“Terceira via”, cemitério do socialismo democrático


A “terceira via” de Tony Blair inseriu-se num movimento europeu de convergência ideológica dos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas em direção a algo que não passa de uma versão atenuada de neoliberalismo


“Quando observamos atentamente a “terceira via”, ela não se parece com um “modelo” mas tão-só com “trabalhos em curso”… Ela nem sequer consegue saber se o seu objectivo é captar o “centro radical” ou é modernizar o “centro esquerda”. Não deveria, pois, espantar-se por ver tantos jovens eleitores situarem-se no “centro direita”!” – Stuart Hall, em “O grande desfile rumo a lado nenhum” (1998)

1. É hoje uma evidência que os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus, membros da Internacional Socialista (IS), foram contaminados, sobretudo na última década do século XX, pelas ideias veiculadas pela chamada “Terceira Via” – defendidas, sobretudo, por Tony Blair (que criou o New Labour) e pelo seu sociólogo de serviço, Anthony Giddens (autor do conceito de “Terceira Via” entre a esquerda e a direita), mas também pelo então líder do SPD alemão Gerhard Schroeder (adepto do chamado Novo Centro).

O New Labour foi criado em nome da “modernidade” e para responder ao impacto da globalização. Foi apresentado como uma alternativa moderna de centro-esquerda, com base no argumento segundo o qual a esquerda e a direita tradicionais já não conseguiam apresentar propostas viáveis e dar respostas eficazes aos novos desafios económicos, sociais e políticos.

A primeira batalha travada por Tony Blair e por Gordon Brown (então aliados), quando tomaram conta do Partido Trabalhista em 1994 (após a morte súbita e inesperada do seu líder, John Smith), foi a de suprimir o artigo 4º dos estatutos do partido, que previa a hipótese de socialização dos meios de produção. Ganha esta batalha, Tony Blair conseguiu, com o apoio daqueles que o tinham elegido, reduzir drasticamente o peso e a influência dos sindicatos no aparelho do partido. 

Digamos que, na cabeça dos dirigentes do New Labour, se impôs rapidamente a ideia de que os seus verdadeiros “inimigos” eram “os extremistas de esquerda”, ou seja, os sindicalistas e as classes trabalhadoras tradicionais. Por isso, o Partido Trabalhista tinha de se “recentrar” – isto é: situar-se no “centro do centro”, ou, como dizem os franceses, no “juste milieu” – e preocupar-se acima de tudo em conquistar as “novas classes médias”.

Tony Blair concebeu e estruturou o New Labour como uma empresa privada, com métodos de marketing transpostos para a política e com especialistas em comunicação (os famosos spin doctors) incumbidos de “vender o produto New Labour” e impor a sua agenda política aos meios de comunicação social. Na visão de Tony Blair, a empresa era considerada como uma comunidade harmoniosa de interesses, que agrupa accionistas, assalariados, clientes e fornecedores. Reinventou, assim, uma mística política em que a noção de “harmonia social” exclui e expulsa a ideia de “luta de classes”.

O sociólogo Anthony Giddens, principal teórico da “Terceira Via”, foi mesmo ao ponto de diagnosticar, explicitamente, o “arcaísmo da esquerda” face à “revolução neoliberal”, assim como o carácter ultrapassado do Estado perante a “ideia fulcral e incontornável” da mundialização. Cito duas frases que ele proferiu:

– “A política da terceira via deve adoptar uma atitude positiva em relação à mundialização”;

– “Os governos social-democratas já não podem utilizar os métodos tradicionais de estímulo à procura e do recurso ao Estado, porque os mercados financeiros não o permitiriam”.

Ou seja, Anthony Giddens aceita o primado dos “mercados financeiros” e a sujeição dos Estados e dos Governos (democraticamente eleitos, note-se) às suas imposições.

Para Anthony Giddens, a “Terceira Via” pretende constituir-se como um novo modelo entre o “conservadorismo thatcherista” e o “trabalhismo tradicional”. 

Mas é óbvio que a “Terceira Via” se tornou, sobretudo, num instrumento de combate à tradição trabalhista e social-democrata, e se traduziu, quer numa clara aproximação (e, mesmo, adesão) às teses neoconservadoras de Margaret Thatcher, quer na adopção de políticas preconizadas pela cartilha neoliberal.

Um dos mais importantes spin doctors de Tony Blair, Peter Mandelson, chegou mesmo a afirmar, em 10 de Junho de 2002, em entrevista ao “The Times”: “We are all thatcherists now!” (“Agora somos todos thatcheristas!”). Foi como se os principais dirigentes dos partidos da IS afirmassem: “Agora somos todos neoliberais!”.

2. Os spin doctors desempenharam um papel bastante nefasto em todo o processo de descaracterização do trabalhismo britânico e do socialismo democrático (ou social-democracia) europeu. Os spin doctors são qualificados, indiferentemente, como peritos em provocar reviravoltas na opinião pública, como fabricantes de consensos políticos, como especialistas em moldar a opinião pública, como manipuladores exímios e como eminências pardas.

Alastair Campbell, outro dos famosos spin doctors de Tony Blair, desenvolveu uma estratégia de “guerra permanente” com o objectivo de impor aos média a agenda política do Governo. Não hesitou, sequer, em fornecer aos ministros de Blair uma série de argumentários e de pequenas frases assassinas, inclusive com informações consideradas “lixo”, só para desestabilizar os adversários. 

Tratou-se, fundamentalmente, de uma autêntica campanha de despolitização do espaço público, que se saldou pelo triunfo da forma (de comunicação) sobre o conteúdo (das políticas). O próprio político foi transformado num produto de marketing, num contexto em que a sua personalidade e o seu sorriso se tornaram trunfos no mercado mediático. 

A “Terceira Via” blairista inseriu-se, de facto, num movimento geral europeu de convergência ideológica dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas em direcção àquilo que muitos designaram por “social-liberalismo”, e que, na realidade, não passa de uma versão atenuada do neoliberalismo.

Tony Blair é ainda hoje considerado (pela direita) como um “digno herdeiro” da revolução (leia-se: contra-revolução) levada a cabo por Margaret Thatcher na Grã-Bretanha. Nos anos de viragem do século XX para o século XXI, Tony Blair conseguiu exercer um verdadeiro fascínio sobre os partidos socialistas e social-democratas europeus (designadamente, aqui em Portugal, com António Guterres e os seus sucessores na liderança do PS, salvo porventura os casos de Ferro Rodrigues e de António Costa).

A apoteose do modelo da “Terceira Via” terá sido o “Manifesto Blair-Schroeder”, assinado e publicado em 1999, antes das eleições europeias de 2000, quando “a União Europeia a 15” ainda contava com 11 governos socialistas, social-democratas e trabalhistas. Nessa altura, Tony Blair queria mesmo ir mais longe para validar o seu novo paradigma social-democrata, propondo a criação de uma Internacional Democrata capaz de suplantar e porventura suprimir a Internacional Socialista. Mas as estrondosas derrotas eleitorais de 2000, na maioria dos países europeus, inviabilizaram esse projecto.

3. Agitando a bandeira da “modernização” empunhada por Blair e Schroeder, os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus optaram por se identificar apenas com as classes médias, desinteressando-se de representar também os interesses das classes populares (ou classes baixas), cujas reivindicações foram consideradas “arcaicas” e “retrógradas”. Não surpreende, por isso, que os partidos populistas da direita tentem explorar esse terreno vago.

Começaram, aliás, a ser recorrentes, no discurso justificativo da “Terceira Via”, afirmações do género: “as diferenças entre esquerda e direita são hoje obsoletas”; “não há alternativa à globalização neoliberal”; “não temos nada contra quem consegue acumular grandes fortunas”. Para Blair, estas afirmações eram um sinal identificador da chamada “esquerda moderna”, que ele dizia representar.

