As florestas não são todas iguais

As florestas não são todas iguais


Um grupo de académicos e entusiastas ambientais juntou-se para responder ao manifesto que defendeu o eucalipto. Na data em que se assinala o Dia Internacional da Floresta, lançam uma petição


Um grupo de académicos e entusiastas ambientais lança esta quinta-feira, Dia Internacional da Floresta, um manifesto em defesa de uma maior proteção da floresta nativa do país. Joaquim Sande Silva, investigador da Escola Superior Agrária de Coimbra e um dos autores do “Manifesto por uma floresta discriminada”, diz ao i que a iniciativa surge como resposta ao manifesto publicado no final do ano passado em defesa da cultura do eucalipto, um documento que na altura foi assinado por mais de centena de entidades e personalidades.

O texto em causa, intitulado “Manifesto por uma Floresta Não Discriminada” e publicado em novembro de 2018, contestou que a responsabilidade pelos incêndios florestais pudesse ser imputada a esta espécie, falando de uma diabolização do eucalipto que contribui para a redução de rendimentos e para o abandono da floresta.

Joaquim Sande Silva, que integrou a comissão técnica independente que analisou os incêndios de 2017, diz que o objetivo da iniciativa que agora lançam em forma de petição online é refutar a ideia de que as florestas são todas iguais, defendendo uma discriminação positiva da floresta nativa do país. “Neste manifesto não falamos mal do eucalipto, mas refutamos a ideia de que as florestas são todas iguais, porque não são, e explicamos porque é que a floresta deve ser discriminada em função do valor que tem para a sociedade. É impossível voltar à floresta original, mas é possível termos mais de floresta original do que a que temos e criou-se junto de algumas pessoas a ideia de que o normal é ter o país cheio de eucaliptos.”

Os autores sublinham o contributo das árvores nativas do país em várias frentes, da regulação do regime hidrológico – suavizando os picos de cheia – à conservação do solo, armazenamento prolongado de carbono ou manutenção da biodiversidade, lê-se no manifesto, que assinala ainda que as áreas em que existe este tipo de floresta são muito pouco favoráveis à propagação do fogo.

O documento foca em particular as florestas maduras dominadas por carvalhos e os freixos, com os signatários a defender um pacote de medidas a nível legal, fiscal e financeiro. “Continua a não existir legislação de proteção às espécies arbóreas nativas, tal como já acontece com o sobreiro, a azinheira e o azevinho”, lê-se no manifesto, enviado ao i pelo investigador (ler ao lado). Sande Silva exemplifica que hoje um proprietário privado pode abater freixos ou carvalhos antigos sem ser responsabilizado. A iniciativa propõe ainda que o Estado adquira áreas que possam estar sem uso e contenham este tipo de espécies, “corrigindo o enorme deficit de florestas públicas em comparação com todos os outros países da Europa.”

A petição é lançada por um grupo de 24 signatários, entre eles Filipe Duarte Santos, investigador especialista em alterações climáticas da Faculdade de Ciências de Lisboa e Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero. Logo após o incêndio de Pedrógão Grande, o governo anunciou a intenção de limitar a expansão de eucalipto e as regras que impedem novas plantações que aumentem a área desta espécie no país entraram em vigor em fevereiro de 2018. Joaquim Sande Silva considera positiva essa alteração legislativa, mas defende que continua a faltar a promoção da floresta nacional. O investigador reconhece que eucaliptais bem geridos comportam menor risco em caso de incêndios, mas argumenta que essa realidade representa apenas uma minoria das plantações do país. “É impossível gerir toda a área florestal e se há áreas que não podem ser geridas, deve haver um esforço de serem ocupadas com espécies mais interessantes do ponto de vista ambiental”.

