Costa ou Montenegro. Quem tem a solução para a crise da habitação?

Costa ou Montenegro. Quem tem a solução para a crise da habitação?


Enquanto Costa tentou travar a especulação e reforçar o papel do Estado no setor, Montenegro apostou na dinamização do mercado privado e no incentivo à construção. Políticas diferentes com o mesmo objetivo: acabar com a crise do século e garantir habitação acessível. Estávamos num bom caminho com o executivo atual ou devemos recuar à visão…


GOVERNO COSTA (2022-2024)
Intervenção do Estado no mercado e limitar AL

Durante o seu último mandato (2022-2024), o Governo de António Costa colocou a habitação no centro da sua agenda política, mas não esteve isento de críticas.

Programa ‘Mais Habitação’

Uma das medidas mais emblemáticas do Governo de Costa foi o programa “Mais Habitação”, anunciado em 2023. Este pacote visava aumentar a oferta de habitação acessível e combater a especulação imobiliária através de um conjunto de intervenções legislativas e financeiras. Entre as principais medidas destacavam-se:

– Limitação ao Alojamento Local: Suspensão da emissão de novas licenças para alojamento local em zonas de maior pressão urbana.

– Rendas Forçadas: O Estado passou a ter o direito de arrendar forçadamente casas devolutas há mais de dois anos em zonas de alta pressão habitacional.

– Fim dos Vistos Gold: A revogação dos vistos gold para aquisição de imóveis, de forma a reduzir a pressão especulativa sobre o mercado imobiliário.

– Apoio ao Arrendamento: Um novo programa de subsídios ao arrendamento para famílias de classe média e baixa.

– Redução dos impostos sobre o arrendamento: Os senhorios que colocassem as casas em arrendamento habitacional beneficiavam de um novo enquadramento fiscal e ficavam isentos de tributação em sede de IRS.

– Limitação do aumento da renda: As rendas dos novos contratos só podiam ter um aumento de 2% face ao valor do contrato anterior.

– Isenção de mais-valias: A venda de terrenos para construção ou de imóveis que não sejam primeira habitação passava a ter isenção de mais-valias, nos casos em que o valor da venda fosse usado para amortizar o crédito da habitação permanente (do próprio ou descendentes). A venda de imóveis ao Estado também passava a estar isenta da tributação de mais-valias em sede de IRS e IRC.

Apesar das intenções, as medidas do “Mais Habitação” geraram forte resistência de vários setores. Desde logo, a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) criticou a limitação ao alojamento local e o fim dos vistos gold, argumentando que essas medidas poderiam afastar investimento estrangeiro e prejudicar a construção de novos empreendimentos.

Vários municípios, incluindo Lisboa e Porto, contestaram o arrendamento forçado de casas devolutas, invocando problemas legais e administrativos que poderiam dificultar a aplicação da medida.

Também a Associação Lisbonense de Proprietários denunciou o arrendamento forçado como uma forma de expropriação encapotada que punia quem tinha imóveis devolutos sem oferecer incentivos para os colocar no mercado.

Além disso, vários especialistas alertaram que a simples intervenção do Estado sem um aumento significativo da oferta pública de habitação poderia não ser suficiente para resolver o problema estrutural do mercado e que medidas tão restritivas poderiam afastar investidores internacionais.

Investimento em Habitação Acessível

No âmbito da habitação acessível, o Governo lançou um investimento de 2,4 mil milhões de euros, em parte financiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), para a construção e reabilitação de habitações públicas. O objetivo era construir ou requalificar 26.000 fogos até 2026, mas o Governo já admitiu atrasos na construção. Este programa centra-se no papel essencial das autarquias locais, que devem elaborar e apresentar uma Estratégia Local de Habitação ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), enquadrando e programando todos os investimentos a serem apoiados em cada território.

A eficácia destas políticas foi limitada por diversos fatores, entre eles os atrasos na construção de novas habitações, resistência do setor privado e a complexidade burocrática. Apesar do apoio ao arrendamento, os preços das rendas continuaram a subir em Lisboa e Porto, com aumentos médios superiores a 10% ao ano.

Iniciativas das Autarquias

Durante o período do Governo de Costa, a Câmara Municipal de Lisboa, através do programa “Renda Acessível”, destinou centenas de milhões de euros à construção e reabilitação de fogos para arrendamento acessível, como os da antiga Manutenção Militar ou de Entrecampos.

Para apoiar munícipes no pagamento de rendas no mercado privado, a Câmara lançou concursos para o Subsídio Municipal ao Arrendamento Acessível. O 4º concurso, realizado entre setembro e outubro de 2023, resultou na celebração de 324 contratos de atribuição de subsídio.

No Porto, a autarquia reforçou a aposta na reabilitação de bairros sociais, através do programa “Porto com Sentido”. Foram adquiridos imóveis privados para alargamento da oferta de habitação a preços acessíveis.

Apesar das iniciativas implementadas, a Câmara do Porto enfrentou críticas relacionadas com a eficácia das políticas habitacionais. Em sessões da Assembleia Municipal, foram expressas preocupações sobre a necessidade de medidas mais robustas para enfrentar a crise da habitação.

