Agarrem-me senão demito-me


Um verdadeiro líder político não faz jogadas com o Governo do seu país. António Costa, no entanto, não tem feito outra coisa.


A campanha presidencial mais renhida que ocorreu no regime democrático foi travada entre Mário Soares e Freitas do Amaral em 1986. Freitas do Amaral esteve à frente nas sondagens durante toda a campanha eleitoral, mas perdeu as eleições no sprint final. Essa derrota ocorreu pelo facto de Mário Soares, no último debate entre os dois, ter lançado uma frase demolidora: “Os portugueses conhecem-me. Sabem que não fujo nos momentos difíceis”. Nessa altura, todos se recordaram de que Freitas do Amaral, em 1982, se tinha demitido de todos os seus cargos políticos por discordar da estratégia da AD liderada por Balsemão.

De facto, Mário Soares podia gabar-se de que não fugia nos momentos difíceis. Não fugiu em 1975, quando o país ia sendo tomado pelo PCP e Kissinger o avisava de que iria ser o novo Kerensky, tendo antes feito o comício da Fonte Luminosa que acabou com o Governo de Vasco Gonçalves. Não fugiu em 1977, quando o seu primeiro Governo teve de chamar o FMI, tendo o Governo caído devido à não aprovação de uma moção de confiança. Não fugiu em 1978, quando o CDS denunciou o acordo de coligação com o PS, tendo sido Eanes a demiti-lo. E não fugiu em 1985, quando o seu Governo do bloco central, que mais uma vez tinha tido de chamar o FMI, viu o tapete ser-lhe retirado pelo PSD depois da ascensão de Cavaco Silva.

O exemplo de Mário Soares não foi, no entanto, seguido pelos líderes do PS que vieram a formar Governo depois dele, tendo todos eles optado por se demitir perante as dificuldades. Foi assim que Guterres, depois de ter perdido umas simples eleições autárquicas, proclamou que o país tinha entrado num pântano e fugiu dele a alta velocidade. Foi assim com José Sócrates que, tendo atirado o país para a bancarrota, se demitiu quando viu ser aprovada pela Assembleia uma simples resolução parlamentar contra o PEC4. E é assim agora com António Costa que, perante a simples iminência de ser aprovado pela Assembleia um diploma a determinar uma reposição da carreira perdida pelos professores, ameaçou com a sua demissão – isto quando não havia sequer garantias de que o diploma fosse promulgado ou chegasse a entrar em vigor. E, se tal acontecesse, poderia ser revogado pelo Governo, uma vez que se trata de uma matéria em que este tem competência concorrente com o Parlamento. A conclusão que daqui se retira é que, depois de Soares, todos os líderes do PS só parecem dispostos a governar em período de vacas gordas, abandonando o barco ao primeiro sinal de tormenta.

Nesse aspecto, a comparação com Passos Coelho é arrasadora. O seu Governo esteve sempre dependente de financiamento externo e teve problemas orçamentais muito mais complicados. Viu uma avaliação da troika não ser fechada em virtude de o Tribunal Constitucional ter mandado devolver os subsídios aos funcionários públicos e viu o líder do principal partido de oposição retirar o apoio ao seu Governo. Mas a resposta de Passos Coelho foi sempre: “Não me demito. Não abandono o meu país”. Por muito negativa que possa ser a avaliação do seu Governo, teve o mérito de ter segurado o leme e não se ter demitido perante as dificuldades.

Muitos podem achar que António Costa fez com esta atitude uma jogada política brilhante e que encurralou o PSD e o CDS, cujo alinhamento com a extrema-esquerda era dificilmente compreensível para o seu eleitorado. E, na verdade, já vieram Assunção Cristas e Rui Rio, atentos, veneradores e obrigados perante António Costa, proclamar humildemente que, afinal, irão reprovar o diploma que tão irresponsavelmente permitiram que fosse aprovado. Não devem ter percebido que com este recuo perderam qualquer hipótese de sucesso nas eleições europeias e legislativas, tendo causado um dano mortal aos seus partidos. Na verdade, alguma vez, com anteriores lideranças, o PSD e o CDS recuaram perante uma ameaça de demissão do líder do PS? 

Só que um verdadeiro líder político não faz jogadas com o Governo do seu país. António Costa, no entanto, não tem feito outra coisa. Assumiu o Governo com base numa geringonça que desde o início esteve presa por arames e tentou convencer o país de que as vacas voavam e o seu governo era sólido. Mas para conservar esse governo teve sempre de fazer cedências constantes aos partidos da extrema-esquerda, que já sabia seriam fatais ao mínimo arrefecimento da economia. Agora, a economia está a arrefecer, a geringonça desconjuntou-se, as vacas voadoras caíram com estrondo no pântano da realidade e António Costa ameaça com a sua demissão para forçar o PSD e o CDS a apoiá-lo, uma vez que já não pode prosseguir na senda das reversões. Nada que não se esperasse desde o primeiro dia. O que não se esperava era esta rendição do PSD e do CDS a António Costa. Na verdade, a derrota política é normal em democracia. A rendição é que é absolutamente vergonhosa. 

