Ana João Rodrigues. “A sociedade reconhece a importância do nosso trabalho. Quem não nos valoriza  é o Governo”

Ana João Rodrigues. “A sociedade reconhece a importância do nosso trabalho. Quem não nos valoriza é o Governo”


A investigadora ganhou uma bolsa do ERC que garante dois milhões de euros para perceber de que forma o cérebro perceciona e codifica o prazer e a aversão.


O Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência, que se celebra hoje, resulta “dos esforços da UNESCO, ONU Mulheres, UIT e outras organizações relevantes que apoiam e promovem o acesso das mulheres e raparigas à educação, formação e atividade de investigação científica, tecnológica, de engenharia e matemática”, como explica o site oficial da ONU.

Segundo esta organização, a ciência e a igualdade de género são “vitais” para alcançar os objetivos de desenvolvimento acordados internacionalmente, incluindo a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Por isso, tem auxiliado meninas e mulheres a enveredarem pela ciência e chegarem onde ambicionam. Ainda assim, depois de ter realizado um estudo em 14 países, concluiu que “a probabilidade de mulheres obterem o grau de licenciatura, mestrado e doutoramento em campos relacionados com a ciência é de 18%, 8% e 2%, respetivamente; enquanto as percentagens masculinas são de 37%, 18% e 6%”.

É por estes motivos que a investigadora e professora universitária Ana João Rodrigues, de 40 anos, acredita que esta data não pode continuar a passar despercebida em Portugal. “Vejo a inclusão das mulheres como algo que pode ajudar a diversificar as formas de liderança, as metodologias de interação com a própria equipa, etc. São visões complementares. Quando recruto alguém para a minha equipa, não quero saber se é homem ou mulher: aquilo que me importa é perceber se é competente e tem o perfil adequado”, garante, apelando ao próximo Executivo que invista mais na Ciência.

Como surgiu o interesse pela Ciência?

Nasci curiosa, sempre fui curiosa e a curiosidade cresceu conforme eu fui crescendo! E isso tem a ver com as minhas escolhas pessoais porque, desde miúda, sabia que queria ser cientista. Só que não sabia qual era a minha área predileta porque a Biologia, a Geologia, a Astronomia, a Paleontologia, etc. fascinavam-me. Lembro-me do livro de que mais gostei: o meu pai tinha um livro que se designava por Sabia Que…, uma enciclopédia para adultos, e eu com cerca de seis anos adorava-o! Quando já estava mais crescida e conseguia compreender aquilo que estava escrito, foi incrível. Recordo-me particularmente de uma história que me marcou: um peixe que devia estar extinto há milhões de anos, o celacanto, e pescadores descobriram-no no litoral da África do Sul em 1938. Entretanto, outros espécimes foram identificados e ele continua a existir. “Como é possível? Como houve a extinção? Como há espécimes que sobreviveram? O que tinham de diferente?” eram algumas das perguntas que fazia. As minhas tias dizem-me que este espírito inquisitivo sempre existiu em mim na medida em que, quando estavam a fazer um bolo, por exemplo, perguntava o motivo pelo qual adicionavam os ingredientes por aquela ordem.

Sentiu que estava mais inclinada para esta área ou gostava de disciplinas relacionadas com artes e humanidades?

Genericamente, era boa aluna e tinha interesse em explorar várias áreas do saber. Havia realmente um gosto diferente pelas ciências, não vou negar, mas adorei Filosofia e Português. Sempre gostei muito de aprender coisas novas. Acho que não era boa a artes. Tenho uma vertente criativa, mas não no aspecto prático. Tinha colegas que faziam desenhos espectaculares e eu não era excecional – mas não temos de ser bons a tudo! Quando estudava Biologia, tentava saber mais do que aquilo que vinha nos livros, pensava em possibilidades de experiências para testar x e y… Em termos artísticos, principalmente na música, tenho limitações!

A escolha da licenciatura em Biologia Aplicada parece ter surgido natural e gradualmente.

