Longe vão os tempos em que os bancos tinham em carteira milhares de casas por incumprimento por parte de quem pedia crédito ao sistema financeiro. Este foi o retrato do país com a chegada da troika, em que o endividamento das famílias não parava de aumentar e a banca não tinha mãos a medir com os empréstimos classificados como ‘não produtivo’, com as respetivas perdas a terem de ser reconhecidas nas contas da instituição bancária através do registo de imparidades. A fórmula é simples: o nível de empréstimos não produtivos é importante para a economia, uma vez que estes empréstimos pesam sobre a rentabilidade dos bancos e absorvem recursos valiosos, restringindo a capacidade dos bancos de conceder novos empréstimos.
Só entre 2011 e 2013, os quatro maiores bancos – Caixa Geral de Depósitos, BCP, BES e BPI – somaram prejuízos na ordem dos 5.116 milhões de euros.
Ao i, Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira da Deco, reconhece que, apesar das atuais dificuldades das famílias portuguesas, estamos longe desse período, reconhecendo que não só os portugueses aprenderam com a crise, como também os bancos não têm interesse em ter carteiras de malparado.
A ajudar, de acordo com a responsável, está o facto de agora termos mecanismos que podem atuar nestas situações. “Em 2012, não tínhamos a experiência de ter passado por uma situação daquelas, mas também não tínhamos os mecanismos, nem a banca estava preparada, como está agora. Não nos podemos esquecer que, em 2012, foi criado o diploma 227/2012 que veio criar o PER [Processo Especial de Revitalização] e o PERSI [Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento] que, de certa forma, veio obrigar os bancos a uma coisa que já o deviam fazer, mas formalmente veio obrigar o sistema financeiro a acompanhar a execução dos contratos e sempre que detetarem indícios da degradação da situação financeira a contactarem as famílias ou então sempre que a família esteja numa situação de incumprimento, contactá-la, analisar a situação e, sempre que viável, apresentar soluções para reestruturar o crédito”.
E, apesar de reconhecer que os bancos não são obrigados a apresentar soluções e só apresentam quando entendem que existe alguma viabilidade económica por parte das famílias, diz que essa abertura permitiu derrubar muitas barreiras que até então havia por uma questão de desconhecimento e, até mesmo, de vergonha. “Com esta lei, tudo isso foi ultrapassado. E a verdade é que isto acabou por funcionar muito bem”.
Por outro lado, Natália Nunes chama a atenção para a alteração de comportamentos por parte de quem estava a pagar uma casa ao banco. “Os consumidores também já tinham alguma informação, nomeadamente aquilo que aconteceu em 2012 e o que vimos foi muitas famílias a tomarem a iniciativa de adotarem medidas antes de ficarem como diz o povo com a corda na garganta a tentar encontrar soluções”. E acrescenta: “Tivemos conhecimento de inúmeras situações, em que as pessoas pura e simplesmente colocaram a casa à venda e venderam-nas para evitar entrar em situação de incumprimento. E muitos optaram por comprar casas mais longe ou em sítios de menor valor ou mais pequenas para não se chegar ao ponto em que se chegou em em 2012”.
Reforço de poupanças vs corda no pescoço
A coordenadora do Gabinete de Proteção Financeira da Deco refere também que não nos podemos esquecer da pandemia, “em que as famílias conseguiram quase forçadamente poupar e essa poupança que conseguiram durante a pandemia foi fundamental agora para estes tempos de aumento da prestação do crédito habitação”.
Ainda assim, reconhece que o alívio das taxas de juro que se tem sentido nos últimos meses não se sente por todos da mesma maneira. “Todos testemunhamos que quem tem crédito habitação com taxa variável tem de ter sentido algum alívio, mas continua ainda a não ser suficiente para muitas famílias, nomeadamente aquelas que tinham já taxas de esforço elevadas” e lembra que o grande problema é que os rendimentos não têm acompanhado todas estas subidas que têm existido, salientando que o maior peso continua a ser a prestação do crédito à habitação e a alimentação.
“Todos estes aumentos levam a que muitas famílias continuem a ter muitas dificuldades. Diria que o grande desafio que vimos são as famílias a tentarem conseguir pagar a prestação do crédito ao banco, mas felizmente as famílias ainda o têm conseguido fazer com muito sacrifício. Há famílias que vieram de tempos muito estrangulantes, mas não se compara ao cenário que foi vivido, por exemplo, em 2012”.
Uma situação que leva a responsável a reconhecer que o número de pedidos de ajuda tem-se mantido estável, no entanto, continua muito elevados desde o início desta década. “Desde 2020 a esta parte têm sido sempre anos muito complicados para as famílias por uma razão ou por outra que acabam por ter um grande impacto no seu orçamento familiar. De qualquer forma, não há dúvida nenhuma que nestes últimos tempos tem sido a questão da habitação a causar um grande estrangulamento, assim como a alimentação, mas felizmente e isso é algo que nos distingue face ao que aconteceu em 2012, termos a taxa de desemprego historicamente baixa significa que a maior parte das famílias têm rendimentos. O grande problema é que esses rendimentos são baixos e são insuficientes para fazer face a tudo aquilo que são as suas despesas”.
Futuro incerto
Mesmo reconhecendo que as taxas de juro têm vindo a baixar, Natália Nunes chama a atenção para o facto de muitas famílias continuarem a ter aumentos muito significativos face ao valor que pagavam antes do início 2023. E em relação ao futuro e à possibilidade do Banco Central Europeu (BCE)_poder vir a descer as taxas na próxima reunião, a responsável reconhece que é tudo “incógnita”. E acrescenta: “Se há uns tempos dizia que com certeza que a expectativa era continuar a descer, neste momento, porque existem muitos outros fatores externos que não sabemos como vão evoluir, admito que há aqui alguma incerteza que acaba por condicionar aquilo que vai ser a decisão do BCE”.
Ainda assim, afirma que olhando para os valores atuais da Euribor é expectável que os mercados tenham alguma confiança para continuar neste ciclo de descidas, já que os mercados tendem até a antecipar as decisões do banco central.
Já para quem procura casa, as notícias não são animadoras. “O grande dilema, pelo menos nas grandes cidades, é que as famílias e nomeadamente as que têm rendimentos mais baixos – e se formos olhar para as estatísticas são em grande número – acabam por não ter condições para comprar porque os valores estão muito elevados e não páram”, o que leva a elevadas taxas de esforço, o que não lhes permite ter capacidade financeira para terem acesso a um empréstimo.
O mesmo cenário repete-se no mercado de arrendamento que, no seu entender, “também está a sufocar muitas pessoas”. E explica o porquê: “Os contratos a prazo quando chegam ao fim, muitas vezes, ou não são renovados ou quando são é proposta uma nova renda e a verdade é que as pessoas não têm condições para suportar os novos valores”, o que acaba por criar “uma situação aflitiva”. E termina: “Todos os dias vemos a aflição das pessoas a tentarem encontrar uma casa no mercado e ela a não existir ou quando existe têm valores que são proibitivos”.