Depois da vida, vem a morte e, depois da morte, sobra o quê? “Os mortos não sabem que estão mortos”. Não era o que julgava Beatriz, Triz, mulher que “acreditava tanto em Deus como no alfabeto” e que aí encontrava as respostas que tornavam tudo mais simples: “Primeiro, vieram as águas, seguidamente as árvores e depois as aves”. Beatriz, “mulher de olhar prático e de raízes profundas”, era a árvore. Os pássaros, esses eram os seus seis filhos. Morava no Restelo, numa das casas construídas na ditadura para as famílias cujos chefes trabalhavam para o Estado. E em casa, o lugar que segurava (como seguravam as mulheres) tinha Zulmira. E tinha os filhos. Tudo isso e a devoção a Nossa Senhora a que obrigava ter um marido no mar.
Triz era a avó que Catarina Vasconcelos nunca conheceu – como os hipotéticos filhos que algum dia pudesse ter não conheceriam também a sua desde o dia em que a sua mãe morreu. Um dia, há seis anos, o seu pai, Henrique, para quem tomou a liberdade de inventar aqui o nome de Jacinto, como essa flor de nome masculino, contou-lhe que Henrique, o seu avô, a sentir-se perto da morte, decidiu queimar a correspondência que até então guardara entre ele e Beatriz. Da angústia do desaparecimento das cartas em que acreditava poder estar ainda viva a avó, Catarina começou às voltas com o que viria a ser um filme que faz mais do que fazer dessas memórias suas.
Hoje, seis anos depois, à nova secção Encontros da 70.ª Berlinale, que decorre em Berlim até 1 de março, é esse filme que leva. Depois de Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, curta-metragem documental daquele ano de 2014, é a sua primeira longa-metragem, que, num processo de busca de respostas difíceis de encontrar, foi, não tivesse sido a sua avó aquela árvore, desenterrar da natureza. A esse filme que, entre o documentário e a ficção, conta mais do que a história da sua família, mais do que a história de todas as famílias, a esse filme a tocar tanto o interior de cada um como o céu, mesmo quando não se acredita que quem morre passe a fazer parte dele, chamou A Metamorfose dos Pássaros.
Os pássaros que eram os filhos de Beatriz e que era o seu pai ainda que com nome de flor, Jacinto, os pássaros em que, segundo Ovídio, se podiam transformar os homens, os pássaros que, viria a descobrir algures nos longos anos pelos quais se estendeu a preparação e a rodagem deste filme, acreditavam os antigos no tempo em que as migrações eram ainda um mistério se iam transformando de espécie em espécie. Ou como poderiam ser tão distintos no inverno e na primavera? Mas foi sobretudo a ideia de um homem poder transformar-se em pássaro que a realizadora, que de Berlim conversou com o i ao telefone sobre o filme que tem hoje a sua estreia internacional, achou extraordinária. É que os pássaros “são este ser capaz de andar na terra sem tanta gravidade”, explica.
A gravidade pode não ser só, mas será com certeza a da morte, que não há de afligir os mortos, não, e voltamos ao início: “Os mortos não sabem que estão mortos”. A morte, enfrentam-na os que ficam, esses seres feitos fantasmas – literalmente fantasmas num filme que, numa sucessão de quadros e percorrido por um texto que o transporta tanto para o campo do ensaio como da literatura, é o exemplo fechado de que no cinema há sempre de caber tudo.
E é sobre espaços, sobre os espaços deixados vazios pela perda da mãe (e a da avó que, não sendo sua, herdou do pai), sobre os espaços que, mesmo depois das entrevistas com os filhos de Beatriz, continuaram em branco e que ficcionou (“nunca te esqueças”, repete o texto várias vezes, “quando não souberes, inventa”) A Metamorfose dos Pássaros. “Nas entrevistas que lhes fiz [aos familiares] contaram-me muitas coisas, mas houve muitas que não me contaram. No início fiquei muito frustrada, queria saber tudo, mas depois percebi que não me estavam a esconder nada: que há coisas que não se contam, que há coisas que fazem parte dos não-ditos das famílias. As famílias têm estes espaços em branco. E às tantas senti que sobre o que eles não diziam eu tinha uma espécie de carta branca para inventar”.
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A história que conta então, depois da história da família, da sua e do que seriam as outras no tempo do Estado Novo, é a do processo de cura que se atravessa depois de uma perda. Se houver cura. “Ao contrário da minha avó, não sou crente, não acredito em Deus, mas acho que há uma coisa muito forte que nos fica quando se perde alguém, esta coisa de que não percebemos muito bem para onde é que as pessoas foram, que cria um grande desafio em quem somos, porque não são só as pessoas que morrem: a pessoa que éramos com estas pessoas também morre. Então há um grande exercício de reestruturação, não só das famílias, mas de quem nós somos, em relação a muita coisa”, diz a realizadora ao i. “Por isso sem dúvida que para mim o filme tem também um lado catártico, de processo e de investigação”. Mas não só de si própria. “Também de mim com o meu pai, com a família: como é que todos nós lidamos com isso e também como é que todos nós, de alguma forma, conseguimos encaixar esse vazio”.
Talvez depois do sofrimento, desse encolher da alma dentro do próprio corpo que é descrito em Jacinto, que se torna por dentro demasiado pequeno para o espaço físico que ocupa, ou do exercício de o transpor, deixando-se ir, com os pássaros que é o lidar com a perda de Catarina (a realizadora é também, interpretando-se a si própria, uma das personagens de uma ficção em que o que não é real, disse-lhe um dos familiares no final, poderia ter sido), talvez depois de tudo venha essa paz de saber que um pedaço de pele está tão próximo de um pedaço de uma folha como A Metamorfose dos Pássaros o coloca.
Que os mortos, os mortos de cada um, estão no que deixaram nos que os amam na eternidade que, à falta de Deus, se há de encontrar no amor. Como estão na paisagem, esse lugar “mais próximo do céu” (para onde os homens atiram Deus, os mortos, enfim, tudo o que lhes escapa) para onde Catarina apanha um autocarro para aí se poder deixar ir com os pássaros.