A social-democracia contribuiu, assim, para a “colonização” da sociedade civil por uma espécie de “senso comum neoliberal”, bem patente nos vocábulos, conceitos e discursos produzidos pelas elites dirigentes.

A “empresa” passou a ser o novo modelo do Estado, tal como a “gestão empresarial” passou a ser o novo modelo de direcção dos serviços públicos. O sector público passou a ser considerado, por definição, ineficaz e ultrapassado “por visar objectivos sociais que vão muito além da estrita eficácia económica e da rentabilidade”. Para os neoliberais, mesmo o Estado exíguo só pode salvar-se se cumprir religiosamente as regras que o mercado impõe.

O “homem de negócios” e o “empreendedor” foram elevados à categoria de heróis e exemplos a seguir. E o “empreendedorismo” passou a ser um termo recorrente no discurso dos políticos e tecnocratas dos partidos que alternam no poder. A chamada “esquerda moderna” foi-se aproximando, assim, da “nova direita”, claudicando perante a hegemonia das ideias ultraliberais. 

Como salientou o sociólogo britânico Stuart Hall (1932-2014) – nos ensaios que escreveu sobre o “populismo autoritário” de Margaret Thatcher e Tony Blair – tal hegemonia é justificada, no discurso neoliberal, pelo desabrochar de um novo individualismo; pelo advento da nova sociedade pós-industrial; pela nova revolução tecnológica; pela luta do capital em prol do seu direito a gerir o mundo; pela globalização da economia internacional – que foi o meio encontrado pelo capital para se expandir e sair do impasse em que se encontrava. 

4. É fácil de constatar que estamos, aqui, perante um exemplo de “hegemonia cultural”, que a direita foi impondo e consolidando para melhor controlar o poder político. Essa hegemonia foi obtida graças a um apoio constante do poder económico e financeiro e à enorme pressão que este exerce, quer sobre os mais importantes órgãos de comunicação social (que lhe pertencem), quer sobre os partidos políticos dominantes (que ele financia)

Constituiu-se assim – parafraseando o filósofo marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) – um “bloco histórico” dominado pelos partidos da direita neoliberal, que foram arrastando atrás de si os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas. Estes partidos da IS tornaram-se, assim, numa espécie de organismos híbridos constituídos por duas tendências:

– a tendência neoliberal, que ocupa uma posição dominante, sobretudo quando o partido está no governo, e que se traduz, basicamente, na aceitação do fundamentalismo do mercado;

– a tendência social-democrata, subordinada e marginal, cujo objectivo essencial é conservar apoios da esquerda tradicional, sobretudo quando se aproximam eleições.

Esta duplicidade implicou o recurso a habilidades retóricas, para iludir a óbvia contradição entre as duas tendências e tentar disfarçar a subalternidade das propostas social-democratas nos programas políticos apresentados ao eleitorado. 

Os termos “modernização da economia” e “reforma do Estado” tornaram-se recorrentes quer no discurso social-democrata quer no discurso neoliberal. O sociólogo Stuart Hall identificou com clareza os principais objectivos dessa “reforma” considerada “modernizadora”, a saber: abrir caminho aos investimentos privados e tornar cada vez mais difusa a distinção entre público e privado; cumprir à risca critérios de eficácia e rentabilidade impostos pelo mercado; impor a autoridade do gestor empresarial (manager) aos comandos da administração pública; reformar profundamente as práticas do trabalho acentuando a sua individualização; incitar os assalariados a concorrer uns contra os outros, recorrendo a instrumentos de motivação financeiros que minam a negociação colectiva; quebrar a espinha aos sindicatos diminuindo o seu poder reivindicativo; reduzir drasticamente os efectivos e os custos dos serviços públicos; situar e/ou manter os salários do sector público sempre abaixo dos salários do sector privado; e reorganizar serviços, impondo o princípio do funcionamento “a duas velocidades”, através da chamada “selectividade”.

