Um Orçamento enganador


Diz-se que o diabo está nos detalhes, mas só por distração se pode achar que as divergências eram sobre detalhes ou pormenores. Quem ouvisse os deputados do Partido Socialista durante o debate orçamental poderia cair nesse equívoco, tal era a vontade de discutir pela retórica para fugir ao conteúdo. Tentar confundir o voto do Bloco…


Diz-se que o diabo está nos detalhes, mas só por distração se pode achar que as divergências eram sobre detalhes ou pormenores. Quem ouvisse os deputados do Partido Socialista durante o debate orçamental poderia cair nesse equívoco, tal era a vontade de discutir pela retórica para fugir ao conteúdo. Tentar confundir o voto do Bloco de Esquerda com o da direita, criar a ilusão de que existe uma disputa acirrada com uma inexistente alternativa orçamental do PSD ou agitar a chantagem de uma crise política que exigiria um voto cego – de tudo se viu. O tiro passou ao lado.

Como ficou claro durante o debate, o Governo “não cai nem se levanta” porque a crise não é política e o que está em causa no Orçamento do Estado para 2021 vai à raiz desta crise, é saber se o SNS responde à pandemia e se o país resiste ao cataclismo económico e social. É um debate em que a direita nem levanta a cabeça, remetendo-se para o papel de comentador da disputa alheia que opõe as duas únicas alternativas orçamentais em presença, a do Governo e a do Bloco de Esquerda.

As razões para votar contra o Orçamento na generalidade nada têm a ver com vontade de guerra ou de paz, e mesmo que o Governo escolha agora declarar-nos inimigos, o Bloco não se desviará um milímetro do compromisso assumido em 2019 quando o PS recusou negociar um acordo para a legislatura: dialogar sempre mas analisar cada proposta e cada Orçamento pelo seu conteúdo.

Este Orçamento tem um problema de origem, assumido pelo Governo, que é ser um Orçamento de continuidade numa altura em que o mundo mudou – ficou a ser de estagnação, quando o país precisa de reformas para responder à crise. É preciso contra-argumentar a retórica do “Orçamento mais à esquerda desde o 25 de Abril” com a realidade dos números porque essa será, muito breve, a realidade do país. Há medalhas que não se carregam por decreto.

Nenhum Orçamento de esquerda assumiria o objetivo de baixar o défice em tempos de crise económica. Este Governo não só o fez como escolheu a consolidação num ano em que não existe qualquer pressão europeia, até porque a maioria dos países na zona euro está a investir mais do que Portugal no combate à crise.

Este Orçamento falha no compromisso político sobre a legislação laboral que ainda impõe as regras da troika e sobre a proteção dos trabalhadores perante uma nova vaga de despedimentos.

Mas, além disso, este é um Orçamento de remendos. Na saúde, os anúncios constantes não resistem aos sucessivos fact checkings. “Enganador” foi a expressão escolhida por um desses verificadores de factos para classificar as afirmações do Governo, em particular do primeiro-ministro, sobre o reforço orçamental do SNS em 2021. Apesar do jogo de “lançamento de números”, a transferência para o SNS no próximo ano, com todas as exigências que a pandemia vai colocar, tem um reforço de apenas 0,03% face ao executado em 2020.

Mesmo com uma pandemia que desafia todos os dias os limites do SNS, houve uma redução do número de médicos em 2020. Mesmo sabendo que há milhões de exames, consultas e cirurgias por recuperar, o Governo continua a anunciar contratações que correspondem às necessidades identificadas numa outra vida, pré-covid.

Olhemos então para a promessa de 4.342 profissionais com contrato anunciado pelo Governo: 1500 vagas para médicos vão a concurso, e cerca de um terço ficará por preencher, previsão do Governo, porque não se formam médicos suficientes e não há qualquer plano para os ir buscar ao privado; está prevista a aposentação de 434 médicos especialistas ao longo de 2021, já só sobram 600 médicos. Nas restantes profissões o Governo vai regular o vínculo de 2200 profissionais, mas estas pessoas já trabalham no SNS com contratos de 4 meses. Do reforço líquido de 4.200 profissionais, anunciado pelo Governo, teremos, na melhor das hipóteses, apenas 1.500 pessoas a entrar no SNS e na sua maioria só no último trimestre de 2021.

É isto que nos separa. Não a interpretação dos números mas saber se o SNS vai falhar ou vai responder ao país em 2021. E é por isto que este é um Orçamento enganador, porque promete o que sabe que não pode cumprir.

Uma coisa é certa, se não houver recursos para o SNS, a resposta à pandemia transformar-se-á num negócio de milhões para os privados e no dia seguinte sobrará muito pouco do SNS para responder pelo país. Não somos reféns desse nem de nenhum outro interesse, este é o momento de defender o SNS e o país.

 

Deputada do Bloco de Esquerda