Uma semana depois de ter terminado o prazo de limpeza florestal, no passado 15 de março, o cenário está melhor do que há dois anos? Para o investigador, que tem sido crítico das regras que ditaram maior separação das copas das árvores, a intenção é boa, mas o resultado continua a ser problemático. “À custa desta ânsia de limpar têm-se feito verdadeiros atentados deitando abaixo árvores que proporcionam sombra e, por sua vez, mantêm níveis de elevados de humidade no solo. Isso é importante em termos de prevenção de incêndios e o que estamos a fazer é o contrário”, alerta.

 

Manifesto por uma floresta discriminada

Imagine o leitor uma floresta natural madura e longeva no espaço que hoje é Portugal. As árvores são, naturalmente, uma componente estrutural dominante, mas não exclusiva dessa floresta. Entre a restante vegetação há várias outras espécies, quer arbustivas quer herbáceas, e organismos mais simples como os musgos.

Haverá árvores de todas as idades, mas são as árvores centenárias que dominam o ecossistema, não apenas pela sua dimensão, mas também porque, no seu longo processo de decadência e finalmente morte, abrigam todo um universo de seres vivos. Os organismos decompositores – bactérias, fungos, microinverterbrados – pululam na manta morta proveniente da folhagem que se desprende cada ano, e transformam a matéria orgânica, permitindo que os nutrientes sejam gradualmente libertados e disponibilizados às raízes das plantas vivas. Desta complexa teia dependem todos os animais da floresta, desde os microscópicos, que vivem no solo e na matéria vegetal morta, aos que dependem das folhas e dos frutos, aos roedores e aos herbívoros. Animais de tamanho e visibilidade crescente à medida que percorremos a cadeia alimentar, culminando nos predadores, mamíferos e aves, diurnos e noturnos.

O leitor deverá agora ter em conta que apenas pode imaginar uma floresta assim em Portugal, pois no nosso país as florestas primárias foram todas destruídas pelo Homem ao longo dos milénios. Sim, foram destruídas, mas outras vezes apenas alteradas na sua composição, e em situações mais raras foram apenas pouco alteradas, permitindo-nos ter um vislumbre das antigas florestas que acompanharam as diferentes civilizações que passaram pelo nosso território. Ainda existem alguns resquícios destas florestas: a Mata do Solitário na Serra da Arrábida, a de Albergaria na Serra do Gerês, a da Margaraça na Serra do Açor ou a Laurissilva da Madeira constituem uma amostra, mesmo que alterada, do que foram as florestas pristinas do passado. Devido à sua raridade e ao seu valor natural e histórico, estas florestas têm um grande valor patrimonial. Para além do seu valor patrimonial, em geral as florestas nativas podem prestar um enorme manancial de serviços à sociedade: a regulação do regime hidrológico, suavizando os picos de cheia e fornecendo água de qualidade; a conservação do solo e a manutenção de elevados níveis de fertilidade, o armazenamento prolongado de carbono (algo muito diferente de simples fixação de carbono) necessário para contrariar o aquecimento global; a paisagem, que faz com que estes locais sejam muito visitados para recreio e lazer; ou o abrigo a animais e plantas, constituindo sistemas com elevada biodiversidade. Num país onde os incêndios são um fenómeno recorrente, estas florestas podem ser locais muito pouco favoráveis à propagação do fogo. Em particular as florestas maduras dominadas por espécies folhosas caducifólias como os carvalhos ou o freixo, dão normalmente origem a um ambiente aprazível de sombra e de frescura durante o verão, que torna mais difícil a propagação dos incêndios, algo amplamente comprovado cientificamente. As florestas nativas são também uma excelente barreira ao avanço de espécies exóticas invasoras, como tem sido também recorrentemente demonstrado por estudos científicos.