Assim se procurou, por exemplo, criar uma espécie de Serviço Nacional de Saúde e um Ensino “a duas velocidades”: uma para os ricos, livres de escolher entre o público e o privado, e aptos a desenvolver os seus próprios sistemas privados de saúde e formação escolar (diminuindo, assim, as contribuições para a sustentabilidade dos sistemas públicos); outra para os pobres, abandonados à sua sorte, impotentes perante o esvaziamento dos cofres públicos e indefesos perante o fim da protecção social, do salário mínimo, do direito ao trabalho e à sua duração fixada na lei. 

Tudo isto, em detrimento dos princípios básicos da solidariedade, igualdade e universalidade. E abrindo o caminho, por exemplo, para tornar a saúde um dos sectores mais lucrativos para o investimento privado, através da construção e gestão de hospitais públicos.

5. Seguindo o exemplo do “blairismo”, a comunicação política tornou-se uma arma essencial dos partidos da IS, na tentativa de conciliar o inconciliável e de justificar o injustificável – como, por exemplo, a pesca à linha que continuam a fazer nos programas políticos da direita neoliberal, com o objectivo de conquistar votos no grande centro ou “centrão”. Trata-se de “envernizar”, recorrendo à retórica comunicacional, as propostas políticas de carácter ultra-liberal, tornando-as mais atractivas aos olhos dos seus eleitores tradicionais: as classes médias e as classes populares.

Reduzindo a política à comunicação e à gestão da opinião, para seduzir diferentes públicos, vários partidos da IS terão conseguido, efemeramente, realizar a quadratura do círculo, conquistando muitos votos ao centro e à direita, mas seguramente terão perdido a alma e a coerência ideológica e política.

Não se iludam os socialistas portugueses: a “Terceira Via” tem sido mesmo um autêntico cemitério do socialismo democrático ou social-democracia!


“Terceira via”, cemitério do socialismo democrático


A "terceira via" de Tony Blair inseriu-se num movimento europeu de convergência ideológica dos partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas em direção a algo que não passa de uma versão atenuada de neoliberalismo


“Quando observamos atentamente a “terceira via”, ela não se parece com um “modelo” mas tão-só com “trabalhos em curso”… Ela nem sequer consegue saber se o seu objectivo é captar o “centro radical” ou é modernizar o “centro esquerda”. Não deveria, pois, espantar-se por ver tantos jovens eleitores situarem-se no “centro direita”!” – Stuart Hall, em “O grande desfile rumo a lado nenhum” (1998)

1. É hoje uma evidência que os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus, membros da Internacional Socialista (IS), foram contaminados, sobretudo na última década do século XX, pelas ideias veiculadas pela chamada “Terceira Via” – defendidas, sobretudo, por Tony Blair (que criou o New Labour) e pelo seu sociólogo de serviço, Anthony Giddens (autor do conceito de “Terceira Via” entre a esquerda e a direita), mas também pelo então líder do SPD alemão Gerhard Schroeder (adepto do chamado Novo Centro).

O New Labour foi criado em nome da “modernidade” e para responder ao impacto da globalização. Foi apresentado como uma alternativa moderna de centro-esquerda, com base no argumento segundo o qual a esquerda e a direita tradicionais já não conseguiam apresentar propostas viáveis e dar respostas eficazes aos novos desafios económicos, sociais e políticos.

A primeira batalha travada por Tony Blair e por Gordon Brown (então aliados), quando tomaram conta do Partido Trabalhista em 1994 (após a morte súbita e inesperada do seu líder, John Smith), foi a de suprimir o artigo 4º dos estatutos do partido, que previa a hipótese de socialização dos meios de produção. Ganha esta batalha, Tony Blair conseguiu, com o apoio daqueles que o tinham elegido, reduzir drasticamente o peso e a influência dos sindicatos no aparelho do partido. 