Durante o Secundário, foi ótimo saber mais sobre Gregor Mendel e as ervilhas! Era fantástico perceber como é que ele lançou as bases da genética. E a escolha foi um bocado caricata: queria investigação, portanto, ponderei seguir Ciências Farmacêuticas ou Bioquímica. Estava na fila para escolher o curso com a minha melhor amiga que queria Medicina Dentária, e vi que existia o curso de Biologia Aplicada na Universidade do Minho. Pensei: “Se calhar, não é uma má opção!”. Entrei e não me arrependo nada! Desde que entrei no laboratório e fiz uma experiência, sabia que era aquilo que queria fazer. Cimentei ainda mais a minha convicção. Já no Ensino Secundário, em Química, criámos cristais e aquilo para mim era único! Acordava e estava ansiosa por ver como se tinham formado. 

O que a marcou mais durante o primeiro ciclo de estudos?

Tive a sorte de ter bons professores e colegas, assim como experiências interessantes em diversas unidades curriculares. Não consigo identificar um dia que tenha mudado radicalmente a minha vida. Nessa altura, estava convicta e era difícil mudar de ideias porque o meu percurso estava definido na minha cabeça. 

Da licenciatura, seguiu diretamente para o doutoramento.

Sim. Acabei a licenciatura com boa média, consegui uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e iniciei o doutoramento em Ciências da Saúde, na especialização em Ciências Biológicas e Biomédicas. Fiz o meu estágio final em Leiden, na Holanda, e trabalhei com uma doença neurodegenerativa e um modelo animal muito simples. A Doença de Batten manifesta-se desde cedo e é rara. No doutoramento, trabalhei com uma proteína que está envolvida na Doença de Machado-Joseph, conhecida também como ataxia espinocerebelosa. 

Que importância teve este trabalho?

Foi identificada, pela primeira vez, em doentes com ancestrais portugueses e tinha um grande número de casos nos Açores. Atualmente, sabemos que existiram outros focos para a mutação que há, mas foi associada ao nosso país durante longos anos. Pretendíamos entender qual era a função normal dessa proteína, não na doença, e estudámos um animal, o nemátode, que não a tinha. E fomos ver quais eram as consequências disto. Estive na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), por um ano, e, depois, na Finlândia durante quatro meses. Foi enriquecedor dos pontos de vista científico e pessoal.

Adaptou-se bem a essas realidades?

Correu tudo bem! Sou bastante comunicativa e extrovertida, gosto de conhecer outras culturas e pessoas e a minha integração, portanto, tipicamente é fácil. Também tenho uma mente muito aberta e tento tirar o melhor de x ou y experiência.

Imaginou ficar num desses países?

Passou-me pela cabeça numa fase mais anterior da minha vida. A componente pessoal pesa muito e eu tenho uma família muito próxima. Isso pesou imenso na minha decisão. Não me revejo no modelo de educação dos EUA, revejo-me mais no de outros países da Europa, por exemplo. Seria vantajoso do ponto de vista profissional, mas não do pessoal. Até porque acho que fazemos boa Ciência cá!

Tem uma filha. 

A Ana Pedro vai fazer oito anos e é uma miúda super curiosa. Acho que não vai seguir as minhas pisadas, mas também não definiu bem aquilo que quer ser. Ainda é cedo, contudo ela pensa “fora da caixa” e parece-me que tem uma veia artística mais acentuada. Não a pressiono e estarei aqui para ajudá-la independentemente do caminho que seguir, só quero que seja feliz. No meu caso, acho que as neurociências ajudam a compreender alguns dos nossos comportamentos, das nossas emoções e julgo que isto é fascinante. Por isso é que, hoje em dia, não me vejo realmente a fazer outra coisa. 

Numa entrevista ao Observador, mencionou que, quando ganhou a bolsa do Conselho Europeu de Investigação (ERC), disse à sua filha: “’Lembras-te das noites que ficaste a dormir em casa dos avós porque a mãe chegava tarde? Então, olha: a mamã conseguiu”.

Ela teve a perceção de que era algo muito importante e de que devíamos estar orgulhosos. Não tanto a nós, mas a outras pessoas mostra que tem orgulho em dizer que a mãe é cientista. É claro que não é uma profissão com um horário fixo: viajamos, vamos a congressos, temos de trabalhar até mais tarde, submeter projetos e candidaturas… E há momentos em que estamos mais assoberbados. E, obviamente, como é muito exigente e há experiências que correm mal, novos desafios que se avizinham, técnicas… Os dias são diferentes e isso requer um esforço elevado que se reflete no contexto familiar: temos menos disponibilidade e, muitas das vezes, trabalho depois de ter deitado a minha filha. Tento manter um bom equilíbrio e passar tempo de qualidade com ela.

