“Uma casa é uma relação íntima, pessoal, onde se encontram as raízes.” Disse Manoel de Oliveira, a propósito daquele que ficou como o seu último filme, estreado postumamente em 2015, o ano em que o realizador desapareceu: Visita ou Memórias e Confissões. “A meu pedido, a Agustina [Bessa-Luís] fez um texto, muito bonito, a que chamou Visita. E eu acrescentei-lhe algumas reflexões sobre a casa e sobre a minha vida”. A esse filme, estreado em Cannes, que sete anos antes o havia distinguido com uma Palma de Ouro honorífica, regressa, como só podia, Manoel de Oliveira – A Casa, uma das duas exposições temporárias com que foi ontem, por fim, inaugurada, em Serralves, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira.
Uma casa que, além de casa para o nome maior do cinema português, acolhendo em exposição permanente um percurso quer pelos seus filmes como pelo seu acervo, formalmente depositado em Serralves há dez anos, não teria como não ser casa também do cinema – produzida ao longo de oito décadas, a obra de Manoel de Oliveira conta também por si a história do cinema. Desde Douro, Faina Fluvial, essa curta documental de 1931, a este último filme, em exibição no auditório da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, ao longo dos próximos dias, a par de Non ou A Vã Glória de Mandar (1990).
Detamo-nos por ora em Visita ou Memórias e Confissões. O filme que Oliveira preparou em vida, aos 73 anos – na verdade, quando estavam dois terços do que ficaria como a sua obra por realizar ainda. Era o ano de 1981. O ano da estreia de Francisca, uma das suas várias adaptações de Agustina, que a Cahiers du Cinéma premiou no seu top dos 10 filmes do ano. O ano que abriria a porta para os seus anos mais produtivos, que, ainda antes que terminasse o século, estavam por essa altura ainda por vir O Sapato de Cetim (1985), O Meu Caso (1986), Os Canibais (1988), Non ou A Vã Glória de Mandar (1990), A Divina Comédia (1991), O Dia do Desespero (1992), Vale Abraão (1993), A Caixa (1994).
Era o ano de Francisca mas também o ano em que Manoel de Oliveira era forçado a deixar a Vilarinha, como ficou conhecida a casa projetada para si pelo arquiteto José Porto, em 1940, e a partir da qual refletia sobre o seu percurso, sobre a sua vida, mas também a sua obra, ignorando que mal se tinha começado a construir ainda. Um filme que o professor, crítico e ensaísta António Preto, que ao longo dos últimos anos – inicialmente ainda com Manoel de Oliveira – veio desenhando o projeto museológico da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, resume ao i como “simultaneamente testamentário e profético”.
Nesse filme ao qual, por vontade do realizador, assistiríamos 34 anos depois, Manoel de Oliveira dialogava já com o que do seu cinema estava ainda por vir. Entre, como o título indica, as suas memórias e confissões, fala sobre cinema – e sobre a casa. “Eu sou Manoel de Oliveira, realizador de filmes cinematográficos. Geralmente é aqui, sentado a esta mesa, que escrevo as planificações dos meus filmes”, dizia. “A casa tem um certo mistério. O meu espírito habitou nela cerca de 40 anos. Viu criar e crecer duas gerações. Agora está um pouco decadente. Amareleceu e enrugou como as folhas das árvores no outono.”
Mas não só nesse filme se centrará Manoel de Oliveira – A Casa, exposição que vem explorar a importância do espaço no seu cinema, através das múltiplas casas pelas quais se foi desdobrando a sua obra. Aquelas que “dão para a rua”, como em Aniki Bóbó (1942) e A Caixa (1994); as que “enclausuram segredos”, como em O Convento (1995); a “casa-teatro” de O Passado e o Presente (1972) ou a “casa-prisão” de Benilde ou a Virgem Mãe (1975). Ainda as casas rivais de Amor de Perdição (1978); a casa-ilha de Party (1996); a casa-túmulo de O Dia do Desespero (1992) ou, por fim, “as casas arruinadas com vista para os solares vinhateiros do Douro” de Vale Abraão (1993).
Para tal, pretexto mais oportuno não haveria do que esta inauguração da Casa do Cinema Manoel de Oliveira. O culminar de um projeto antigo, que esteve para ser acolhido por um outro imóvel, projetado por Souto de Moura, na Foz do Porto, que acabou em 2014 alienado em hasta pública pela Câmara do Porto por 1,58 milhões de euros, num dia que Ana Pinho, presidente do conselho de administração da Fundação de Serralves, assinala como “um dos mais importantes” da história da instituição.
Localizada na extremidade nascente do parque de Serralves, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira foi projetada por Álvaro Siza Vieira na ampliação da antiga garagem do Conde De Vizela. Um nome que não era de todo indiferente ao cineasta que, um ano antes da sua morte, terá mostrado, num jantar com o arquiteto, vontade de um dia realizar um documentário sobre a sua obra. Na Casa do Cinema Siza Vieira não se fica apenas pela assinatura do projeto. A partir de setembro, o arquiteto recebe uma carta branca da instituição para a programação de um ciclo de cinema em torno da temática da representação da “casa” na história do cinema.
Lembra António Preto que, ainda em vida, Manoel de Oliveira não só conheceu como “participou ativamente naquilo que gostaria que a casa fosse”.
O resultado está aí: uma casa a contar com dois espaços expositivos, um centro de investigação, uma sala de projeção de filmes e um centro educativo. Para lá das duas exposições temporárias com que foi ontem inaugurada a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (Manoel de Oliveira – A Casa e Manoel de Oliveira – O Acervo), o edifício acolhe uma exposição permanente a percorrer, através dos seus filmes e de um arquivo que inclui argumentos, fotografias de cena, textos, desenhos preparatórios, adereços, cartazes, correspondências, a obra do homem que ao longo de oito décadas se tornou um nome incontornável na história do cinema.