Ser mãe ou pai é, por norma, um dos momentos mais felizes da vida de um casal. Mas nos últimos tempos, estar grávida em Portugal pode ser motivo de stress. O caos nas maternidades tem levado futuros pais à loucura e, como já aconteceu, pode correr mal.
Agora, pelo menos para Lisboa, há uma medida nova. No sentido de organizar a resposta às grávidas, o atendimento passará a ser referenciado – por telefone, encaminhamento do médico ou por urgência pré-hospitalar – e haverá uma campainha à entrada dos serviços hospitalares para quem chegue à urgência sem avaliação, avançou o Expresso. Isto para os hospitais da região de Lisboa.
A verdade é que a área da saúde materna e infantil em Portugal enfrenta alguns desafios significativos, apesar dos avanços ao longo dos anos. O país tem uma das taxas de mortalidade materna e infantil mais baixas do mundo, resultado de um bom sistema de saúde pública e acompanhamento pré-natal gratuito. No entanto, a ONU revelou, no ano passado, que a taxa de mortalidade aumentou 10,5%. Muitas maternidades e serviços de obstetrícia enfrentam uma elevada procura e, em algumas regiões, o fecho de unidades levou à concentração de partos em poucos hospitais. Tal aumentou a pressão sobre os profissionais de saúde e afetou a qualidade dos cuidados prestados. Além disso, as grávidas que não têm médico de família ou vivem em regiões com menor acesso a cuidados de saúde primários enfrentam dificuldades para obter acompanhamento regular durante a gravidez e isto é especialmente preocupante para grávidas com condições de risco.
Importa referir que a violência obstétrica tem sido um tema cada vez mais discutido em Portugal, com relatos de mulheres a partilharem experiências de tratamento inadequado durante o parto. A violência obstétrica refere-se a práticas abusivas, desrespeitosas ou desumanizadas durante o cuidado pré-natal, parto ou pós-parto, que incluem intervenções médicas sem o devido consentimento, pressão e falta de empatia e falta de apoio emocional.
“Durante o meu parto, senti-me completamente ignorada. Quando entrei no hospital, tinha um plano de parto, mas ninguém quis saber. Fui logo informada de que teria de fazer uma episiotomia, sem me darem opções ou explicarem os riscos”, começa por contar Mariana, nome fictício, que teve o primeiro filho num hospital do distrito de Lisboa. “Queria tentar um parto natural e ativo, mas fui obrigada a deitar-me numa maca o tempo todo. Quando tentei levantar-me, disseram-me que estava a complicar o processo e gritaram comigo. Senti-me desrespeitada, como se o meu corpo e as minhas decisões não importassem”, lamenta. “Depois do parto, fiquei com cicatrizes físicas e emocionais que levei meses a superar. Ninguém deveria ser tratada assim num dos momentos mais importantes da sua vida”.
Quem compreende Mariana é Rita, nome fictício, que teve o segundo filho numa instituição de saúde algarvia. “Passei por uma cesariana de emergência e sei que era necessária para salvar o meu bebé, mas o que mais me marcou foi a falta de empatia e comunicação da equipa médica. Fizeram os procedimentos sem me explicarem o que estava a acontecer”, conta a jovem mãe. “Durante a cirurgia, falaram entre si como se eu nem estivesse ali. Não senti que fosse parte do processo e isso aumentou a minha ansiedade e o meu medo também. Depois, o médico disse-me que eu nunca conseguiria ter um parto natural e, mesmo que eu quisesse discutir alternativas para o futuro, fui desencorajada”, frisa, visivelmente frustrada e desiludida. “A falta de apoio emocional e de respeito pelas minhas vontades deixou-me uma sensação profunda de vulnerabilidade e impotência. Esta experiência transformou o meu parto num momento traumático em vez de uma celebração do nascimento do meu filho”, conclui.
