a arrastar os chanatos até lá… Um inquérito do detetive de choque no 6.º arrondissement da cidade de Paris.” (Gradiva)