Miguel Oliveira da Silva. “A DGS tem sido excessivamente autoritária”

Miguel Oliveira da Silva. “A DGS tem sido excessivamente autoritária”


Médico e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida defende maior envolvimento cívico em torno da resposta à covid-19.


Com o país a entrar numa nova fase da epidemia, Miguel Oliveira da Silva, obstetra, professor de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, apela a um debate mais participado em torno da resposta à crise de saúde pública e a informação mais clara. “A saúde não é só covid-19”, alerta. Defende que tornar uma eventual vacina obrigatória diminuiria a confiança da população, que considera que pode ser abalada por uma postura “excessivamente autoritária” da Direção-Geral da Saúde.

 

Passam seis meses desde os primeiros casos de covid-19 em Portugal. Como avalia a forma como o país tem enfrentado esta crise?

Globalmente, bem. Ninguém estava preparado para isto, portanto, ninguém tem o direito ou a autoridade para criticar falhas, contradições e ziguezagues que inicialmente tenham sido feitos. Penso que terá havido alguns excessos de cuidados em relação à covid-19 em detrimento de atenção e cuidados de saúde atempados para outras patologias, como se começa a comprovar com dados que, neste momento, são inquestionáveis: por um lado, a quebra da atividade; por outro, o aumento da mortalidade. No primeiro semestre de 2020, comparando com o primeiro semestre de 2019, terão morrido por causas não covid-19 cerca de mais 4 mil pessoas. Tudo indica que serão doenças cardiovasculares mal tratadas ou diagnosticadas tardiamente, pessoas que não foram ao hospital ou à urgência por ter medo, e isto é grave. Não se pode olhar apenas para a covid-19.

O INE apontou na semana passada para mais 5882 mortes no país entre março e o final de agosto. A DGS já explicou que as causas ainda estão a ser codificadas. Acha que já poderia haver uma análise, pelo menos para os primeiros meses?

Penso que sim e sobretudo acho que é importante que as autoridades de saúde falem sobre isso e que se reconheça os impactos e que pode ter havido excessos, sabendo todos que, inicialmente, ninguém estava preparado e que foi dada a resposta que se entendeu ser a mais correta. Agora é preciso falar sobre isto. Mais tarde ou mais cedo, as contas terão de ser feitas e a autoridade de saúde tem de ser parte interessada em explicar o excesso de mortos que não têm, aparentemente, nada a ver com a covid-19.

Nos últimos meses foram apontadas como explicação as ondas de calor.

Não sei se foram maiores ou menores do que noutros anos, se é suficiente falar de ondas de calor para justificar este número de mortes. As causas de morte serão conhecidas, pelo que importa fazer esse balanço.

Sente-se maior descompensação de doentes no hospital?

As pessoas queixam-se de que em certos centros de saúde continua a ser difícil aceder ao clínico geral, e já não falo dos 600 mil ou 700 mil portugueses que não têm médico de família. Das grávidas que vemos no Hospital de Santa Maria há mulheres que nos dizem que durante o tempo de confinamento não tiveram uma única consulta nos centros de saúde. Mesmo que sejam gravidezes de baixo risco, é uma situação inaceitável e seria importante conhecer o seu impacto, fazer, por exemplo, um inquérito às grávidas.

Tem havido muitos olhares sobre esta crise, da saúde publica, da epidemiologia, da política. O que acrescenta o olhar da bioética? Que questão é, para si, mais importante neste momento?

A questão principal que coloco neste momento, e não havendo certezas sobre o que temos pela frente, é que sem que todas as decisões possam ser participadas, sem que todas as decisões possam ser alvo de um debate generalizado e informado dos cidadãos, é difícil haver uma resposta sustentada. Percebe-se que em alguns momentos existe urgência, mas penso que houve decisões que foram mal comunicadas, situações em que as autoridades de saúde não pediram desculpa às pessoas por se terem contradito, em que a verdade não foi dita. Quando se dizia, em março, para não se usar máscaras, a verdade é que não havia máscaras para serem usadas pela população. E isso é que devia ter sido dito: “Não há máscaras para garantir o uso por toda a população, estamos a fazer tudo o que é possível para as ter rapidamente”. As pessoas perceberiam isso. Detalhes como divulgar ou não as regras para a Festa do Avante!. E, agora, a questão que se coloca: uma vacina da covid-19 será obrigatória ou não?

A DGS já disse que a decisão não está tomada, mas que a Constituição o permitiria. Qual é a sua posição?

Para mim, não deve ser obrigatória. O primeiro-ministro já veio dizer, e bem, no fim de agosto, que não está na nossa tradição a obrigatoriedade das vacinas. Não é impondo que se aumenta a taxa de adesão das pessoas, pelo contrário. Tudo isto devia ser alvo de um debate participado, amplo, com explicações claras da autoridade de saúde. Não o tivemos, por exemplo, com a aplicação Stay Away Covid e o resultado está à vista: porque é que, até hoje, só 7% ou 8% da população aderiu? Se os impactos só forem importantes se forem 70% ou 80% da população a usar, poderá não ter os resultados pretendidos. Penso que não houve debate suficiente, não houve informação que fosse ao encontro das preocupações das pessoas e que a Direção-Geral da Saúde, nesse aspeto, foi e tem sido excessivamente autoritária e muito pouco interessada em debates com os cidadãos. Nem sempre são possíveis mas, quando são possíveis, creio que são absolutamente necessários, até para que possa haver confiança. Há uma coisa que é hoje evidente: o que se faz agora, o que se diz, quem diz, como diz, vai influenciar o que acontecerá no futuro.

Já havia sinais desse autoritarismo antes?

Em alguns casos, sim. Quando, no final do ano passado, se soube que a mortalidade materna tinha subido preocupantemente em 2018 e que tudo indicava que a maior parte dos óbitos tinham acontecido em hospitais privados – o que é surpreendente porque os hospitais privados mandam para os públicos os casos mais complexos de patologia grave – pedimos dados mais detalhados à DGS e a resposta foi zero. É de uma opacidade total. Depois veio esta crise e não se falou mais da saúde materna.

Parece-lhe que é algo intencional ou até cultural, um certo paternalismo do Estado, ou falta de meios para responder a tudo? Não faço juízos de intenção mas, mais uma vez, a saúde não é só covid-19. O aumento da mortalidade materna em Portugal é um indicador gravíssimo que a DGS acabou por não esclarecer detalhadamente. Portanto, antes da covid-19, já havia alguma opacidade. Não sou só eu, obstetra ou professor, que tenho direito a saber mais sobre isso. Uma pessoa, quando escolhe o hospital onde vai ter o seu bebé, tem o direito de saber qual é a taxa de mortalidade materna nesse hospital. A DGS tem esses dados e não os divulga. Creio é que algo inaceitável. Mas não é um problema exclusivo. Falando ainda desta área, no Reino Unido, qualquer casal que vai a um centro de procriação medicamente assistida tem direito a saber a taxa de eficácia desse centro, seja público ou privado. Em Portugal, o Conselho Nacional de PMA tem esses dados e não os divulga. E isto tem a ver com a liberdade das pessoas, com o que lhes permite tomar decisões informadas.

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