Estes relatos ilustram diferentes formas de violência obstétrica, desde a falta de consentimento informado até à insensibilidade durante o processo de parto. Ambos revelam o impacto profundo que o desrespeito e a falta de comunicação podem ter nas mulheres em momentos tão vulneráveis. No entanto, por vezes, as equipas médicas também têm queixas a fazer. José, interno de formação específica em Ginecologia/Obstetrícia, frisa que há grávidas que estão a simular sintomas para conseguirem acompanhamento médico nos hospitais. Esta prática, segundo o relato do profissional de saúde, está relacionada com a dificuldade de acesso a cuidados de saúde primários, como a falta de médico de família ou de acesso a exames essenciais durante a gravidez. O médico sente-se “frustrado e preocupado” com a sobrecarga do sistema hospitalar, que se torna ainda mais pressionado “quando as grávidas recorrem às urgências sem necessidade médica real”. Contudo, também demonstra empatia para com as mulheres que se encontram numa posição vulnerável e que recorrem a esse tipo de ações por sentirem que é a única maneira de garantir um acompanhamento adequado da gravidez.
Embora compreenda o receio das grávidas, salienta que esta simulação de sintomas coloca pressão adicional sobre os profissionais de saúde, já sobrecarregados com as urgências reais. Além disso, esta situação “reflete um problema sistémico de acesso desigual aos cuidados de saúde, que necessita de uma solução abrangente para melhorar o acompanhamento das grávidas, especialmente no contexto dos cuidados primários, evitando que essas mulheres sintam que recorrer às urgências é a única forma de garantir a sua saúde e a do bebé”. Assim, o médico apela “a melhores políticas públicas e ao maior acesso a médicos de família e exames essenciais, para aliviar a pressão sobre os hospitais e assegurar um acompanhamento mais eficaz e humano às grávidas”.
Crise agrava-se nos períodos festivos
Tentámos perceber junto da Ordem dos Enfermeiros se a pior fase da crise nas maternidades já passou. “A crise no acesso à Saúde Materna e Obstétrica é, de certa forma, permanente e, se repararmos, agrava-se sempre nos períodos de férias de verão, na Páscoa, Carnaval, Natal e Ano Novo”, começa por dizer o bastonário Luís Filipe Barreira, acrescentando que, neste momento, “ultrapassado o período de férias de verão, podemos dizer que a situação melhorou em relação aos dois meses anteriores”.
Luís Filipe Barreira recorda ainda que, para o período de inverno, o Ministério da Saúde “determinou uma reorganização das férias dos profissionais de saúde, de forma a tentar mitigar falhas no atendimento. No entanto, esta medida, sendo adequada, não é suficiente”.
Questionado sobre o que é possível fazer daqui para a frente, o bastonário da Ordem dos Enfermeiros defende ser “fundamental, antes de mais, reconhecer a autonomia das intervenções dos Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (EEESMO)”. E acrescenta: “Apesar da diretiva comunitária que define o âmbito da sua prática profissional estar transporta para o ordenamento jurídico português, não se encontra regulamentada, impedindo estes profissionais de exercerem plenamente as suas funções, ao contrário do que acontece noutros países”.
A reconfiguração do trabalho destes profissionais “permitiria prestar assistência autónoma a grávidas e partos de baixo risco, tanto em ambiente hospitalar como nos cuidados de saúde primários”, adianta. “Assim, verificar-se-ia, de imediato, uma maior disponibilidade dos profissionais médicos para se ocuparem de casos mais complexos, assegurava cuidados especializados para um maior número de mulheres e promovia o respeito pelo processo fisiológico do parto, que é a opção mais saudável”.
Luís Filipe Barreira sublinha ainda “que a maioria das gravidezes e partos não são situações de doença e que os EEESMO possuem a formação e competências necessárias para acompanhar estes casos de forma autónoma e segura”. Diversos estudos “demonstram os benefícios desta abordagem, nomeadamente o aumento da probabilidade de parto vaginal espontâneo, a redução de intervenções como cesarianas e episiotomias, e uma maior satisfação das mulheres com a sua experiência de parto. E, a curto prazo, garantia, igualmente, uma efetiva melhoria no acesso aos cuidados”.
O bastonário nota que o Governo já apontou este caminho no Plano de Emergência para a Saúde e foi criada uma comissão para apresentar uma proposta de reorganização das urgências de obstetrícia. “Mas é necessário ultrapassar possíveis obstáculos corporativos e focar no interesse público e no bem-estar das mulheres e famílias portuguesas”, sendo fundamental “um diálogo aberto e construtivo entre a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Médicos e o Governo”, com o objetivo de “encontrar uma solução célere e consensual para esta questão urgente”.