Do mínimo ético à ética mínima


Enquanto se procurar resolver as questões éticas exclusivamente através da lei, estamos a usar o mínimo ético para criar uma ética mínima.


Contava-se que no tempo do Estado Novo teria sido apresentada a Salazar uma proposta de lista dos candidatos da União Nacional ao Parlamento. Salazar reparou que nessa lista estavam dois candidatos que eram pai e filho e comentou que não lhe parecia bem estarem os dois simultaneamente no Parlamento, pelo que um deles teria de sair da lista. O autor da lista diz-lhe: “Proponho então que fique o mais novo, uma vez que o Parlamento precisa de renovação”. A resposta de Salazar foi lapidar: “Claro que sim. E o mais novo é o pai”.

Esta história é elucidativa do habitual cinismo de Salazar, mas demonstra também que nos tempos da ditadura, com polícia política e censura à imprensa, havia um certo pudor em colocar membros da mesma família nos cargos políticos. Actualmente, parece que esse pudor desapareceu, sendo colocados sem qualquer problema os familiares dos governantes nos mais diversos cargos políticos. O que se faz para disfarçar a situação é colocar outro governante a fazer a nomeação, gerando assim uma prática de nomeações cruzadas para salvaguardar as aparências. Como bem salientou Ricardo Araújo Pereira no seu programa, o grande erro do secretário do Estado do Ambiente foi ter sido ele a nomear o primo, já que, se a nomeação proviesse de outro secretário de Estado, não haveria qualquer problema.

A questão não é exclusiva deste governo, uma vez que já foi demonstrado que aconteceu também com governos anteriores. Mas, em vez de colocarem a questão em termos éticos, como se esperaria, os nossos políticos fazem agora uma fuga para a frente, colocando antes a questão no plano legal. Ora, no plano legal, a questão não faz qualquer sentido, uma vez que é manifesto que não se pode impedir dois irmãos de se candidatarem ao Parlamento pelo mesmo partido ou por partidos diferentes, nem se pode estabelecer legalmente quotas no governo para os membros da mesma família. O que se pode e deve fazer é evitar a criação de situações menos claras, e para isso são os próprios governantes que têm a obrigação de ter critérios éticos nas nomeações que efectuam, seja para o Governo, seja para cargos na dependência deste. Porque as consequências políticas acabam por chegar um dia e podem ser devastadoras. Recorde-se que François Fillon estava à frente das sondagens na última eleição presidencial em França e acabou por fracassar, quando se descobriu que, enquanto governante, tinha arranjado empregos públicos para os seus familiares.

Há uns anos, vários governantes apareceram a dizer que podiam fazer tudo o que a lei lhes permitia e que assim cumpriam as regras éticas, afirmando que “a ética republicana é a lei”. Ora, qualquer estudante de Direito aprende que o direito e a ética não se confundem, havendo inclusivamente uma teoria que defende que o direito é um mínimo ético, regulando apenas o mínimo e deixando para a ética todo o restante campo normativo. Mas em Portugal acha-se sempre que o problema está na lei e que, alterando a lei, se resolve tudo. Foi assim que o primeiro-ministro apareceu no Parlamento a desafiar os deputados a produzir legislação sobre as nomeações, fazendo-lhes mesmo uma extensa prelecção sobre as inúmeras questões que deveriam considerar. Já o Presidente da República foi mais sintético, sustentando que “uma pequenina alteração” à lei, apenas para aplicar o Código do Procedimento Administrativo às nomeações políticas, tudo resolveria. Só que é claramente inconstitucional o Parlamento legislar sobre a organização e funcionamento do Governo e também é insólito ver o Presidente da República a patrocinar iniciativas legislativas, o que manifestamente não se encontra nas suas competências constitucionais.

Além disso, nenhum dos dois deve ter reparado nas reviravoltas que têm tido estas leis no Parlamento. Um bom exemplo é o que se passa na comissão da transparência, que até agora não produziu um único diploma, já que tudo o que é aprovado volta atrás, especialmente se estiver em causa a criação de incompatibilidades e impedimentos dos deputados em prejuízo dos próprios. Ora, se os deputados nem sequer conseguem aprovar uma lei que restrinja as situações menos claras que a eles respeitam, como é que iriam, através de legislação, regular as nomeações governamentais?

A questão não é legal, é puramente de natureza ética, e a sanção para a sua infracção só pode ser de ordem política. Enquanto se procurar resolver as questões éticas exclusivamente através da lei, estamos a usar o mínimo ético para criar uma ética mínima. E isso é fatal para a imagem da nossa classe política.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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