Prevenção a quanto obrigas!


A corrupção é um fenómeno demasiado complexo para ser tratado com uma panaceia genérica


No passado mês de setembro, o Governo apresentou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, agora em discussão pública, que identifica prioridades e propõe medidas para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal. Uma iniciativa audaz, mas igualmente inglória, tomada num contexto particularmente difícil.

Estamos a discutir a cura no longo prazo para uma doença da qual hoje, nós portugueses, padecemos nos cuidados intensivos. Porventura seja esse o pecado original desta proposta na sua visão quase romântica do problema, ao abstrair-se do presente para discutir o que pretendemos fazer nos próximos quatro anos.

Portugal não foi o primeiro país a desenhar tal estratégia, longe disso. As boas práticas internacionais sugerem que se identifiquem primeiro os riscos específicos de corrupção, ou seja, que antes de se prescreverem tratamentos se façam todas as análises e radiografias. O Governo optou por uma abordagem diferente: primeiro apresenta-se a estratégia; depois que se identifiquem os riscos.

As experiências encetadas por outros países mostram ainda que este fenómeno é demasiado complexo para ser tratado com uma panaceia genérica. Na ausência de planos anticorrupção para cada setor – nas áreas da administração local, defesa, justiça, saúde, etc. – arriscamo-nos a adiar sine die este combate. O Governo, talvez por assumir a complexidade dessa análise, preferiu não a fazer por enquanto.   

A estratégia indica que caberá aos serviços e organismos do Estado “avaliar os riscos de corrupção e suborno associados ao tipo de atividade que desenvolvem, à natureza dos serviços que prestam e ao contexto em que esses serviços são prestados”. Na prática, o Governo irá delegar a responsabilidade de estabelecer objetivos e medidas concretas, rejeitando assim a obrigação de desenvolver uma estratégia governativa.

Uma opção claramente desprovida de eficácia se considerarmos que, primeiro, teremos abordagens diferentes para os mesmos problemas, com o risco acrescido de muitas serem negligentes. Como diria o ditado popular, “cada cabeça, cada sentença”. Se pedirem às chefias de todos os hospitais portugueses para preparem os seus planos anticorrupção, haverá algumas que os farão com muito rigor, enquanto muitas outras prepararão um documento para guardar numa gaveta, seja porque não sabem como o desenvolver ou por falta de vontade em combater o problema. Segundo, muitos dos ditos serviços e organismos do Estado não têm autonomia ou capacidade para alterar os seus mecanismos de controlo sem o envolvimento da tutela. A título de exemplo, provavelmente não fará sentido para uma autarquia local propor um novo sistema informático destinado à divulgação pública de informação de gestão, quando para tal depende da Direção-Geral das Autarquias Locais.

O exemplo sobre o sistema informático é paradigmático na equação deste flagelo. De acordo com inúmeros estudos académicos, existe uma relação direta entre o investimento efetuado em meios informáticos no âmbito do “e-government” e a redução da corrupção num determinado país, em particular na transparência que isso garante aos cidadãos. Não é à toa que em 2019 a Dinamarca ocupa o primeiro lugar do ranking “Corruption Perceptions Index” emitido pela Transparency Internacional – classificado como o país menos corrupto do mundo, bem como no “E-Government Development Index” emitido pelas Nações Unidas – sendo considerado o país mais desenvolvido nesta matéria. Portugal ocupa, respetivamente, os 30º e 35º lugares.

O documento em discussão pública até aflora esse tema, ao referir que o Plano de Ação para a Transição Digital, aprovado em abril do corrente ano, pode servir como um meio de reduzir entraves burocráticos. Uma proposta muito incipiente para quem ocupa modestas posições no ranking internacional – os 30º e 35º lugares não são decerto motivos de orgulho nacional.A subida de degraus exigirá uma abordagem muito mais robusta para garantir transparência ao serviço dos cidadãos por via do digital. Um desígnio nacional que está ao nosso alcance, haja vontade política. A trajetória traçada pela Estónia mostra-nos exatamente isso. O nosso parceiro europeu passou duma posição semelhante à de Portugal para o pódio mundial em menos de uma década. 

Este documento é particularmente ricoem medidas concretas de repressão: na responsabilidade penal das pessoas coletivas e equiparadas, nos “mega processos”, entre outras, mostrando que foi precedida duma análise jurídica muito criteriosa pelo Ministério da Justiça, mas inevitavelmente incapaz naprevenção da corrupção em Portugal.

Por estranho que pareça, a palavra “prevenção” é mencionada quase 100 vezes na estratégia. Contudo, face à ausência de medidas específicas associadas a riscos, traduz-se em propostas relativamente genéricas, como sejam o reforço de formação, ações de sensibilização e promoção da ética pública. Muito pouco para quem está hospitalizado nos cuidados intensivos.

 

 

 

Prevenção a quanto obrigas!


A corrupção é um fenómeno demasiado complexo para ser tratado com uma panaceia genérica


No passado mês de setembro, o Governo apresentou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, agora em discussão pública, que identifica prioridades e propõe medidas para reduzir o fenómeno da corrupção em Portugal. Uma iniciativa audaz, mas igualmente inglória, tomada num contexto particularmente difícil.

Estamos a discutir a cura no longo prazo para uma doença da qual hoje, nós portugueses, padecemos nos cuidados intensivos. Porventura seja esse o pecado original desta proposta na sua visão quase romântica do problema, ao abstrair-se do presente para discutir o que pretendemos fazer nos próximos quatro anos.

Portugal não foi o primeiro país a desenhar tal estratégia, longe disso. As boas práticas internacionais sugerem que se identifiquem primeiro os riscos específicos de corrupção, ou seja, que antes de se prescreverem tratamentos se façam todas as análises e radiografias. O Governo optou por uma abordagem diferente: primeiro apresenta-se a estratégia; depois que se identifiquem os riscos.

As experiências encetadas por outros países mostram ainda que este fenómeno é demasiado complexo para ser tratado com uma panaceia genérica. Na ausência de planos anticorrupção para cada setor – nas áreas da administração local, defesa, justiça, saúde, etc. – arriscamo-nos a adiar sine die este combate. O Governo, talvez por assumir a complexidade dessa análise, preferiu não a fazer por enquanto.   

A estratégia indica que caberá aos serviços e organismos do Estado “avaliar os riscos de corrupção e suborno associados ao tipo de atividade que desenvolvem, à natureza dos serviços que prestam e ao contexto em que esses serviços são prestados”. Na prática, o Governo irá delegar a responsabilidade de estabelecer objetivos e medidas concretas, rejeitando assim a obrigação de desenvolver uma estratégia governativa.

Uma opção claramente desprovida de eficácia se considerarmos que, primeiro, teremos abordagens diferentes para os mesmos problemas, com o risco acrescido de muitas serem negligentes. Como diria o ditado popular, “cada cabeça, cada sentença”. Se pedirem às chefias de todos os hospitais portugueses para preparem os seus planos anticorrupção, haverá algumas que os farão com muito rigor, enquanto muitas outras prepararão um documento para guardar numa gaveta, seja porque não sabem como o desenvolver ou por falta de vontade em combater o problema. Segundo, muitos dos ditos serviços e organismos do Estado não têm autonomia ou capacidade para alterar os seus mecanismos de controlo sem o envolvimento da tutela. A título de exemplo, provavelmente não fará sentido para uma autarquia local propor um novo sistema informático destinado à divulgação pública de informação de gestão, quando para tal depende da Direção-Geral das Autarquias Locais.

O exemplo sobre o sistema informático é paradigmático na equação deste flagelo. De acordo com inúmeros estudos académicos, existe uma relação direta entre o investimento efetuado em meios informáticos no âmbito do “e-government” e a redução da corrupção num determinado país, em particular na transparência que isso garante aos cidadãos. Não é à toa que em 2019 a Dinamarca ocupa o primeiro lugar do ranking “Corruption Perceptions Index” emitido pela Transparency Internacional – classificado como o país menos corrupto do mundo, bem como no “E-Government Development Index” emitido pelas Nações Unidas – sendo considerado o país mais desenvolvido nesta matéria. Portugal ocupa, respetivamente, os 30º e 35º lugares.

O documento em discussão pública até aflora esse tema, ao referir que o Plano de Ação para a Transição Digital, aprovado em abril do corrente ano, pode servir como um meio de reduzir entraves burocráticos. Uma proposta muito incipiente para quem ocupa modestas posições no ranking internacional – os 30º e 35º lugares não são decerto motivos de orgulho nacional.A subida de degraus exigirá uma abordagem muito mais robusta para garantir transparência ao serviço dos cidadãos por via do digital. Um desígnio nacional que está ao nosso alcance, haja vontade política. A trajetória traçada pela Estónia mostra-nos exatamente isso. O nosso parceiro europeu passou duma posição semelhante à de Portugal para o pódio mundial em menos de uma década. 

Este documento é particularmente ricoem medidas concretas de repressão: na responsabilidade penal das pessoas coletivas e equiparadas, nos “mega processos”, entre outras, mostrando que foi precedida duma análise jurídica muito criteriosa pelo Ministério da Justiça, mas inevitavelmente incapaz naprevenção da corrupção em Portugal.

Por estranho que pareça, a palavra “prevenção” é mencionada quase 100 vezes na estratégia. Contudo, face à ausência de medidas específicas associadas a riscos, traduz-se em propostas relativamente genéricas, como sejam o reforço de formação, ações de sensibilização e promoção da ética pública. Muito pouco para quem está hospitalizado nos cuidados intensivos.