Digamos que, na cabeça dos dirigentes do New Labour, se impôs rapidamente a ideia de que os seus verdadeiros “inimigos” eram “os extremistas de esquerda”, ou seja, os sindicalistas e as classes trabalhadoras tradicionais. Por isso, o Partido Trabalhista tinha de se “recentrar” – isto é: situar-se no “centro do centro”, ou, como dizem os franceses, no “juste milieu” – e preocupar-se acima de tudo em conquistar as “novas classes médias”.

Tony Blair concebeu e estruturou o New Labour como uma empresa privada, com métodos de marketing transpostos para a política e com especialistas em comunicação (os famosos spin doctors) incumbidos de “vender o produto New Labour” e impor a sua agenda política aos meios de comunicação social. Na visão de Tony Blair, a empresa era considerada como uma comunidade harmoniosa de interesses, que agrupa accionistas, assalariados, clientes e fornecedores. Reinventou, assim, uma mística política em que a noção de “harmonia social” exclui e expulsa a ideia de “luta de classes”.

O sociólogo Anthony Giddens, principal teórico da “Terceira Via”, foi mesmo ao ponto de diagnosticar, explicitamente, o “arcaísmo da esquerda” face à “revolução neoliberal”, assim como o carácter ultrapassado do Estado perante a “ideia fulcral e incontornável” da mundialização. Cito duas frases que ele proferiu:

– “A política da terceira via deve adoptar uma atitude positiva em relação à mundialização”;

– “Os governos social-democratas já não podem utilizar os métodos tradicionais de estímulo à procura e do recurso ao Estado, porque os mercados financeiros não o permitiriam”.

Ou seja, Anthony Giddens aceita o primado dos “mercados financeiros” e a sujeição dos Estados e dos Governos (democraticamente eleitos, note-se) às suas imposições.

Para Anthony Giddens, a “Terceira Via” pretende constituir-se como um novo modelo entre o “conservadorismo thatcherista” e o “trabalhismo tradicional”. 

Mas é óbvio que a “Terceira Via” se tornou, sobretudo, num instrumento de combate à tradição trabalhista e social-democrata, e se traduziu, quer numa clara aproximação (e, mesmo, adesão) às teses neoconservadoras de Margaret Thatcher, quer na adopção de políticas preconizadas pela cartilha neoliberal.

Um dos mais importantes spin doctors de Tony Blair, Peter Mandelson, chegou mesmo a afirmar, em 10 de Junho de 2002, em entrevista ao “The Times”: “We are all thatcherists now!” (“Agora somos todos thatcheristas!”). Foi como se os principais dirigentes dos partidos da IS afirmassem: “Agora somos todos neoliberais!”.

2. Os spin doctors desempenharam um papel bastante nefasto em todo o processo de descaracterização do trabalhismo britânico e do socialismo democrático (ou social-democracia) europeu. Os spin doctors são qualificados, indiferentemente, como peritos em provocar reviravoltas na opinião pública, como fabricantes de consensos políticos, como especialistas em moldar a opinião pública, como manipuladores exímios e como eminências pardas.

Alastair Campbell, outro dos famosos spin doctors de Tony Blair, desenvolveu uma estratégia de “guerra permanente” com o objectivo de impor aos média a agenda política do Governo. Não hesitou, sequer, em fornecer aos ministros de Blair uma série de argumentários e de pequenas frases assassinas, inclusive com informações consideradas “lixo”, só para desestabilizar os adversários. 

Tratou-se, fundamentalmente, de uma autêntica campanha de despolitização do espaço público, que se saldou pelo triunfo da forma (de comunicação) sobre o conteúdo (das políticas). O próprio político foi transformado num produto de marketing, num contexto em que a sua personalidade e o seu sorriso se tornaram trunfos no mercado mediático. 

