27 de Setembro de 1985. O centro comercial das Amoreiras é inaugurado com toda a pompa e circunstância. Entre as figuras presentes na cerimónia de abertura estão o presidente da câmara de Lisboa, Nuno Krus Abecasis – que chega a ser abordado por cidadãos indignados –, e o Presidente da República, Ramalho Eanes. Apenas alguns dias antes, a 2 de Setembro, os portugueses tinham visto pela primeira vez uma máquina multibanco. E, em Junho, Portugal assinara a adesão à CEE. O país estava a modernizar-se a um ritmo acelerado.
Ocupando o local de uma antiga estação de recolha de autocarros da Carris, o complexo das Amoreiras transformou por completo aquela zona da cidade num polo de cosmopolitismo. E nem todos os lisboetas reagiram bem à mudança. Alguns criticaram o mau gosto dos edifícios (o cronista Miguel Esteves Cardoso, 25 anos depois, continuava a defender a sua demolição); outros, numa analogia tauromáquica, referiram-se às torres envidraçadas como um par de bandarilhas espetadas no dorso da cidade – nada que desencorajasse a adesão entusiástica da maioria dos alfacinhas ao novo espaço da capital. A euforia consumista dava os primeiros passos.
Taveira, que diz ter representado nas três torres de escritórios e habitação (depois seria construída uma quarta, a torre satélite) dois cavaleiros a escoltar uma dama, não esperava tamanha controvérsia. “Foi uma surpresa total”, disse em 1994 numa entrevista a Manuel Graça Dias para a RTP. Ainda assim, o seu propósito fora suscitar o debate. “Tanto as pessoas comuns como pessoas com uma certa responsabilidade no Estado – e até uma certa intelligentsia – descobriram que não eram daltónicas. Vínhamos de um período de excessivo ascetismo, em que a arquitectura fora despojada de todo o tipo de ornamento, muito influenciada pela resposta às classes mais baixas”, acrescentou então, numa referência aos bairros sociais, em que era preciso construir depressa e barato.
Taveira revolucionou por completo esse cenário: usou e abusou da cor, empregando cores fortes; incluiu elementos puramente decorativos, com algumas referências clássicas, como as colunas e frontões; e ainda introduziu uma nota lúdica e de humor que contrastava com a seriedade da arquitectura modernista.
Ao mesmo tempo, a obra (para a qual Taveira, até chegar à solução definitiva, fez 22 projectos diferentes) possuía uma escala e uma linguagem nunca vistos em território nacional. O autor do projecto inspirara-se, provavelmente, no que vira nos Estados Unidos, onde em 1977 e 78 concluiu uma pós-graduação em urbanismo e planeamento pelo MIT (Massachussets Institute of Techology).
Com as Amoreiras – e a polémica que a obra acendeu – Taveira conquistou uma notoriedade ímpar na sua classe. Já era um arquitecto respeitado e vencedor do prémio Valmor em 1982, pela urbanização das Olaias, mas a sua obra emblemática tornou-o uma espécie de “starchitect” (arquitecto estrela) avant la lettre, um estatuto que lhe permitia privar com altos responsáveis políticos e movimentar-se com à-vontade nos meios do jet set. Mais tarde, toda essa notoriedade haveria de virar-se contra ele.
Antes das Amoreiras – a “pré-história”
Tomás Taveira nasceu em Lisboa em 1938, “numa casa sem electricidade nem água, que tinha uma pia na cozinha”, disse ao “Público”. O pai era operário e o filho fazia a sua vida “entre a Picheleira e Alcântara”. Fez a tropa em Santarém e ali conheceu o poeta Herberto Helder. Em 1955 ingressou no ateliê de Nuno Teotónio Pereira como “faz-tudo”, mas o seu talento para o desenho não passou despercebido. No final dos anos 50 entrou para a escola de Belas Artes (onde mais tarde viria a ser professor) e licenciou-se em Arquitectura. Em 1965 começou a trabalhar com Conceição e Silva, a quem reconhece como seu mestre. Surge aí a primeira polémica: Taveira diz ser o autor de projectos emblemáticos daquele ateliê como o hotel da Balaia (1966) ou o edifício Castil (1973).