A equipa que formou em 2013, no Instituto de Investigação em​ Ciências da Vida e Saúde (ICVS), da Escola de Medicina da Universidade do Minho, é aquela que se candidatou à bolsa?

Algumas pessoas já saíram, mas mantenho duas que são “os meus braços direitos”. São investigadoras espectaculares e tenho imensa sorte. Entretanto, adicionámos novos membros – de Biologia, Psicologia, Matemática, Física, etc. – e trouxeram novas competências e visões. Isto é vantajoso porque conseguimos ir mais além e a própria natureza do projeto, que é multidisciplinar, requer que haja competências distintas.

Alguma vez imaginou que chegaria a este patamar?

Valorizo-me: sei quais são as minhas qualidades, os meus defeitos, mas sei que sou dedicada, motivada, trabalho muito quando quero atingir um objetivo e tipicamente faço o meu melhor quando quero alcançá-lo. E isso, para mim, é suficiente porque dar o meu melhor é aquilo que tenho de fazer. Quando comecei, na Ciência, não via isto a acontecer. Sabia que tinha um currículo competitivo, mas esta bolsa tem centenas de candidatos. É claro que me candidatei porque tinha uma possibilidade de receber a bolsa, mas não sabia se tal aconteceria. À medida que o meu currículo se foi construindo e consolidando, sabia que teria uma hipótese: mas reduzida! Tinha a noção de que estaria a competir com colegas ótimos. A questão é que não recebem assim tantas candidaturas quanto podemos pensar porque os candidatos têm de fazer um esforço quase hercúleo.

Como foram esses tempos?

Tive uma ideia e disse: “Isto nunca foi feito, quero fazê-lo”. Com base nos resultados que tinha no laboratório, aquele era o próximo passo. Não tinha as ferramentas para chegar lá e sabia que precisava de um financiamento ambicioso que só uma ERC me poderia dar. De outra forma não seria possível porque é um investimento muito arriscado para as fontes tradicionais de financiamento. Tinha a consciência de que a ideia era boa, foi maturando e decidi que queria responder a uma pergunta. Comecei a criar o projeto na minha cabeça, estudei imenso numa fase inicial e desenvolvi o projeto e escrevi-o.

Como é que os neurónios conseguem “perceber” se um estímulo é positivo ou negativo?

Sabemos que os neurónios mudam de atividade quando estão perante um estímulo positivo ou negativo. E essa mudança, de algum modo, tem repercussões nas áreas cerebrais para as quais comunicam e isso traduz-se num comportamento apetitivo ou aversivo. Na área do cérebro que estou a estudar, também existe a evidência de que os neurónios mudam a sua atividade de acordo com os estímulos, mas não descobrimos ainda que neurónios são esses e como passam a informação para as áreas com as quais estão conectados. Queremos registar a atividade destes neurónios e os mensageiros químicos que são enviados para fazer a comunicação da mensagem. A ideia de tentar perceber como isto é codificado não é pioneira, mas as ferramentas e a forma como vamos olhar sim: olhamos com uma resolução e uma especificidade que, até à data, não era possível. 

Estão próximos da resposta?

Não! [risos] E os dados que recolhemos até à data mostram que ainda é mais complexo do que aquilo que já antecipávamos e, portanto, não estamos perto. É essa a beleza da Ciência: temos uma hipótese, criamos as ferramentas e desenvolvemos as tarefas para testá-la. Muitas das vezes, a hipótese é falsa mas temos dados que nos fazem perguntar outras coisas. E quando temos resultados que até nos levam num sentido diferente daquele que antecipávamos… Há pessoas que ficam frustradas com isso, mas eu fico excitada! Cheguei a esta área do prazer e da aversão precisamente porque no meu pós-doutoramento tinha um conjunto de dados que eram paradoxais em relação à literatura que exista à época. Comecei a trabalhar com modelos de stress pré-natal e não com este tema. Depois é que evoluí e este tornou-se o meu foco de interesse. O meu próprio percurso demonstra que tenho várias coisas que aprecio. Comecei numa doença neurodegenerativa, fui perceber a função normal de uma proteína, passei para stress pré-natal e migrei posteriormente para o prazer e a aversão. 

Pondera regressar a um dos temas ou ficarão em stand-by?