Com todos estes benefícios, parece natural que algo seja feito pela sociedade para favorecer estas florestas, relativamente à floresta estritamente produtiva. No entanto, há a tentativa de passar a mensagem mesmo por agentes do meio académico, que as florestas não devem ser discriminadas. Há quem chegue ao ponto de comparar a discriminação das espécies florestais a questões sociais como o racismo, numa espécie de antropomorfismo das árvores no mínimo absurdo, para não dizer ridículo. A acompanhar esta linha de raciocínio vem a afirmação de que apenas a gestão florestal faz a diferença em termos dos serviços prestados à sociedade. Esta assunção nega décadas de investigação científica que demonstram até à exaustão que as espécies são todas diferentes, e que há umas mais diferentes que outras, chama-se a isso distância filogenética. Esta distância faz por exemplo com que pouquíssimos animais da nossa fauna se alimentem de espécies provenientes do outro extremo do Planeta, como o eucalipto ou as acácias. O chavão da gestão, tão recorrente no discurso sobre a floresta, parte do princípio que tudo deve ser gerido, e que, portanto, cai sobre o Homem e não sobre as espécies, o papel que eventualmente possam ter quanto aos serviços que prestam e sobre os problemas que possam causar. Esta atitude exageradamente antropocêntrica revela não só ignorância como também uma enorme falta de humildade e de respeito pela natureza. Revela também um enorme irrealismo, dado que é impossível gerir cada metro quadrado do território deste ou de qualquer outro país.

Repare-se que a discriminação das espécies sempre foi uma evidência aos longo dos séculos, tal como aliás acontece hoje em dia. El-rei D. Dinis terá decretado que “sse non faça dano nos soueraes” de modo a travar a destruição dos sobreirais, no século XIV. A discriminação positiva do sobreiro mantém-se até aos dias de hoje, através de legislação de proteção, impedindo/dificultando a sua substituição por outras espécies e usos do solo. A legislação também discrimina, neste caso negativamente, as acácias, pelo impacto que a sua expansão pode causar nos ecossistemas nativos. A discriminação tem sido naturalmente feita pela industria de pasta para papel ao optar por uma única espécie, o eucalipto, para abastecer as suas fábricas. Essa discriminação positiva foi também feita pelo Estado ao fomentar a procura de matéria-prima através do aumento da capacidade industrial instalada. O aumento da procura fez aumentar naturalmente a oferta de madeira através da expansão das plantações, fazendo com que o eucalipto seja atualmente a espécie dominante na paisagem florestal portuguesa, à custa de uma discriminação negativa das espécies de crescimento lento, menos interessantes economicamente.

Dado que tudo se conjuga para favorecer a floresta de produção, é fundamental que se discrimine positivamente a floresta de conservação, para que possam continuar a existir ecossistemas florestais dignos desse nome, não obstante a lógica económica tender a suprimi-los. Por isso, a dotação de recursos, quer privados quer públicos, para a criação e manutenção de florestas nativas, discriminando-as positivamente em relação às monoculturas industriais, é fundamental, e só a sociedade, refletindo e agindo acima de uma lógica imediatista, pode garanti-los. A discriminação positiva da floresta nativa tão necessária em Portugal, deverá passar por um pacote de medidas a nível legal, fiscal e financeiro. Em particular continua a não existir legislação de proteção às espécies arbóreas nativas, tal como já acontece com o sobreiro, a azinheira e o azevinho. Existem muitas manchas de floresta nativa em propriedades privadas sem qualquer estatuto de proteção e existem muitas outras áreas em que, com pouco esforço, se poderiam converter matagais em florestas nativas maduras. Mas para que se possam expandir e conservar estas manchas de floresta, é necessário fazer mais do que tem sido feito até agora, dando incentivos aos proprietários e compensando-os pelo serviço que prestam à sociedade. Em alternativa, estas áreas, algumas delas sem dono conhecido, poderão ser adquiridas pelo Estado ou outras entidades públicas, corrigindo o enorme deficit de florestas públicas em comparação com todos os outros países da Europa. Ao nível do planeamento seria desejável que os Planos Regionais de Ordenamento Florestal fossem muito mais ambiciosos no fomento da floresta nativa. Enfim, discrimine-se o que deve ser discriminado, porque as florestas não são todas iguais e porque a sociedade valoriza de forma diferente os diferentes tipos de floresta e as espécies que os constituem. Pugnemos por isso por uma floresta discriminada!