Mas é outra obra de Taveira que ganha protagonismo nesta época. Apesar da sua dimensão reduzida – uns meros 15 metros quadrados –, a loja da Valentim de Carvalho em Cascais torna-se emblemática do seu tempo. O arquitecto fala, a este propósito, da “vibração das cidades”, de “cultura underground”, da “alegria de viver certas ruas” e da “revolução pop”. Para a fachada, Taveira pediu a um pintor, Rolando Sá Nogueira, que se encarregasse da cor e a um poeta, Herberto Helder, que escrevesse um poema propositadamente para integrar o projecto. Nascia assim o primeiro ícone do pós-modernismo.
Recentemente, interrogado sobre o seu maior desgosto na vida, Taveira respondeu que consistia em não ter sido realizador. Após um grave acidente, o arquitecto ficou quase imobilizado durante meses de convalescença e uma das suas poucas distracções eram as idas ao cinema. Segundo o crítico Greoffrey Broadbent, Taveira viu “Eva” de Joseph Loosey 75 vezes e “Senso”, de Luchino Visconti, 40 vezes. “E aprendeu a estruturação do espaço com “Paris-Texas” de Wim Wenders”, continua o crítico.
Mesmo nunca chegando a realizar um filme, Taveira pôde dar azo à sua veia cinematográfica nos anos 90, criando cenários para a televisão (SIC), mas também para espectáculos, como o concerto de Luciano Pavarotti em Faro, em 2000. E incorporou as lições do cinema nos seus projectos: “Se as nossas emoções podem ser tão afectadas pela luz na película, porque não poderão sê-lo pela luz na arquitectura?”, questiona.
Sexo, rabiscos e vídeos
Além de serem um marco na cidade, as Amoreiras levam muito a sério a questão da luz. Para compreendermos até que ponto isso é verdade, temos de recuar até ao início dos anos 90, em que o centro comercial era um espaço de tectos baixos e corredores estreitos iluminados artificialmente. Com as Amoreiras, Taveira mudou as regras do jogo e redefiniu o paradigma do centro comercial. No fundo, tratava-se de um grande espaço público com ruas largas, algumas delas cobertas com uma “abóbada” de vidro, como as galerias comerciais do Norte da Europa.
Apesar das referências internacionais, o “papa do pós-modernismo português” (assim lhe chamou um jornal espanhol), não renegava a cultura lusitana. O edifício sede do BNU, no cruzamento da avenida de Berna com a 5 de Outubro, era uma prova disso: aproveitando 80% de uma estrutura pré-existente, Taveira criou, através de elementos decorativos, a sugestão de uma enorme guitarra portuguesa. Era também uma forma de “brincar” com a arquitectura e de a tornar alegre e apelativa.
Mas esse mesmo ano de 1989 foi também o do escândalo sexual das cassetes pornográficas. Um homem não identificado andou então pelas redacções dos jornais a vender o conteúdo de uma cassete de vídeo onde se via Tomás Taveira a manter relações sexuais com várias mulheres, algumas delas alegadamente figuras da alta sociedade. As imagens acabaram por transpirar para a imprensa e os vídeos proibidos tornaram-se um blockbuster clandestino entre a juventude portuguesa, que organizava sessões em casa durante a ausência dos pais.
O episódio das cassetes provocou tal turbulência, que Cavaco Silva achou seu dever fazer uma declaração ao país
A revista “Semana Ilustrada” foi o primeiro órgão a publicar as fotos da intimidade de Taveira. Em Novembro, foi a vez de a revista espanhola “Interviù” as divulgar. Os 20 mil exemplares destinados ao mercado português, no entanto, acabaram apreendidos pelas autoridades, sobrando apenas alguns números avulsos que circularam entre os curiosos.