Quando estudámos o modelo de stress pré-natal, notámos que tinha alterações bastante significativas no circuito do prazer. E que isto podia explicar porque é que mais tarde estes animais tinham um fenótipo do tipo depressivo e não sentiam prazer. Algumas das alterações moleculares que observávamos não batiam muito certo com a bibliografia existente. E foi aí que tentei entender como é que o prazer era codificado no nosso cérebro nesta área muito particular que é o nucleus accumbens. Em paralelo, usamos esse modelo como modelo de disfunção do circuito: sabemos que induz alterações no mesmo e potencia o aparecimento de défices de prazer, por exemplo. 

Esta bolsa é de consolidação de carreira. Como é que os dois milhões de euros serão atribuídos?

O pagamento é faseado, o dinheiro vai para a universidade e é dividido: uma parte é para recursos humanos – pagar aos existentes e àqueles que contrataremos –, uma substancial para adquirir equipamentos novos de que precisávamos, gastos rotineiros do laboratório e missões da equipa – visitas a congressos, a outros laboratórios, vindas de investigadores colaboradores ao nosso laboratório – e disseminação de Ciência para a comunidade porque é algo que faço desde 2008. Temos o dever de comunicar com a sociedade e mostrar a importância que a Ciência tem no nosso dia-a-dia, do conhecimento científico e tornar a distância entre o cidadão e o cientista mais curta. Antes da pandemia, dinamizávamos imensas iniciativas. Já tivemos aqui pessoas entre os quatro e os 100 anos! Como cientista, sinto-me realizada a diferentes níveis: quando as crianças nos agradecem e dizem: “Já sei aquilo que quero fazer”… Não há palavras para expressar aquilo que sentimos! E quando as pessoas idosas vêm cá, têm a oportunidade de contactar com médicos, investigadores, percebem aquilo que fazemos e colocam questões que nunca colocaram na vida. E quando, no final da sessão, agradecem porque fizeram as perguntas e importámo-nos com eles. Os seniores são uma fração negligenciada da sociedade e sentirem que desenhámos experiências e palestras especificamente para eles é uma sensação fantástica. Isto faz parte da minha missão como cientista e, para além de achar que tenho de fazê-lo, tenho gosto!

Dinamizaram iniciativas online?

Temos feito algumas, mas muito mais residuais. A adesão é muito menor porque as pessoas gostam de vir ao laboratório e “meter as mãos na massa”. Tínhamos uma palestra interativa onde podiam colocar questões, viam vídeos, havia um médico e um cientista a falar e fomentávamos sessões práticas adequadas a cada faixa etária para que entendessem determinado fenómeno. Já isolámos o ADN da banana e os miúdos veem aquele “novelo” e adoram porque é uma coisa visual. Já fizemos uma sessão de CSI também em que recolhiam a amostra e fizemos mesmo um PCR para amplificar genes e identificavam quem era o criminoso! Com os mais velhos, recorremos ao tangram e a jogos que usamos na Psicologia para avaliar a função cognitiva. Fizemos questionários de curiosidades científicas e os idosos já chegaram a fazer uma peça de teatro e dançar para nós em troca destas iniciativas que lhes proporcionamos! Chegámos a receber 700 pessoas por dia e dividíamos cada grupo.

Tem refletido acerca daquilo que explorará futuramente?

Se tivesse de me candidatar novamente a uma ERC, já sabia aquilo que escreveria. Não tenho é tempo para pôr as minhas ideias em prática. Que, muitas das vezes, nem estão relacionadas com esta questão do prazer e da aversão. Na semana passada, estava a falar com um colega meu e disse-lhe: “Estou a pensar em fazer outro doutoramento” e ele riu-se. Perguntou em que área seria e eu respondi: “Se calhar em Física”. Gostava de perceber o início e o fim do Universo: o que há para além dele? Está em expansão, contração…? O que existe para além dele? Continuo a ser tão curiosa como era em pequena.

Que unidades curriculares leciona?

Em 2020, o plano de estudos do curso de Medicina mudou. É diferente dos planos clássicos, digamos assim, e torna-se complicado enumerar as disciplinas. Anteriormente, dava Bioquímica. 

Em maio do ano passado, em entrevista ao i, o psiquiatra Pedro Morgado, que também é investigador na Universidade do Minho, disse que “os médicos devem, ao longo da sua formação, ter uma imersão em todos aqueles que são os diferentes componentes da vida do ser humano”. Explicou que os alunos são convidados a refletir sobre obras literárias, mas também falam sobre cinema, pintura e muitas outras atividades que fazem a ponte entre as humanidades e a Medicina. Concorda com esta reformulação?

Totalmente, o novo percurso engloba várias áreas do saber! Criamos percursos individualizados em vez de médicos que são todos iguais. Precisamos de profissionais diferentes: no terreno, a gerir as unidades de saúde, a fazer ciência, etc. Temos uma grande parte do currículo dedicada à comunicação e à empatia médico-doente. Nós também, docentes, com o novo percurso aprendemos bastante.

Transmitir os seus conhecimentos sempre foi um objetivo ou a oportunidade de lecionar apareceu e aceitou-a?

Comecei a minha atividade no laboratório e o ensino foi surgindo. Gosto de dar aulas, especialmente se forem interativas, onde há partilha de informação, perguntas e respostas – não aprecio tanto o formato de seminário, pois estou a debitar matéria – e acho que o nosso curso é ótimo porque permite ter esta relação próxima com os alunos. Mas eu não quero somente dar aulas, não me vejo a fazer isso porque quero fazer Ciência. Admiro imenso quem se dedica exclusivamente ao ensino porque ensinar é exigente física e psicologicamente. Respeito e valorizo muito os docentes: uma boa educação é a base da sociedade. Sem ela, não vale a pena trabalhar nas fileiras de cima porque não vamos evoluir.

Os investigadores não são devidamente valorizados em Portugal tal como os professores?

A sociedade reconhece a importância do nosso trabalho. Principalmente, desde o início da pandemia. Quem não nos valoriza é o Governo: há falta de visão e este é um grande problema. Maior do que a falta de investimento, na minha ótica. Não há uma visão a 10 ou a 20 anos para a Ciência do país e isto é o calcanhar de Aquiles em Portugal. Precisa de estabilidade, regularidade nos concursos, temos de saber se os concursos vão abrir, quantos projetos vão dar, que posições existem… E isto muda a cada ciclo político. A visão estratégica não tem sido conseguida. As pessoas já não pensam que somos “maluquinhos que estão no laboratório”, esse tipo de estigmas está a desaparecer. Já houve alturas, e aqui tenho de dizer que o professor José Mariano Gago [ministro da Ciência e Tecnologia entre 1995 e 2002] foi pioneiro. Aumentou o número de doutoramentos, investiu na Ciência como nunca antes… Mas a Ciência vive de ciclos e isto não pode acontecer. Até há bem pouco tempo, nem à licença de maternidade ou paternidade tínhamos direito. Atualmente, é diferente: existe a licença paga e está contemplada. E a maioria dos investigadores não tinha contrato de trabalho, era considerado bolseiro. Isto reflete a precariedade que existe. O país investiu nestas pessoas e elas veem-se obrigadas a emigrar porque não têm oportunidades cá.

Conhece muitos casos que exemplifiquem a “fuga de cérebros”?

Sim, muitos colegas que emigraram. Mas mais assustador do que isso é ver que há muitos que sempre desejaram ser cientistas, mas desistiram da Ciência. E isso preocupa-me ainda mais porque são pessoas que sei que tinham um perfil adequado para esta carreira. Devido à falta de oportunidades e à precariedade vivida anos a fio, viram-se obrigados a optar por outro caminho e ter estabilidade financeira. Não acho mal que as pessoas escolham outros caminhos: os doutorados não têm de ficar na academia, deviam até ser contratados pelas empresas. Isto acontece noutros países, mas aqui não.

Devido ao custo que teriam de suportar?

Exato. Há competências que uma pessoa doutorada tem que não têm necessariamente a ver com expertise técnico na área em que se doutorou. Tem a ver com as capacidades de síntese, de olhar para um problema e resolvê-lo, de análise, de ser meticuloso. O conhecimento científico é independente da área de atuação. O tecido empresarial não aproveita estas pessoas.

Não são incentivados a tal pelo Governo porque a maioria dos deputados não é investigador e não conhece a vossa realidade?

Um ou outro deputado que sabe. Alguns têm conhecimento, são de partidos diferentes – estou a ser apartidária – e tentam lutar. Se os trabalhadores da CP fizerem greve, o impacto é óbvio e imediato. Se os cientistas fizerem greve, o que é que acontece? Muito pouco.

Mas será sentido mais tarde.

