Os animais são, mais do que qualquer outra coisa, a marca de um pintor do século XX, o artista alemão Franz Marc. Na Stadtische Galerie im Lenbachhaus, em Munique, está exposta uma das suas obras mais acabadas, O Tigre, pintada em 1912, tinha o artista 32 anos.
Não é um tigre como qualquer outro artista romântico do século XX poderia ter pintado. Não se trata de um troféu de caça nem de uma fera num jardim zoológico. “Desde muito cedo”, escreveu Marc, “que considero o homem um ser vil, os animais parecem-me mais puros e belos.”
Era uma procura do primitivo e um protesto contra a arte convencional académica alemã, que glorificava o homem, as suas batalhas, a sua arrogância, a sua supremacia sobre todas as outras formas de vida. “Procuro aumentar a minha sensibilidade através do ritmo orgânico de todas as coisas”, declarava.
E talvez pela primeira vez, a nova arte alemã internacionaliza-se na sua concepção. “Para mim, um bom europeu tem mais significado que um bom alemão”, afirmou Franz Marc precisamente antes da eclosão da I Guerra Mundial. Artisticamente, o seu olhar estava virado para Paris, e para mais longe ainda, para as cores exóticas da pintura de Gauguin, nas ilhas do Pacífico.
Já nessa época, num dos seus primeiros quadros, Nu com gato, 1910, ele começara, tal como Gauguin, a exagerar as cores na sua propensão para o efeito emocional: camadas de cor em torno da figura, formando como que um tapete brilhante.
“Procuro aumentar a minha sensibilidade através do ritmo orgânico de todas as coisas”, escreveu Franz Marc. E no ano em que pintou O Cavalo Azul, anunciava: “Temos de nos tornar ascéticos, renunciando corajosamente a tudo o que até agora nos foi caro e indispensável como bons centro-europeus.”
O Cavalo Azul. E porquê azul, quando os cavalos nunca foram azuis? Precisamente porque a cor teria um papel independente da Natureza. O azul, o vermelho, o amarelo, o preto, são cores com vida própria, não descrevem simplesmente uma cena. E assim, Marc foi simplificando as figuras, definindo-as por camadas fortes de cor, as quais parecem ter sido cortadas e agrupadas depois.
O cavalo ergue-se mais como uma escultura de pedra do que como um animal vivo. É a epítome de um tigre. A mesma simplificação na forma e na cor. Preto, branco, amarelo dourado. Tudo está centrado no seu olhar feroz. “Haverá ideia mais misteriosa”, escreveu, “do que a forma como a Natureza se reflecte nos olhos de um animal?”
O Tigre mantém-se pronto para saltar. E, contudo, observando com atenção o quadro, nenhuma das suas formas é tratada em termos de membros e de músculos, mas quase de uma maneira abstracta, como os pedaços de vidro colorido de um vitral medieval, como se a luz atravessasse, vinda de trás, as barras de chumbo.
O pintor adopta um novo tipo de romantismo. “Já não interessa”, afirmava, “copiar a Natureza, mas destruí-la, a fim de mostrar as poderosas forças que surgem por trás da bela aparência das coisas.” E é também um mundo de sonho que parece excluir a espécie humana. A esse propósito, o tigre de Marc contém premonições da terrível guerra que estava por vir. A selva humana encontrava-se cada vez mais próxima.
“Hoje, por trás das aparências, procuramos as coisas invisíveis na Natureza, que nos parecem mais importantes que as descobertas dos impressionistas.”
A dívida de Marc para com o Cubismo e, é claro, para com Cézanne, são evidentes. Sobretudo para com as cores de Cézanne, esmeradas gradações de verdes, azuis e amarelos dourados. Em Chuva, por exemplo, duas pessoas e um cão são surpreendidos por um violento aguaceiro na floresta. E Marc serve-se da técnica cubista para intensificar o realismo dos seus quadros: a força da chuva e a fragmentação, quais estilhaços de vidro, da imagem. O realismo, mas também o sentimento.
Marc pintou Veado no Bosque em 1912. A fragilidade e mansidão do animal são tão acentuadas como o era a ferocidade do Tigre. Uma vez mais, a paisagem é simplificada: elementos de árvore, rocha e luz solar justapostos; planos sobrepostos de tons negros sobre tons claros, criando, por meios simples, o efeito da floresta densa, com manchas de luz, pequenos lagos profundos de sombra. O veado em repouso é quase o elemento mais invisível no labirinto da floresta: uma criatura selvagem cuja natureza se harmoniza com o meio envolvente.
“Como é deplorável”, escreveu, “o nosso hábito de pôr animais numa paisagem que reflectem a nossa própria visão, em vez de penetrarmos na essência do animal para avaliar as suas percepções.”
Um ano depois de ter pintado O Tigre, o mesmo labirinto cubista da floresta transforma-se num local de perigo, de ameaça. As árvores caem. A luz jorra. Há linhas entrecruzadas de ramos. Tudo se encontra em movimento. O quadro foi denominado O Destino dos Animais. O meio envolvente está destruído. Era o ano de 1913 e o quadro pode ser interpretado como uma premonição da Grande Guerra. A violência abalara a paz do mundo natural. Uma corça olha atentamente à sua volta em busca de segurança.
Conhecendo o trabalho posterior de Marc e percebendo o seu pavor da guerra, podemos ver ainda o Tigre – não como um tirano da selva, mas como a representação da ordem natural das coisas – como uma criatura simbólica de todo o animal, humano ou não, cujo direito de viver esteja ameaçado.
Numa das suas últimas obras, Franz Marc tentou enfrentar o Apocalipse que se aproximava. Chamou-lhe O Desafortunado Tirol.
Os céus abrem-se; num mundo em convulsão, paira a figura da Madonna, símbolo da esperança, mas impotente no meio do Armagedão. No espaço de poucos meses, eclodiu a I Guerra Mundial e Franz Marc alistou-se.
Tinha vários projectos, um deles o de ilustrar a história da Criação. Em 1916, foi morto em Verdun. Fez no passado dia 4 de Março cento e três anos. Cavalo e tigre permanecem em nós.