Agricultura celular


A agricultura celular surge como uma nova área da biotecnologia que se propõe produzir produtos animais a partir de células, sem necessidade de criar os animais.


Poucos contestarão a afirmação de que a agricultura é uma das maiores invenções da humanidade. A criação sistemática de animais, em particular, permite produzir carne, laticínios e numerosos derivados indispensáveis à nossa sobrevivência. No entanto, a procura crescente de alimento provocada pelo crescimento demográfico originou níveis de industrialização da criação animal pouco sustentáveis ambientalmente. A agricultura celular surge como uma nova área da biotecnologia que se propõe produzir produtos animais a partir de células, sem necessidade de criar os animais. Esta ideia de produzir carne em laboratório seria inevitavelmente catalogada como ficção científica há poucos anos. No entanto, os avanços dos últimos anos sugerem que se comece a encarar a agricultura celular como uma solução real para muitos dos problemas da criação animal intensiva.

A agricultura surgiu por volta do ano 9000 a.C. no Crescente Fértil, uma área do Médio Oriente com condições topográficas e climáticas ideais para cultivar cereais e criar pequenos animais. A data marca o início de uma revolução que gradualmente estabeleceu a agricultura como polo central do desenvolvimento humano. A domesticação de herbívoros, em especial, permitiu criar animais para produzir alimentos, peles e fertilizantes. Hoje, a agricultura animal é muito diferente daquela que foi sendo praticada e desenvolvida durante séculos. Caracterizada pelo confinamento de grandes números de animais e por uma mecanização e automatização omnipresentes, a criação animal intensiva atual tornou-se indispensável para responder à procura de produtos como carne e laticínios.

Apesar dos benefícios incontestáveis, vários impactos negativos têm sido associados à industrialização da produção animal, incluindo poluição ambiental (emissão de gases de estufa e efluentes animais), uso intensivo de recursos (terras, água, energia), problemas de saúde pública (uso de antibióticos e hormonas) e práticas desumanas que causam sofrimento animal. É também óbvio que o sistema atual terá sérias dificuldades em corresponder às necessidades alimentares de uma população mundial em crescimento. Por exemplo, a procura de carne deverá aumentar de 60 mil milhões de animais em 2016 para 100 mil milhões em 2050. É neste cenário que surge a ideia da agricultura celular.

A agricultura celular procura criar produtos animais sem recorrer a animais vivos. Em alternativa promove-se a multiplicação de células (p. ex. de músculo bovino) em laboratório, proporcionando-lhes nutrientes em ambientes controlados. O primeiro bife produzido desta forma foi notícia em 2003. O seu custo exorbitante – cerca de 300 mil dólares – levantou, na altura, dúvidas relativamente à real utilidade de um conceito tão futurista. No entanto, a tecnologia permite hoje produzir carne e peixe em laboratório com características próximas do produto real e a custos já comportáveis. As oportunidades de criar materiais de origem animal, como o couro, ou de produzir carne de animais extintos, como o mamute, estão também a ser ativamente exploradas. Face a uma perspetiva cada vez mais real de comercialização, não é pois de estranhar que, nos últimos anos, várias empresas do ramo (p. ex. Memphis Meat, Mosa Meat, Shiok Meats) tenham conseguido atrair investimentos avultados. A viabilidade da comercialização da chamada “carne limpa” terá, no entanto, de ultrapassar as barreiras da aceitação pelo consumidor e da validação pelas agências reguladoras.

Um estudo recente elencou 90 razões que, na ótica do seu autor, justificam um olhar sério sobre a agricultura celular [1]. Na área ambiental, a agricultura celular requer substancialmente menos recursos e polui muito menos. A minimização de riscos de contaminação microbiana e a redução na utilização de produtos químicos permitem também ganhos ao nível da saúde pública. A agricultura celular resolve ainda o problema do bem–estar animal e elimina a prática de “criar para matar” na qual assenta a produção tradicional. A independência das condições climatéricas, a possibilidade de produzir localmente ou as perspetivas de criar novos produtos são também fatores a ter conta. Como contraponto, os críticos avançam que os alimentos derivados não são verdadeiramente naturais mas processados, alertam para um aumento do desemprego e impactos económicos negativos na agricultura tradicional e alvitram a existência de riscos para a saúde.

O impacto ambiental e os recursos necessários à criação animal intensiva deixam antever que será muito difícil expandir esta atividade ainda mais para fazer face à procura crescente de alimento. Neste contexto, a agricultura celular oferece-nos a possibilidade, por si só verdadeiramente espantosa, de produzir carne sem ter de recorrer a um animal. Mas, muito mais do que isso, a agricultura celular começa aos poucos a surgir como um sistema sustentável e exequível de produção alimentar.

[1] Gasteratos, K., 2019, 90 Reasons to Consider Cellular Agriculture

 

Professor do Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt