1. Já por diversas vezes tive a oportunidade de comentar a atitude imprópria que assumem alguns pivots da televisão.
É, com efeito, constrangedor ver como, nas situações mais críticas, certos pivots deixam cair tão facilmente a máscara da imparcialidade que, em geral, só lhes assenta bem e lhes permite um trabalho limpo.
Esquecendo-a, ou esquecendo-se de a usar, convertem-se, consciente ou inconscientemente, no que Serge Halimi denominou como os “novos cães de guarda” dos interesses que, direta ou indiretamente, lhes pagam os salários.
Assim, com a mesma câmara que Paul Nizan usou para fixar a verdadeira cara de alguns dos intelectuais do seu tempo, Serge Halimi retratou, mais recentemente, os que, na comunicação social, se dispõem, hoje, a aceitar tal triste papel.
Ou seja, aqueles que se convertem, com facilidade, em “homens que ladram pela boca dos seus cães”, como, invertendo os termos da equação, dizia, ainda, Fèlix Cucurull, romancista, poeta e ensaísta catalão.
2. O panorama informativo das televisões portuguesas tem, com efeito, evoluído no sentido de uma cada vez maior autocensura seletiva.
Fecha-se em si próprio, restringindo já, indisfarçavelmente, o foco através do qual dá a conhecer à sociedade a “verdade” que, em cada momento e sobre cada assunto, convém ao sistema divulgar.
Este afunilamento de perspetivas sobre a verdade usa várias técnicas: umas mais subtis, outras menos.
Tomemos o caso das entrevistas a figuras emblemáticas da sociedade.
Em certos casos, os entrevistadores apercebendo-se do sentido da resposta dos entrevistados, e constatando que ela não vai ao encontro do que dele esperavam ouvir, antecipam, para os telespectadores – que notoriamente tratam como pouco mais do que analfabetos – a explicação do que foi, por aqueles, dito, dando-lhe uma interpretação que consideram mais coincidente com o que creem ser a resposta politicamente correta.
Em outros, quando a resposta lhes começa a desagradar, interrompem, abruptamente, o entrevistado e mudam, com rapidez, de assunto.
Casos há, ainda, em que alguns pivots intervêm, já sem peias, para criticar as respostas com que não concordam: como se estivessem ungidos de uma função tutelar, que lhes permitisse adequar a verdade dos entrevistados ao discurso que consideram correto.
3. Recentemente, receando não cumprir com zelo o que consideram ser a sua missão de guardiões de uma específica maneira de ver o mundo, passaram a reduzir os convites aquelas vozes que, na sociedade, exprimem, ainda, livremente, pontos de vista distintos sobre temas relevantes.
Em compensação, para assegurar um prudente consenso sobre matérias caras aos que, a vários níveis, governam o sistema, começaram a entrevistar-se, quase exclusivamente, uns aos outros.
Esta estratégia, ostentando algum pluralismo, tem, por isso, provado ser mais segura.
Com efeito, todos eles conhecem bem a gramática que devem usar quando falam sobre temas relevantes.
Por isso, mesmo quando aparentemente divergem, concordam, na verdade, sobre quase tudo: falo, por exemplo, de uma questão tão grave como é a da guerra a leste e sua possível (querida?) extensão a oeste.
4. Valha a verdade, que não são todos assim: no jornal das nove e trinta da noite da RTP 2, por exemplo, podemos continuar a ver e ouvir notícias bem contadas e opiniões que não pertencem aos que entrevistam, mas aos que são entrevistados.
Infelizmente, o exemplo de profissionalismo e objetividade que rege este último canal público não faz escola em toda a RTP.
É pena, pois, na verdade, aí ainda não se transformou a informação num instrumento de pura propaganda.
5. O que aconteceu na última semana com a entrevista que José Rodrigues dos Santos conduziu, em tom inquisitorial, ao secretário-geral do PCP ultrapassou todos os níveis de iniquidade e agressividade que já vi acontecerem na TV portuguesa entre um entrevistador e um entrevistado.
Manifestou-se, de igual maneira e ainda mais significativamente, na expressão fisionómica do referido “entrevistador”, se assim, depois do que sucedeu, se lhe pode, ainda, chamar.
De facto, o que nunca se viu – mas aconteceu a Paulo Raimundo – foi alguém, a fazer o papel de entrevistador, se ter recusado, patentemente, a aceitar uma resposta do entrevistado e, em consequência, repetir sempre a mesma pergunta, até esgotar o tempo da entrevista e, depois, não a prosseguir, com o pretexto de não haver mais tempo para tratar do que fora, afinal, o seu objetivo declarado: as eleições.
Um entrevistador tem todo o direito de, sobre o tema acordado, fazer as perguntas que entender.
Ao entrevistado cabe, igualmente, o direito de, com idêntica flexibilidade, responder como lhe apetecer, ou, até, de declarar que não responde a uma dada pergunta.
Aos telespectadores – a esses sim – cabe o ónus de valorizarem as perguntas e a respostas de um e de outro e, por si próprios, fazerem um juízo sobre o que disse, ou não, o entrevistado.
Tal oportunidade, porém, foi escamoteada aos espectadores, no decurso da entrevista a Paulo Raimundo.
O julgamento sobre o que Paulo Raimundo respondeu e, principalmente, sobre o que não teve a oportunidade de responder, foi, à partida, impertinentemente arrebatado pelo entrevistador.
Assim, cumpriu José Rodrigues dos Santos a missão que se atribuiu: impor o pensamento dominante, impedindo a propagação e a ponderação pelos espectadores de ideias heréticas.
6. Que me lembre, só na receção que Trump e Vance prepararam para Zelensky, na Sala Oval da Casa Branca, se pôde assistir uma insídia semelhante à que José Rodrigues dos Santos aprontou ao secretário-geral do PCP; uma “espera”, como antes se dizia.
Rodrigues dos Santos terá, quiçá, querido testar, com um consabidamente menos alinhado Paulo Raimundo, os mesmos métodos ensaiados por Trump e Vance para com o presidente ucraniano.
Só que, ao contrário do que sucede com as opiniões políticas daqueles governantes norte-americanos – e, exatamente, na medida em que o são – a nenhum telespectador importam as convicções pessoais de José Rodrigues dos Santos, designadamente quando fala como entrevistador e não como entrevistado.
5. Nem tudo o que se passou no telejornal da RTP1, nessa noite, se pode reduzir, porém, a um desígnio e a uma dimensão estritamente política.
A sociedade não está apenas dividida entre os que são, ou não, apoiantes das causas da Ucrânia, da Rússia, dos EUA, da Gronelândia, da Dinamarca, do Canadá, do Panamá, da Palestina e de Israel.
Também se divide, por exemplo, e com maior frequência até – convenhamos – entre pessoas com educação e sem ela.
E esta ou se tem – e melhor quando ensinada cedo – ou não se tem.
Mais rigor, mais objetividade, menos jactância e, sobretudo, mais profissionalismo e educação precisam-se, urgentemente, naquele programa diário do mais importante canal público de televisão do nosso país.
O espetáculo a que se assistiu na RTP 1 foi – como o que ocorreu na Sala Oval da Casa Branca – deveras mau, mesmo mau, muito mau…e não é com cúmplices piscadelas de olho que, desta vez, os espectadores portugueses irão esquecer o que ali aconteceu.