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Agarrem-me senão demito-me


Um verdadeiro líder político não faz jogadas com o Governo do seu país. António Costa, no entanto, não tem feito outra coisa.


A campanha presidencial mais renhida que ocorreu no regime democrático foi travada entre Mário Soares e Freitas do Amaral em 1986. Freitas do Amaral esteve à frente nas sondagens durante toda a campanha eleitoral, mas perdeu as eleições no sprint final. Essa derrota ocorreu pelo facto de Mário Soares, no último debate entre os dois, ter lançado uma frase demolidora: “Os portugueses conhecem-me. Sabem que não fujo nos momentos difíceis”. Nessa altura, todos se recordaram de que Freitas do Amaral, em 1982, se tinha demitido de todos os seus cargos políticos por discordar da estratégia da AD liderada por Balsemão.

De facto, Mário Soares podia gabar-se de que não fugia nos momentos difíceis. Não fugiu em 1975, quando o país ia sendo tomado pelo PCP e Kissinger o avisava de que iria ser o novo Kerensky, tendo antes feito o comício da Fonte Luminosa que acabou com o Governo de Vasco Gonçalves. Não fugiu em 1977, quando o seu primeiro Governo teve de chamar o FMI, tendo o Governo caído devido à não aprovação de uma moção de confiança. Não fugiu em 1978, quando o CDS denunciou o acordo de coligação com o PS, tendo sido Eanes a demiti-lo. E não fugiu em 1985, quando o seu Governo do bloco central, que mais uma vez tinha tido de chamar o FMI, viu o tapete ser-lhe retirado pelo PSD depois da ascensão de Cavaco Silva.

O exemplo de Mário Soares não foi, no entanto, seguido pelos líderes do PS que vieram a formar Governo depois dele, tendo todos eles optado por se demitir perante as dificuldades. Foi assim que Guterres, depois de ter perdido umas simples eleições autárquicas, proclamou que o país tinha entrado num pântano e fugiu dele a alta velocidade. Foi assim com José Sócrates que, tendo atirado o país para a bancarrota, se demitiu quando viu ser aprovada pela Assembleia uma simples resolução parlamentar contra o PEC4. E é assim agora com António Costa que, perante a simples iminência de ser aprovado pela Assembleia um diploma a determinar uma reposição da carreira perdida pelos professores, ameaçou com a sua demissão – isto quando não havia sequer garantias de que o diploma fosse promulgado ou chegasse a entrar em vigor. E, se tal acontecesse, poderia ser revogado pelo Governo, uma vez que se trata de uma matéria em que este tem competência concorrente com o Parlamento. A conclusão que daqui se retira é que, depois de Soares, todos os líderes do PS só parecem dispostos a governar em período de vacas gordas, abandonando o barco ao primeiro sinal de tormenta.

Nesse aspecto, a comparação com Passos Coelho é arrasadora. O seu Governo esteve sempre dependente de financiamento externo e teve problemas orçamentais muito mais complicados. Viu uma avaliação da troika não ser fechada em virtude de o Tribunal Constitucional ter mandado devolver os subsídios aos funcionários públicos e viu o líder do principal partido de oposição retirar o apoio ao seu Governo. Mas a resposta de Passos Coelho foi sempre: “Não me demito. Não abandono o meu país”. Por muito negativa que possa ser a avaliação do seu Governo, teve o mérito de ter segurado o leme e não se ter demitido perante as dificuldades.

Muitos podem achar que António Costa fez com esta atitude uma jogada política brilhante e que encurralou o PSD e o CDS, cujo alinhamento com a extrema-esquerda era dificilmente compreensível para o seu eleitorado. E, na verdade, já vieram Assunção Cristas e Rui Rio, atentos, veneradores e obrigados perante António Costa, proclamar humildemente que, afinal, irão reprovar o diploma que tão irresponsavelmente permitiram que fosse aprovado. Não devem ter percebido que com este recuo perderam qualquer hipótese de sucesso nas eleições europeias e legislativas, tendo causado um dano mortal aos seus partidos. Na verdade, alguma vez, com anteriores lideranças, o PSD e o CDS recuaram perante uma ameaça de demissão do líder do PS? 

Só que um verdadeiro líder político não faz jogadas com o Governo do seu país. António Costa, no entanto, não tem feito outra coisa. Assumiu o Governo com base numa geringonça que desde o início esteve presa por arames e tentou convencer o país de que as vacas voavam e o seu governo era sólido. Mas para conservar esse governo teve sempre de fazer cedências constantes aos partidos da extrema-esquerda, que já sabia seriam fatais ao mínimo arrefecimento da economia. Agora, a economia está a arrefecer, a geringonça desconjuntou-se, as vacas voadoras caíram com estrondo no pântano da realidade e António Costa ameaça com a sua demissão para forçar o PSD e o CDS a apoiá-lo, uma vez que já não pode prosseguir na senda das reversões. Nada que não se esperasse desde o primeiro dia. O que não se esperava era esta rendição do PSD e do CDS a António Costa. Na verdade, a derrota política é normal em democracia. A rendição é que é absolutamente vergonhosa. 

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990