“O Meu Trampolim”


Na verdade, a educação é um trampolim, e, numa sociedade aberta, justa, embebida de democracia e meritocrática, deve ser “o” trampolim. A educação que nos dão em casa, e a educação que nos dão na escola, cada qual na sua dose e com o seu papel, depois complementadas pela educação que a vida nos dá


Um destes dias, recebi no telefone a fotografia que ilustra este texto e, a acompanhar, uma mensagem na qual a minha mãe perguntava se eu me lembrava. Oh, se me lembro! E tanto que logo me caiu, desamparada, a madalena no chá. Mas deixemos o recorte proustiano, e digamos apenas que se trata do meu livro da primária, lá para os idos da década de setenta do século passado. Não há como as mães para (nos) guardarem tudo, dos objetos às recordações, passando pela estação principal dos afetos. Ali estava, mais de quarenta anos depois, “O Meu Trampolim”, e, após quatro décadas de leituras, creio poder dizer que nunca conheci livro que tenha um melhor título. Não sei se Harold Bloom se dedicou à genialidade de quem titulou assim o meu livro dos primórdios escolares, mas que merecia, merecia.

Na verdade, a educação é um trampolim, e, numa sociedade aberta, justa, embebida de democracia e meritocrática, deve ser “o” trampolim. A educação que nos dão em casa, e a educação que nos dão na escola, cada qual na sua dose e com o seu papel, depois complementadas pela educação que a vida nos dá, tanto mais quanto mais formos abertos ao mundo, interessados e curiosos (o que também se inculca ou estimula em casa e na escola). Acredito seriamente nisso, tanto mais que na minha vida a educação que me deram em casa e a que me proporcionaram na escola foram (o princípio de) tudo para mim, e foram realmente o meu único trampolim. É por isso que o título do livro é perfeito. E deve ser também por isso que considero que, se o Estado e a sociedade devem ter prioridades, ou “paixões” (como em tempos já se disse, entre a retórica e a materialidade), uma das fundamentais deve ser a educação. Seja ela mais livresca ou mais técnica, aliás quanto mais diversificada melhor, pois nem só de livros, como nem só de pão, vivem os homens. Que se ponha à cabeceira o meu livro da primária, não pelo conteúdo (que deve ter sido superado pelas “modernidades”), mas pelo título, todo ele um programa – um essencial programa político, no sentido mais nobre e mais verdadeiro da palavra.

E não só um programa para a, digamos, melhoria da vida de cada um e da de todos. Mas também um programa para ajudar a que, cada um e todos, percebam melhor o mundo e melhor resistam às ameaças que entram pelo pensamento. Não que a educação e o saber sejam, por si só, um antídoto contra a barbárie, como bem lembra, por exemplo, George Steiner, a respeito do triunfo do nazismo numa nação “culta”. Mas que podem ajudar, isso podem, sobretudo em tempos, como hoje, em que muitos perigos se insinuam e penetram pela tentação da superficialidade, do maniqueísmo, da facilidade e da rapidez. Contra isso, ajuda alguma coisa, para não dizer muito, o trampolim da educação, que estimule e elogie a profundidade, a complexidade, a dificuldade e o tempo, tudo necessário para a reflexão, a dúvida, a criatividade, a temperança, o bom senso e outras vacinas e remédios contra a estupidez e as nuvens ameaçadoras que por aí campeiam. Saltemos, pois, sobre o trampolim, para que haja elevação.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira