Não confundir o género humano com o Manuel Germano


É verdade que em nome das mais generosas ideias políticas e religiosas se cometeram ao longo da História grandes crimes.


Li, há já uns dias, uma entrevista de um advogado que processou a União Europeia e muitos dos seus responsáveis políticos e administrativos no Tribunal Penal Internacional pelas inúmeras e continuadas mortes (diz ele 20 mil) de refugiados no Mediterrâneo.

Trata-se de um professor de Direito Internacional no Instituto de Sciences Po em Paris – Omer Shatz – que, pela entrevista que deu, parece sentir-se bem preparado e capaz de fundamentar sustentada e juridicamente a sua pretensão.

Não é, porém, sobre as questões jurídicas que esta questão envolve, ou sobre a efetividade da justiça criminal internacional, que pretendo aqui escrever hoje.

O que me suscitou a atenção foi o facto – político – de poder vir a ver sentados no banco dos réus responsáveis dos regimes democráticos da UE por crimes de lesa-humanidade que lhes são especificadamente imputados.

É verdade que em nome das mais generosas ideias políticas e religiosas se cometeram ao longo da História grandes crimes.

Lembremo-nos dos crimes perpetrados em nome de um Deus bom pelos cruzados cristãos e, sobretudo, pela Inquisição, da chacina dos anabatistas por calvinistas e luteranos, lembremo-nos dos crimes cometidos pelo Terror, em França, em nome da trilogia revolucionária “liberdade, fraternidade, igualdade”, lembremo-nos dos crimes estalinistas em nome do ideal humanista do comunismo, dos crimes cometidos em nome de Alá, o misericordioso, pelo ISIS e a Al-Qaeda.

Claro está que neste elenco estou só a referir-me a crimes cometidos em nome de ideais humanistas e generosos por homens que, afinal, o não eram.

Poderia, porém, referir-me a crimes cometidos em nome de ideais e regimes que, em si mesmos, eram já criminosos, como o nazismo, o fascismo, o apartheid e muitas e variadas formas de racismo e de humilhação de povos e de mulheres, pelo simples facto de serem o que eram e o que são.

Nestes casos, porque os crimes cometidos são eles próprios a expressão e a consequência direta das ideologias de ódio e violência que os inspiraram, justifica-se a condenação não só dos autores de tais crimes como das ideologias que os fundamentaram.

Não há, nestes casos, diferença entre a ideologia, os seus propagandistas e os executores de tais crimes.

Uns projetam, outros amplificam a mensagem e outros ainda – quando não os mesmos – concretizam os crimes que dão corpo à ideia política ou religiosa que professam.

Reside aí a diferença destes ideais e regimes relativamente aos outros.

Como disse, em nome de qualquer ideia humana se podem cometer crimes.

Quem tiver lido Frey Bartolomé de las Casas (séc. XVII) e o Padre António Vieira (séc. XVII) percebe bem a natureza e os horrores do colonialismo.

Quem se tiver deixado envolver pelos Miseráveis de Victor Hugo percebe o que se passou na Europa no séc. XIX.

Quem tiver entrado no universo de John dos Passos percebe bem a violência com que o capitalismo americano foi construído no séc. XX.

Contudo, nenhum dos muitos e repetidos crimes aí relatados foi cometido declaradamente em nome de uma ideologia ou de uma concreta mensagem política.

Cometeram-se com muitas justificações hipócritas, mas nunca se assumiram como heróicos e desejáveis.

Ninguém pensa, por isso, em julgar e condenar os regimes em que eles ocorreram, mesmo que tivesse sido razoável julgar, de acordo com as próprias leis de cada época, os que os cometeram.

Há, por isso, que não confundir as coisas ou, como dizia Mário de Carvalho em O Beco das Sardinheiras, “não confundir o género humano com Manuel Germano”.

Veremos, pois, como vai o Tribunal Penal Internacional apreciar a queixa de Omer Shatz.

