Um Presidente para legislar


Não só é estranho o Presidente, como órgão unipessoal que é, querer proibir-se a si próprio de efectuar nomeações de familiares, que ninguém o obriga a realizar, como também é insólito o Presidente da República assumir junto do Governo uma iniciativa legislativa, o que está ao arrepio de todas as suas competências constitucionais.


Recordo-me de, nas eleições presidenciais de 1986, a Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa ter decidido organizar encontros entre os estudantes e os diversos candidatos presidenciais. Tal permitiu aos estudantes de Direito conhecer vários candidatos presidenciais folclóricos que não faziam a mínima ideia de quais eram as funções correspondentes ao cargo que pretendiam desempenhar. Um deles declarava mesmo que, se fosse eleito, reforçaria de forma brutal os poderes presidenciais, governando a partir da Presidência. O slogan da sua candidatura era, por isso, “um Presidente para governar” e o candidato distribuiu como material de campanha um projecto de Constituição por ele elaborado que se propunha, naturalmente, implantar caso viesse a ser eleito.

O referido projecto de Constituição foi imediatamente sujeito à crítica arrasadora por parte dos estudantes de Direito na assistência, que tentaram explicar ao folclórico candidato que, no sistema constitucional português, um Presidente não governa e muito menos apresenta projectos de Constituição. O candidato saiu, assim, desconsolado desse encontro e nunca mais se voltou a ouvir falar da sua candidatura à Presidência, cujas competências pelos vistos desconhecia.

Foi precisamente deste candidato que me lembrei quando soube que o actual Presidente da República tinha entregue ao primeiro-ministro um projecto de diploma para proibir o Presidente de efectuar nomeações de familiares até ao sexto grau. Não só é estranho o Presidente, como órgão unipessoal que é, querer proibir-se a si próprio de efectuar nomeações de familiares, que ninguém o obriga a realizar, como também é insólito o Presidente da República assumir junto do Governo uma iniciativa legislativa, o que está ao arrepio de todas as suas competências constitucionais. Efectivamente, a intervenção do Presidente da República na função legislativa resume-se à promulgação e veto dos diplomas (artigo 136.o da Constituição) ou à fiscalização da sua constitucionalidade (artigos 278.o, n.o 1, e 281.o, n.o 2 a) da Constituição). Mesmo a promulgação dos diplomas tem de ser objecto de referenda ministerial (artigo 140.o da Constituição), precisamente para o Governo assumir a responsabilidade por essa promulgação.

Neste caso das nomeações de familiares pelos membros do Governo, a actuação do Presidente da República tem sido absolutamente errática. Primeiro veio dizer que todos os nomeados estavam no Governo por mérito próprio. Depois veio dizer que tinha sido Cavaco Silva a permitir a nomeação de familiares. Mais tarde achou que a demissão do secretário de Estado do Ambiente tinha resolvido o assunto. A seguir achou que valia a pena o Parlamento rever a lei, porque a opinião pública tinha mudado. E depois, como pelos vistos o Parlamento hesitava em se ingerir nas competências do Governo, apresentou ele mesmo um projecto de diploma para resolver a situação da Presidência.

Não é por acaso que o artigo 111.o da Constituição estabelece que os órgãos de soberania devem respeitar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição. Marcelo Rebelo de Sousa tem, no entanto, uma tão grande proximidade com o actual Governo que acha que pode legislar por seu intermédio, assumindo assim competências que não tem. Mas, em contrapartida, abdica de exercer as competências que efectivamente tem, relativamente ao controlo da actuação deste Governo e deste Parlamento. Por esse motivo, tem abdicado de exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis, não tendo agora enviado um único diploma ao Tribunal Constitucional. Ora, esta proximidade entre o Presidente e o Governo é altamente perigosa para o regime democrático, nunca se tendo assistido a isto, nem sequer quando o Presidente da República e o primeiro-ministro eram do mesmo partido.

Com a sua iniciativa legislativa, Marcelo consegue ultrapassar mesmo as competências presidenciais nos sistemas presidencialistas, em que o Presidente governa mas não legisla, cabendo o poder legislativo exclusivamente ao Parlamento. O país descobre assim que, entre as selfies e os afectos, o que afinal elegeu foi um Presidente para legislar.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990