A “Terceira Via” blairista inseriu-se, de facto, num movimento geral europeu de convergência ideológica dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas em direcção àquilo que muitos designaram por “social-liberalismo”, e que, na realidade, não passa de uma versão atenuada do neoliberalismo.

Tony Blair é ainda hoje considerado (pela direita) como um “digno herdeiro” da revolução (leia-se: contra-revolução) levada a cabo por Margaret Thatcher na Grã-Bretanha. Nos anos de viragem do século XX para o século XXI, Tony Blair conseguiu exercer um verdadeiro fascínio sobre os partidos socialistas e social-democratas europeus (designadamente, aqui em Portugal, com António Guterres e os seus sucessores na liderança do PS, salvo porventura os casos de Ferro Rodrigues e de António Costa).

A apoteose do modelo da “Terceira Via” terá sido o “Manifesto Blair-Schroeder”, assinado e publicado em 1999, antes das eleições europeias de 2000, quando “a União Europeia a 15” ainda contava com 11 governos socialistas, social-democratas e trabalhistas. Nessa altura, Tony Blair queria mesmo ir mais longe para validar o seu novo paradigma social-democrata, propondo a criação de uma Internacional Democrata capaz de suplantar e porventura suprimir a Internacional Socialista. Mas as estrondosas derrotas eleitorais de 2000, na maioria dos países europeus, inviabilizaram esse projecto.

3. Agitando a bandeira da “modernização” empunhada por Blair e Schroeder, os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus optaram por se identificar apenas com as classes médias, desinteressando-se de representar também os interesses das classes populares (ou classes baixas), cujas reivindicações foram consideradas “arcaicas” e “retrógradas”. Não surpreende, por isso, que os partidos populistas da direita tentem explorar esse terreno vago.

Começaram, aliás, a ser recorrentes, no discurso justificativo da “Terceira Via”, afirmações do género: “as diferenças entre esquerda e direita são hoje obsoletas”; “não há alternativa à globalização neoliberal”; “não temos nada contra quem consegue acumular grandes fortunas”. Para Blair, estas afirmações eram um sinal identificador da chamada “esquerda moderna”, que ele dizia representar.

A social-democracia contribuiu, assim, para a “colonização” da sociedade civil por uma espécie de “senso comum neoliberal”, bem patente nos vocábulos, conceitos e discursos produzidos pelas elites dirigentes.

A “empresa” passou a ser o novo modelo do Estado, tal como a “gestão empresarial” passou a ser o novo modelo de direcção dos serviços públicos. O sector público passou a ser considerado, por definição, ineficaz e ultrapassado “por visar objectivos sociais que vão muito além da estrita eficácia económica e da rentabilidade”. Para os neoliberais, mesmo o Estado exíguo só pode salvar-se se cumprir religiosamente as regras que o mercado impõe.

O “homem de negócios” e o “empreendedor” foram elevados à categoria de heróis e exemplos a seguir. E o “empreendedorismo” passou a ser um termo recorrente no discurso dos políticos e tecnocratas dos partidos que alternam no poder. A chamada “esquerda moderna” foi-se aproximando, assim, da “nova direita”, claudicando perante a hegemonia das ideias ultraliberais. 

Como salientou o sociólogo britânico Stuart Hall (1932-2014) – nos ensaios que escreveu sobre o “populismo autoritário” de Margaret Thatcher e Tony Blair – tal hegemonia é justificada, no discurso neoliberal, pelo desabrochar de um novo individualismo; pelo advento da nova sociedade pós-industrial; pela nova revolução tecnológica; pela luta do capital em prol do seu direito a gerir o mundo; pela globalização da economia internacional – que foi o meio encontrado pelo capital para se expandir e sair do impasse em que se encontrava. 