Não confundir o género humano com o Manuel Germano


É verdade que em nome das mais generosas ideias políticas e religiosas se cometeram ao longo da História grandes crimes.


Li, há já uns dias, uma entrevista de um advogado que processou a União Europeia e muitos dos seus responsáveis políticos e administrativos no Tribunal Penal Internacional pelas inúmeras e continuadas mortes (diz ele 20 mil) de refugiados no Mediterrâneo.

Trata-se de um professor de Direito Internacional no Instituto de Sciences Po em Paris – Omer Shatz – que, pela entrevista que deu, parece sentir-se bem preparado e capaz de fundamentar sustentada e juridicamente a sua pretensão.

Não é, porém, sobre as questões jurídicas que esta questão envolve, ou sobre a efetividade da justiça criminal internacional, que pretendo aqui escrever hoje.

O que me suscitou a atenção foi o facto – político – de poder vir a ver sentados no banco dos réus responsáveis dos regimes democráticos da UE por crimes de lesa-humanidade que lhes são especificadamente imputados.

É verdade que em nome das mais generosas ideias políticas e religiosas se cometeram ao longo da História grandes crimes.

Lembremo-nos dos crimes perpetrados em nome de um Deus bom pelos cruzados cristãos e, sobretudo, pela Inquisição, da chacina dos anabatistas por calvinistas e luteranos, lembremo-nos dos crimes cometidos pelo Terror, em França, em nome da trilogia revolucionária “liberdade, fraternidade, igualdade”, lembremo-nos dos crimes estalinistas em nome do ideal humanista do comunismo, dos crimes cometidos em nome de Alá, o misericordioso, pelo ISIS e a Al-Qaeda.

Claro está que neste elenco estou só a referir-me a crimes cometidos em nome de ideais humanistas e generosos por homens que, afinal, o não eram.

Poderia, porém, referir-me a crimes cometidos em nome de ideais e regimes que, em si mesmos, eram já criminosos, como o nazismo, o fascismo, o apartheid e muitas e variadas formas de racismo e de humilhação de povos e de mulheres, pelo simples facto de serem o que eram e o que são.

Nestes casos, porque os crimes cometidos são eles próprios a expressão e a consequência direta das ideologias de ódio e violência que os inspiraram, justifica-se a condenação não só dos autores de tais crimes como das ideologias que os fundamentaram.

Não há, nestes casos, diferença entre a ideologia, os seus propagandistas e os executores de tais crimes.

Uns projetam, outros amplificam a mensagem e outros ainda – quando não os mesmos – concretizam os crimes que dão corpo à ideia política ou religiosa que professam.

Reside aí a diferença destes ideais e regimes relativamente aos outros.

Como disse, em nome de qualquer ideia humana se podem cometer crimes.

Quem tiver lido Frey Bartolomé de las Casas (séc. XVII) e o Padre António Vieira (séc. XVII) percebe bem a natureza e os horrores do colonialismo.

Quem se tiver deixado envolver pelos Miseráveis de Victor Hugo percebe o que se passou na Europa no séc. XIX.

Quem tiver entrado no universo de John dos Passos percebe bem a violência com que o capitalismo americano foi construído no séc. XX.

Contudo, nenhum dos muitos e repetidos crimes aí relatados foi cometido declaradamente em nome de uma ideologia ou de uma concreta mensagem política.

Cometeram-se com muitas justificações hipócritas, mas nunca se assumiram como heróicos e desejáveis.

Ninguém pensa, por isso, em julgar e condenar os regimes em que eles ocorreram, mesmo que tivesse sido razoável julgar, de acordo com as próprias leis de cada época, os que os cometeram.

Há, por isso, que não confundir as coisas ou, como dizia Mário de Carvalho em O Beco das Sardinheiras, “não confundir o género humano com Manuel Germano”.

Veremos, pois, como vai o Tribunal Penal Internacional apreciar a queixa de Omer Shatz.