O impacto de ações concertadas dos investigadores é residual, não é evidente. A Ciência acontece a longo prazo e a sociedade não tem noção destas dificuldades e este assunto nunca é suficientemente debatido. 
Se os cientistas tivessem feito greve logo no início da pandemia, provavelmente, ainda não teríamos a vacina.
E o desenvolvimento de uma vacina só foi possível porque há décadas de investimento em pessoas, tecnologia e plataformas. Os cientistas não se formam de um dia para o outro, o expertise científico demora a ser construído. Conseguimos dar uma resposta num curto espaço de tempo porque tínhamos investigadores já formados. As pessoas não têm noção, por exemplo, da quantidade de estudos necessários para que um comprimido chegue a uma farmácia. Há fármacos que não funcionaram, hipóteses foram rejeitadas… É um trabalho difícil de medir imediatamente porque só tem reflexo depois. O professor Mariano Gago permitiu que a Ciência crescesse em Portugal e, por isso, temos cientistas de renome. Por outro lado, aquilo que acho é que a FCT devia ser independente do Governo e ter um orçamento próprio. Isso permitiria as tais regularidade, constância, etc. Como estamos a falar sempre de medidas para a Ciência, que depois não têm ligação com outras partes da mesma, há pessoas que têm salário e não têm verbas para investigação e vice-versa. As medidas estanques vão permitindo que se vá “nadando” pela Ciência, mas nunca nos transformarão num país competitivo. 

Quais são as suas maiores referências?

Tenho duas que, para mim, são mulheres com cérebros espectaculares e cientistas excelentes. Uma é a Rita Levi-Montalcini, uma investigadora italiana judia: primeiro, a família não queria que seguisse a vida académica porque isso poderia reduzir a probabilidade de casar e ter uma família. Ela decidiu que queria e, contra tudo e todos, conseguiu singrar. E no contexto da II Guerra Mundial montou um laboratório no quarto. Isto demonstra a paixão e a resiliência que é preciso ter. Identificou um fator de crescimento neural e foi galardoada com o Prémio Nobel da Medicina em 1986. E admiro-a também porque tentou que outras mulheres tivessem oportunidadesç. Inclusivamente em países menos desenvolvidos. E a segunda é a Barbara McClintock: tal como a Rita, teve de enfrentar a família. Estudava o milho e os resultados dela pareciam apontar para algo que ia contra os dogmas que existiam na Genética. Apresentou esses dados numa conferência e a comunidade científica “caiu-lhe em cima”, duvidando e questionando-a. Ela continuou a desenvolver o seu trabalho e cerca de uma década mais tarde algumas equipas científicas validaram aquilo que tinha demonstrado e, em 1983, recebeu igualmente o Prémio Nobel da Medicina. Ela dizia: “I knew I was right”. Sabia que estava certa mas, mesmo assim, manteve-se no seu canto, continuou a fazer as suas experiências e não se envolveu em conflitos. Existem outros exemplos, mas estas mulheres inspiram-me. 

Hoje celebra-se o Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência, que foi implementado em 2015. Esta data é devidamente celebrada em Portugal?

Acho que passa despercebida. É importante que a celebremos: existem homens e mulheres na Ciência, mas a verdade é que há diferenças de oportunidade para os dois géneros. Estamos a falar de Portugal, mas há países onde as mulheres nem sequer podem ter direito à educação e não enveredam por estas áreas por isso mesmo. 

Tanto que, segundo a ONU, “de acordo com um estudo levado a cabo em 14 países, a probabilidade de mulheres obterem o grau de licenciatura, mestrado e doutoramento em campos relacionados com a ciência é de 18%, 8% e 2%, respetivamente; enquanto que as percentagens masculinas são de 37%, 18% e 6%”.

Temos de festejar para dar nota de que temos de trabalhar todos, enquanto sociedade, para reduzir estas desigualdades e permitir igualdade de oportunidades. É importante assumir que existem diferenças entre os sexos, mas têm de ser encaradas como vantagens porque se existir diversidade nas organizações, tal será melhor e ambicioso. As características individuais e aquelas que são associadas a cada género devem ser aproveitadas e não vistas como depreciativas. Vejo a inclusão das mulheres como algo que pode ajudar a diversificar as formas de liderança, as metodologias de interação com a própria equipa, etc. São visões complementares. Quando recruto alguém para a minha equipa, não quero saber se é homem ou mulher: aquilo que me importa é perceber se é competente e tem o perfil adequado.