Os 69 de Marcelo


Marcelo Rebelo de Sousa é o Presidente mais conservador da história da democracia portuguesa, superando, em larga medida, o Presidente Cavaco Silva


1. Hoje é dia de aniversário do mais alto magistrado da Nação portuguesa: Marcelo Rebelo de Sousa completa sessenta e nove anos de idade. Uma idade que corresponde a um número muito curioso, segundo a doutrina de Mota Amaral. À beira da provecta e sábia idade septuagenária, o menino-prodígio da política portuguesa (pré e pós-democracia) vive a concretização do seu destino: exerce actualmente as funções de Presidente da República – ambição para a qual sempre trabalhou, apesar de sempre a negar. Analisar a política portuguesa do presente passa inexoravelmente por analisar o comportamento e as declarações (expressas e implícitas) de Marcelo: o Presidente é o astrolábio político conjuntural. Para onde Marcelo for, é para onde irá o centro da política nacional: se Marcelo for para a esquerda, o sentido da política governativa será a esquerda; se Marcelo for para a direita, o sentido da política governativa irá para a direita.

2. Marcelo é, ao mesmo tempo, um protagonista cimeiro da política nacional – e um senador, quase uma peça de museu que documente a história política nacional da segunda metade do século XX e primeiro quartel do século XXI. A verdade é que o ex-comentador da TVI exerce o seu mandato presidencial há menos de dois anos –embora já pareça que se encontra na chefia do Estado desde 25 de Abril de 1974. Parece que Portugal nunca teve outro Presidente da República; Marcelo esteve sempre no Palácio de Belém, a confortar os portugueses afectados pelas intempéries das últimas décadas. Parece que Marcelo sempre foi o “Pai da Nação”, advertindo os governantes, censurando os políticos, sugerindo caminhos – enquanto discorria longamente sobre o futuro da direita, ao mesmo tempo que se propunha revitalizar o espírito da esquerda.

3. Em Cascais, o primogénito Rebelo de Sousa é uma figura lídima da direita conservadora; em Lisboa, passa a senador social-democrata típico, focado em reivindicar as suas credenciais de histórico do partido, de centro-esquerda; no resto do país, Marcelo esforça-se por provar que é a “esquerda da direita”. É um caso único de personalidade que conjuga uma multiplicidade de personalidades. Eis, pois, o grande mérito do Presidente Marcelo até ao momento: parecer ser aquilo que não é – e ser aquilo que não parece que é. Expliquemos.

3.1. O Presidente Marcelo parece ser aquilo que não é. Marcelo Rebelo de Sousa é estruturalmente conservador, monárquico apaixonado e republicano acomodado, mais à direita que qualquer outro líder histórico do PSD, com excepção de Manuela Ferreira Leite (a líder mais à direita que o PSD já teve, por muito que custe aos que tentam dar lições de política na televisão semanalmente, mas que de política nada percebem…). Aliás, na sua obra dedicada à história do partido em que milita, Marcelo assume que o PPD se formou devido à confluência de três tendências ou sensibilidades internas: a social-democracia pura, de gente que sentia até afinidades com o PS de Mário Soares; o social-liberalismo, que propugnava pela libertação da sociedade e a diminuição da presença asfixiante do Estado na vida do indivíduo (liderada por Francisco Pinto Balsemão) e o social-conservadorismo, baseada ideologicamente na doutrina social da igreja. O actual Presidente da República auto-inseria-se nesta última tendência: a sua visão política-ideológica era, pois, conservadora nos costumes e intervencionista em matéria económico-social.

3.1.1. Justiça social, na visão ideológica de Marcelo, significa a caridade do Estado (e de outras organizações privadas de interesse público) face aos mais vulneráveis da sociedade. Não implica, porém, a aposta na promoção da ascensão social pelo mérito, igualdade de oportunidades ou combater a estratificação social ditada por factores aleatórios, como a origem familiar: o filho de um pobre poderá manter o seu destino de pobreza, desde que o Estado o apoio minimamente. É, no fundo, a visão salazarista dos “brandos costumes” aplicada à justiça social: o Estado apenas tem que assegurar o patamar mínimo de existência condigna dos cidadãos, mesmo que a sua organização, os seus velhos hábitos e a sua colonização pelos interesses de uma elite que se julga a “vanguarda da república” condene gerações sucessivas à pobreza ou ao “viver habitualmente”. A Constituição da República Portuguesa consagra, assim, apenas o direito à “pobreza feliz” – ressalvada tal protecção, o Estado poderá confiscar os cidadãos e as empresas (que criam emprego, logo, riqueza para os trabalhadores, empregadores e investidores), poderá usar o dinheiro dos contribuintes para comprar votos, poderá sacrificar milhões de portugueses em prol das ambições de poder de alguns (e algum), poderá tratar “os ricos” que auferem um salário acima dos mil euros mensais como criminosos. Pois bem, Marcelo acredita nesta concepção clássica de justiça social –não associada ao princípio da justiça, liberal, de acordo com os ensinamentos de John Rawls e de Ronald Dworkin, mas sim identificada com a caridade, como uma dádiva dos que mais podem aos “infelizes desgraçados” da comunidade.

