Confinar os regimes de exceção


O problema da política sem critério é que, para além de perpetuadora de injustiças, é geradora de consistentes sentimentos de impunidade dos titulares e de um sustentado fervilhar de indignação.


Os regimes de exceção são lesivos dos compromissos dos cidadãos esclarecidos com a comunidade. O “será que vale a pena” passa pela cabeça de muitos portugueses quando assistem ao verberar de narrativas sem nexo, à criação de situações de exceção e a um conjunto de dinâmicas sem critério, sem sentido de justiça e sem explicação, que contrastam com os seus comportamentos individuais no quadro do compromisso com a comunidade. Há muito que defendo a necessidade de um equilíbrio entre os direitos e os deveres, depois de décadas de ditadura em que os direitos foram só para alguns. O problema é que vamos a caminho de ter tantos anos de vivência democrática como os que antecederam de ditadura e, ao invés de ser fomentada uma cultura cívica, política e social assente na igualdade, persiste-se na perpetuação de situações de exceção. Bem sei que, como diz Daniel Innerarity, a realidade apresenta uma complexidade sistémica, logo, exige respostas complexas, mas o que temos, demasiadas vezes, são impulsos trapalhões, opacos, parciais e sem explicação.

O atual quadro pandémico, também pela incerteza do vírus e da capacidade em amanhar soluções para responder ao que não tinha resposta por essa europa fora, está pejado de impulsos trapalhões, opacos, parciais e sem explicação, nos discursos técnico, político e mediático, mas também na ação. Perante o aplanar enunciado da curva e o respetivo desconfinamento, está em curso a abertura da época de casa, com motivos óbvios, outros burocráticos e muitos encapotados.

O que faz um sindicato independente de médicos zurzir diariamente uma opção de gestão de um equipamento de saúde, “o acesso a cuidados de saúde” dirão alguns. Mas, não a posição tem subjacente um objetivo de negociação sindical.

O que faz um órgão de comunicação social zurzir contratos efetuados num quadro de emergência sanitária num mercado internacional selvagem, por ser a este e àquele, a valores díspares, como se a tabela de publicidade da casa não tivesse oscilações ao longo do ano e das circunstâncias, numa lógica comercial, ou o exercício noticioso não estivesse pejado de peças com critérios muito duvidosos.

O que faz o governo pensar que pode retificar diplomas para retirar patologias como estando abrangidas por um determinado regime, na socapa do Diário da República, sem uma explicação prévia do alcance da inconsistência. Ou mais grave, um Ministro das Finanças achar que pode transferir 850 milhões de euros dos contribuintes para o Novo Banco à revelia do compromisso público do Primeiro-Ministro, num impulso sem consequências políticas, que legitima dúvidas sobre que o desencontro não foi encenado.

O problema da política sem critério é que, para além de perpetuadora de injustiças, de situações de exceção e de espaços de oportunidade para os “ismos” presentes na nossa sociedade, é geradora de consistentes sentimentos de impunidade dos titulares e de um sustentado fervilhar de indignação que é demasiado perigoso para os equilíbrios de quem precisamos como comunidade.

Quando uns se manifestam, quando outros se confinam.

Quando uns pedem direitos e liberdades, quando idolatram regimes em que nada disso é real ou embarcam em comemorações branqueadoras das nebulosas existências passadas.

Quando se impulsionam medidas, em ensaios de transpiração para os media para depois as consomar, sem que acautelar o senso, a consistência e a sustentabilidade das opções.

Quando tudo isto existe, com milhares em confinamento, mais atentos e crescentemente indignados pela falta de senso, de critério e de rumo, correm-se riscos sem necessidade.

Entre as encolhas e arrependimentos presidenciais e a evidente escalada de decibéis da política e da sociedade, existem algumas evidências:

– É preciso continuar a monitorizar e a assegurar a resposta médica quando a exaustão está instalada, a incerteza mantém-se, os equipamentos tardam a chegar e o desconfinamento gradual pode aportar um crescimento súbito de casos positivos;

– É preciso continuar a responder na concretização possível de uma malha de sustentação social e económica eficaz, criteriosa e inteligível;

– É preciso continuar a reajustar o quotidiano do “novo normal” e acautelar que as falhas detetadas, nos serviços, nas dinâmicas económicas e nas infraestruturas de emergências começam a ser tratadas, em território nacional e no plano internacional.

Quando foi preciso resposta global, europeia ou internacional, ou foi fraca ou não existiu. Sem abdicar de manter uma via multilateral, importa trabalhar de imediato para gerar reservas e capacidades próprias que fiquem disponíveis para outras vagas desta pandemia ou para outras expressões extremas da natureza ou da natureza humana. Neste quadro de política do razoável, aplicado ao nosso tempo, é importante que possamos aprender a incorporar na nossa vida os riscos, não apenas o da covid-19, mas todos os outros, dos fenómenos meteorológicos extremos aos sísmicos. Neste quadro de economia do razoável, é fundamental gerar condições para que o país disponha de capacidade instalada autónoma em áreas vitais e salvaguarde os ativos estratégicos nacionais. Mesmo no quadro da construção europeia, é preciso acautelar um patamar de resiliência produtiva orientada para a emergência, à margem das quotas comunitárias.

O vírus provou que o tempo e o espaço é outro. Que há um enorme desfasamento entre a organização e as dinâmicas, reais e digitais. Com o vírus ainda a fustigar-nos e com um longo horizonte de condicionamento, é importante começar a reinventar muitos dos hábitos sociais, das proximidades e das dinâmicas. Não fará sentido abocanhar a globalização, porque por maior que seja a capacidade nacional de resiliência, os problemas, os desafios e as oportunidades são globais. Nem se percebe que o PCP, enquanto procura manter os regimes de exceção e arvorar-se em exceção do regime, persista na conversa do ataque ao capitalismo, quando esta entropia nasceu no caso vigente de todas as virtudes ideológicas, a China Comunista.

O Mundo tem muitas incongruências, a maior é não conseguirmos geras respostas para problemas e desafios que são globais, ou sendo regionais podem-nos afetar a todos, da fome à ausência de liberdade.

NOTAS FINAIS

ILUSÕES// Dos quatro grandes exemplos iniciais do combate à Covid-19 (Singapura, Taiwan- impedida de fazer parte da OMS-, Coreia do Sul e Suécia) parece evidente que três (Coreia do Sul, Singapura e Suécia) estão em risco de o deixar de o ser.

DELÍRIOS// Passou uma semana desde que falei no mirabolante impulso da Entidade Reguladora da Saúde querer cobrar taxas aos Municípios pelo reforço das respostas de apoio ao SNS ou retaguarda de proteção civil para a emergência em curso. Ainda não aconteceu nada.

Escreve à segunda-feira