GOVERNO MONTENEGRO (2024-2025)
Lei dos Solos e incentivo à nova construção

O Governo liderado por Luís Montenegro durou apenas 11 meses. Um tempo demasiado curto para permitir avaliar o impacto das medidas para travar a crise da habitação, mas o suficiente para perceber que em nada se assemelham às do anterior executivo.

Investimento em Habitação Acessível

Para dar resposta às dificuldades habitacionais, o Governo lançou, em setembro de 2024, um pacote financeiro no valor de 2 mil milhões de euros. O objetivo principal era garantir a construção de 33.000 novas habitações até 2030, das quais 10.000 seriam totalmente financiadas pelo Estado, enquanto as restantes 23.000 teriam 60% dos custos cobertos por subsídios públicos. Esta foi uma das maiores intervenções públicas no setor habitacional nas últimas décadas e visava especialmente famílias de baixos rendimentos e a classe média.

Apoio aos Jovens na aquisição de casa

A dificuldade dos jovens em adquirir a sua primeira habitação foi outra preocupação central. Assim, desde agosto de 2024, jovens até 35 anos passaram a beneficiar de uma isenção do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e do Imposto de Selo (IS) na compra da primeira casa. A isenção aplica-se a imóveis com valor até 316.272 euros e, para valores superiores, até ao limite de 633.453 euros, os compradores mantêm o desconto máximo aplicável ao escalão anterior. Na prática, isto significou uma poupança de até 13.378 euros na compra de uma casa de 300.000 euros.

Outra medida essencial foi a criação de uma garantia pública para permitir que jovens entre os 18 e os 35 anos pudessem obter financiamento a 100% na compra da sua primeira habitação. O Estado garantiu 15% do valor da transação, permitindo que os bancos financiassem a totalidade do preço do imóvel. Esta garantia tem uma duração de 10 anos e extingue-se caso todas as obrigações do mutuário sejam cumpridas.

A polémica nova Lei dos Solos

Das várias políticas de habitação de Montenegro, uma acabaria por se tornar o seu calcanhar de Aquiles: a alteração à Lei dos Solos. Esta nova lei permitiria reclassificar terrenos rústicos para urbanos, com o objetivo de aumentar a oferta de habitação acessível e mitigar a crise habitacional.

O Governo argumentava que, ao facilitar a urbanização de terrenos rústicos, seria possível ampliar significativamente a disponibilidade de terrenos para construção de habitação a preços controlados. O objetivo seria garantir que pelo menos 70% do terreno convertido fosse destinado a habitação pública ou a preços controlados.

Mas nem todos concordaram. De ambientalistas e especialistas em urbanismo, aos partidos mais à esquerda, foram vários os que apontaram preocupações, como o risco de especulação e esquemas de corrupção ao reclassificar terrenos rústicos, o que poderia facilitar a transformação de terrenos agrícolas ou ecológicos em áreas urbanizáveis sem critérios claros; a potencial ameaça à biodiversidade, aos solos agrícolas e florestais; e um consequente retrocesso nas políticas de ordenamento do território estabelecidas desde os anos 80, que visavam proteger reservas agrícolas e ecológicas nacionais.

Mas a polémica só ganhou outros contornos mais dramáticos com a revelação de possíveis conflitos de interesse com membros do Governo. O primeiro a cair foi Hernâni Dias, secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, que se demitiu após notícias sobre a criação de empresas imobiliárias que poderiam beneficiar da nova lei dos solos, levantando suspeitas de conflito de interesses.

Depois, foi o Governo. A notícia de que a família de Luís Montenegro alegadamente possuía uma empresa ligada ao ramo imobiliário que poderia beneficiar das alterações à lei caiu como uma bomba. O primeiro-ministro negou qualquer conflito de interesses, garantindo que a empresa nunca esteve envolvida em atividades relacionadas com a compra ou venda de imóveis ou terrenos. Como se veio a saber mais tarde, a Spinumviva – empresa fundada por Montenegro antes de entrar na política – é afinal uma consultora. Mas o caos estava instalado e as dúvidas acerca da atividade e faturação desta empresa eram tantos, que nenhum esclarecimento conseguiu evitar a reprovação da moção de confiança que levou à queda do Governo.

Parceria com autarquias

As autarquias tiveram também um papel essencial na mitigação da crise habitacional, em parceria com o executivo. Até outubro de 2024, 88% dos municípios portugueses estavam a implementar Estratégias Locais de Habitação. Estas estratégias identificaram cerca de 86.000 famílias a viver em condições indignas e definiram programas de investimento para a melhoria da oferta habitacional.

A Câmara Municipal de Lisboa, sob a liderança de Carlos Moedas, anunciou um investimento de 800 milhões de euros para habitação pública até 2028. No mesmo sentido, em julho de 2024, o Governo assinou 18 termos de responsabilidade com autarquias, essencialmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, para construção e reabilitação de habitação acessível. O investimento ascendeu a 400 milhões de euros, prevendo-se a construção de 4.130 casas.

Para reforçar a habitação a custos controlados, o Governo transferiu 27 imóveis públicos para 17 municípios, incluindo Sintra, Torres Vedras e Ourém. Estes edifícios destinaram-se a habitação, turismo, apoio à terceira idade e projetos culturais.

Na Madeira, o Governo Regional anunciou a construção de 805 novas habitações a custos reduzidos até 2026. No Funchal, serão entregues 355 fogos e vendidos 270 apartamentos a preços 30% inferiores aos de mercado.