3.1.2. Daqui se retira que, por estranho que pareça ao leitor mais distante dos meandros e subtilezas políticas, Marcelo Rebelo de Sousa é o Presidente mais conservador da história da democracia portuguesa: superando, em larga medida, o Presidente Cavaco Silva. Isto porque Cavaco acreditava na ascensão social pelo esforço, pelo mérito, pela educação, de que o próprio era um exemplo paradigmático; diferentemente, Marcelo nasceu no berço do Estado Novo, em família privilegiada, derivando a sua preocupação social da observação do trabalho da sua mãe, Maria das Neves, como assistente social, bem como da sua ortodoxia católica. Concluindo: Marcelo parece que é um progressista social, dada a proximidade com o povo e as milhares de fotos que tira nas ruas por esse país fora – contudo, no que verdadeiramente importa (nas ideias, nas decisões, na visão que tem para Portugal), Marcelo é um conservador tradicional (e tradicionalista).

3.2. Por outro lado, Marcelo é aquilo que não parece. Para além de Marcelo ser o político com protagonismo efectivo mais conservador da actualidade, não obstante as aparências de “progressista” e “liberal” – é ainda o mais envolvido na vida interna dos partidos. Especialmente, de um partido – o PSD, pois claro. Marcelo Rebelo de Sousa arroga-se no estatuto de “proprietário moral”, de “zelador moral” do partido laranjinha: parte da ideia de que a “direita portuguesa é estúpida” (palavras do próprio) e que precisa de orientação permanente. Os militantes do PSD não sabem exercer devidamente o seu livre-arbítrio eleitoral: precisam dos sábios sinais do “pai” Presidente Marcelo. Daí que o actual Presidente da República troque sms’s com figuras destacadas do PSD, lance nomes para a liderança depois de 2019, almoce com um candidato actual, desqualifique o ainda Presidente do partido (Pedro Passos Coelho) e já opine sobre qual a melhor estratégia do PSD para combater a força de António Costa nas urnas (esquecendo-se que, mesmo contra as suas previsões, Passos Coelho derrotou Costa em 2015).

3.2.1. Marcelo não vive sem o PSD – e morre de curiosidade para se inteirar dos desenvolvimentos diários da vida do partido. Há dias, Marcelo declarou mesmo que tem as quotas em dia e, por conseguinte (dedução nossa) poderá votar nas directas de Janeiro – ora, não deixa de ser curioso como é que um militante que diz ter a inscrição suspensa tem as quotas em dia…Mistérios da vida que só estão reservados a Marcelo Rebelo de Sousa. No entanto, a imagem que passa diariamente é que o Presidente Marcelo é o Presidente mais imparcial, mais distante da vida dos partidos políticos que Portugal já conheceu! Mais: não deixa de ser bizarro que os mesmos factos que eram criticáveis em Marcelo há vinte anos – sejam hoje elogiados ilimitadamente pelos mesmos jornalistas e comentadores! Como poderão os portugueses levá-los a sério? Não podem: não admira que estes mesmos comentadores e jornalistas passem a vida a pedir desculpa…

3.2.2. Desta feita, em jeito de presente de aniversário, Marcelo Rebelo de Sousa convidou o histórico e deveras competente assessor de imprensa do PSD, Zeca Mendonça, para a assessoria de imprensa da Presidência da República. Ora, o Presidente que diz ser o político mais independente de todos leva para a sua equipa a pessoa que melhor conhece e domina a máquina do PSD – em pleno processo eleitoral nesse partido! Ou seja: Marcelo quer estar por dentro da luta entre Pedro Santana Lopes e Rui Rio. Mais: Marcelo apoia Santana Lopes, mas já está a queimá-lo para 2019, lançando (de forma inaudita e só possível em Portugal) Carlos Moedas como o futuro do PSD. E resta esperar para perceber qual será a “facada final” que Marcelo dará (ou tentará dar) na candidatura de Rui Rio. Para nós, é a grande incógnita da política portuguesa nos próximos dias, em plena época natalícia.

4.Tudo isto dito e redito, há que louvar Marcelo por marcar presença quando outros poderes do Estado faltam (e falham). E, neste dia, acima de tudo, desejamos-lhe um feliz aniversário, Senhor Presidente!

 

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