O episódio causou tal perturbação que motivou uma mensagem do primeiro-ministro. Numa declaração à TV e à rádio, Cavaco Silva falou numa “campanha preparada e dirigida contra membros do governo português e suas famílias”, uma vez que, segundo a revista, algumas das mulheres apanhadas a cometer adultério eram casadas com altos funcionários.
Para o arquitecto, o escândalo ditou o fim de um período de grande exposição pública, mas também a não concretização de uma série de projectos em curso e ainda pôs um ponto final no casamento com Amarílis Cristina, com quem tinha dois filhos.
Em meados dos anos 90, “por circunstâncias da vida”, Taveira mudou-se para um apartamento nas Olaias. O conjunto habitacional não era apenas uma das suas obras emblemáticas: dali via-se o vale de Chelas, outro marco citadino com a sua assinatura. “Tenho a sensação de estar a viver num local rodeado de coisas feitas por mim, o que é estranhíssimo”, disse então o arquitecto, que declarou noutra ocasião: “Convivo facilmente com as coisas que faço de uma maneira: ignorando-as”.
A urbanização de Chelas (“Malha J”, feita para acolher retornados) esteve no centro de outra polémica de Taveira, desta feita com Pedro Santana Lopes. Sem pedir autorização ao autor, o então autarca de Lisboa mandou pintar os edifícios de branco, subvertendo por completo as ideias de Taveira. “Se Deus existe”, disse o arquitecto em entrevista ao “Correio da Manhã”, “ele sabe muito de cor. De tal maneira que nos deu olhos com características tais que nos permitem ler o mundo sem ser a preto e branco. Por que carga d’água é que devemos fazer edifícios sem cor? Onde é que isso está escrito?”
O projecto sofreria outra alteração: em 2009, oito blocos seriam demolidos para regenerar o bairro e acabar finalmente com o chamado “corredor da morte”, uma passagem estreita entre edifícios usada para tráfico de droga e palco frequente de homicídios.
Depois da tempestade
No seu estilo controverso e inconformista, desde cedo que Taveira fez inimigos entre os seus colegas professores. Contestava, por exemplo, os “aiatolas” que não abandonavam a sua postura dogmática. Em 2003, o conflito redundou na sua expulsão da Faculdade de Arquitectura, após um processo disciplinar.
O arquitecto estava então mergulhado a ultimar os estádios do Euro 2004: são da sua autoria o de Aveiro, o de Leiria e o Alvalade XXI. Cada um, disse o arquitecto ao “CM”, demorou cerca de “três semanas a ser projectado”. Revestido a azulejos com pequenos leões estampados, o estádio de Alvalade tornou-se inevitavelmente alvo de críticas e até de anedotas – e não só por parte dos rivais da 2.ª Circular.
Outro estádio que deu muito que falar, mas por razões opostas, foi o da Luz. Taveira assinou um contrato com o Benfica e fez o projecto, mas o clube acabou por tomar outra opção. Embora a sua obra construída na cidade seja impressionante, foi justamente esse o destino de muitos projectos de Taveira: ficar na gaveta. Fez propostas para a reabilitação do Martim Moniz, para a Expo, para o CCB, para a extensão do Parlamento e para a sede de uma companhia de seguros, na Fontes Pereira de Melo, só para mencionar alguns.
Na entrevista ao “Correio da Manhã”, Taveira desvendou um pouco do seu quotidiano e disse nunca sentir a angústia da folha em branco: “Estou sempre a inventar. Levanto-me entre as três e as quatro da manhã e até às sete horas, altura em que o motorista me vem buscar, estudo, leio, converso ao telefone com outros arquitectos e, quando surge um projecto, aplico uma ideia que já tenho em mente. […] A minha folha está sempre cheia”.