4. É fácil de constatar que estamos, aqui, perante um exemplo de “hegemonia cultural”, que a direita foi impondo e consolidando para melhor controlar o poder político. Essa hegemonia foi obtida graças a um apoio constante do poder económico e financeiro e à enorme pressão que este exerce, quer sobre os mais importantes órgãos de comunicação social (que lhe pertencem), quer sobre os partidos políticos dominantes (que ele financia)

Constituiu-se assim – parafraseando o filósofo marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) – um “bloco histórico” dominado pelos partidos da direita neoliberal, que foram arrastando atrás de si os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas. Estes partidos da IS tornaram-se, assim, numa espécie de organismos híbridos constituídos por duas tendências:

– a tendência neoliberal, que ocupa uma posição dominante, sobretudo quando o partido está no governo, e que se traduz, basicamente, na aceitação do fundamentalismo do mercado;

– a tendência social-democrata, subordinada e marginal, cujo objectivo essencial é conservar apoios da esquerda tradicional, sobretudo quando se aproximam eleições.

Esta duplicidade implicou o recurso a habilidades retóricas, para iludir a óbvia contradição entre as duas tendências e tentar disfarçar a subalternidade das propostas social-democratas nos programas políticos apresentados ao eleitorado. 

Os termos “modernização da economia” e “reforma do Estado” tornaram-se recorrentes quer no discurso social-democrata quer no discurso neoliberal. O sociólogo Stuart Hall identificou com clareza os principais objectivos dessa “reforma” considerada “modernizadora”, a saber: abrir caminho aos investimentos privados e tornar cada vez mais difusa a distinção entre público e privado; cumprir à risca critérios de eficácia e rentabilidade impostos pelo mercado; impor a autoridade do gestor empresarial (manager) aos comandos da administração pública; reformar profundamente as práticas do trabalho acentuando a sua individualização; incitar os assalariados a concorrer uns contra os outros, recorrendo a instrumentos de motivação financeiros que minam a negociação colectiva; quebrar a espinha aos sindicatos diminuindo o seu poder reivindicativo; reduzir drasticamente os efectivos e os custos dos serviços públicos; situar e/ou manter os salários do sector público sempre abaixo dos salários do sector privado; e reorganizar serviços, impondo o princípio do funcionamento “a duas velocidades”, através da chamada “selectividade”.

Assim se procurou, por exemplo, criar uma espécie de Serviço Nacional de Saúde e um Ensino “a duas velocidades”: uma para os ricos, livres de escolher entre o público e o privado, e aptos a desenvolver os seus próprios sistemas privados de saúde e formação escolar (diminuindo, assim, as contribuições para a sustentabilidade dos sistemas públicos); outra para os pobres, abandonados à sua sorte, impotentes perante o esvaziamento dos cofres públicos e indefesos perante o fim da protecção social, do salário mínimo, do direito ao trabalho e à sua duração fixada na lei. 

Tudo isto, em detrimento dos princípios básicos da solidariedade, igualdade e universalidade. E abrindo o caminho, por exemplo, para tornar a saúde um dos sectores mais lucrativos para o investimento privado, através da construção e gestão de hospitais públicos.

5. Seguindo o exemplo do “blairismo”, a comunicação política tornou-se uma arma essencial dos partidos da IS, na tentativa de conciliar o inconciliável e de justificar o injustificável – como, por exemplo, a pesca à linha que continuam a fazer nos programas políticos da direita neoliberal, com o objectivo de conquistar votos no grande centro ou “centrão”. Trata-se de “envernizar”, recorrendo à retórica comunicacional, as propostas políticas de carácter ultra-liberal, tornando-as mais atractivas aos olhos dos seus eleitores tradicionais: as classes médias e as classes populares.

Reduzindo a política à comunicação e à gestão da opinião, para seduzir diferentes públicos, vários partidos da IS terão conseguido, efemeramente, realizar a quadratura do círculo, conquistando muitos votos ao centro e à direita, mas seguramente terão perdido a alma e a coerência ideológica e política.

Não se iludam os socialistas portugueses: a “Terceira Via” tem sido mesmo um autêntico cemitério do socialismo democrático ou social-democracia!