Os náufragos do Wager. Ratos e homens

Os náufragos do Wager. Ratos e homens


Integrado numa esquadra encarregada de uma missão secreta, o Wager naufragou em 1742 na Patagónia. Em vez de combaterem os espanhóis, os seus homens viram-se numa luta pela sobrevivência. A história deste naufrágio é brilhantemente reconsitutída por David Grann, com abundância de pormenores.


“Abaixo dos 40 graus de latitude não há lei. Abaixo dos 50 não há Deus”, rezava um velho adágio muito popular entre os marinheiros. Naqueles confins do Hemisfério Sul, o mar era tão revolto, as ondas tão imponentes e os ventos tão furiosos que a navegação só se fazia com risco da própria vida. O Cabo Horn, na extremidade Sul do continente americano, onde o Pacífico e o Atlântico se encontram e colidem, tem um clima de uma aspereza proverbial e tornou-se um cemitério de navios. Não era por acaso que Rudyard Kipling, o autor do Livro da Selva e de Kim, se referia às suas intempéries como “o ódio cego do Horn”.

Era precisamente para aí que em março de 1742 uma esquadra inglesa composta por oito navios – o Centurion, o Gloucester, o Severn, o Pearl, o Wager, o Tryal e duas embarcações de provisões, o Anna e o Industry –, com um total de mais de dois mil homens a bordo, se dirigia, com a missão secreta de capturar um galeão espanhol carregado de riquezas. Espanha e Inglaterra disputavam então a supremacia global e cada golpe infligido ao adversário constituía uma saborosa vitória.

Na madrugada de 14 de maio, um jovem aspirante da marinha que seguia a bordo do Wager, chamado John Byron, sentiu o navio “a vibrar na escuridão”, descreve David Grann em Os náufragos do Wager – Uma história de motim e assassínio (ed. Quetzal). “Byron espreitou para a tempestade; estava agora tão densa – ‘pavorosa demais para ser descrita’, segundo as palavras dele – que ele já não conseguia sequer distinguir a proa do navio. Interrogou-se se o Wager teria sido atacado de surpresa por alguma onda gigantesca, mas a pancada tinha vindo de baixo do casco. Tratava-se, compreendeu, de uma rocha submersa”. O navio embatera nas rochas e restava-lhe agora ser desfeito pelas vagas. “Muitos dos homens prepararam-se para morrer. Alguns deixaram-se cair de joelhos, recitando orações no meio dos borrifos das ondas”, continua Grann. Outros ficaram simplesmente apáticos perante tamanha adversidade. Mas o navio continuou a navegar, até se deter novamente, desta feita em definitivo. “Os dois mastros restantes começaram a cair e foram cortados pelos homens antes de virarem o barco completamente. O gurupés rachou, as janelas rebentaram, as cavilhas de madeira saltaram, as pranchas estilhaçaram-se, os camarotes colapsaram e os conveses aluíram. A água inundou as partes inferiores do navio, serpenteando de câmara em câmara, enchendo nichos e vãos. As ratazanas correram lá para cima. Os homens que estavam demasiado doentes para sair das camas de rede afogaram-se antes que alguém os conseguisse salvar”.

De cerca de 250 homens que tinham partido de Inglaterra sobreviviam 145. Estavam esfomeados, macilentos, muitos deles doentes, e enregelados até aos ossos.

Da sobrevivência à anarquia 

Um dos problemas do Wager teria sido o excesso de carga. Mas quando abandonaram o navio os homens só conseguiram levar um quilo de farinha, armas de fogo, utensílios de cozinha, uma bússola e mapas, uma caixa de medicamentos e uns poucos livros, entre os quais uma Bíblia.

Mas em breve uma arriscada incursão no ventre no navio permitiria resgatar uma quantidade considerável de víveres:dez pipas de farinha, uma de ervilhas, barris com carne de porco e de vaca salgada, ferramentas de carpintaria e pródigas reservas de bebidas alcoólicas – vários barris de brandy e de vinho. A comida era essencial pois, como vieram a verificar, na ilha não havia caça – nem sequer ratos – e não crescia praticamente nada que se pudesse comer. Quanto ao álcool, se por um lado sempre podia servir de tónico e emprestar algum conforto a uma existência desconsolada, por outro lado facilmente podia tornar-se motivo de desordem.

Como é habitual nestes casos, a adversidade e a escassez começaram a trazer à superfície o instinto de sobrevivência e o pior da natureza humana. Os roubos à tenda das provisões tornaram-se frequentes, com os transgressores a empanturrarem-se e a embriagarem-se alegremente, comprometendo as perspetivas do grupo.

Quando Byron encontrou um cão ao qual se afeiçoou – deixado para trás por nativos que ali tinham feito uma visita fugaz –, outros marinheiros obrigaram-no a entregar-lhes o animal. Rapidamente o abateram, esfolaram e assaram. Byron não recusou comer também a sua parte. Não era ainda o pior: mais adiante, haveriam de registar-se casos de canibalismo.

Um dos náufragos notou “que a tripulação do Wager se estava a afundar num ‘estado de anarquia’”, escreve Grann. “O naufrágio tinha feito tábua rasa das antigas hierarquias: cada homem recebera agora as mesmas cartas desgraçadas e miseráveis”.

Porém, enquanto a reputação do capitão, o escocês David Cheap, se deteriorava rapidamente, havia um homem que parecia reunir cada vez mais apoios à sua volta, um artilheiro chamado Bulkeley.

Na manhã de 9 de outubro, Bulkeley e os seus homens dirigiram-se à tenda do capitão, acordaram-no e amarraram-lhe as mãos atrás das costas. Uma espécie de golpe de Estado, que transformou o anterior líder num mero prisioneiro.

Por essa altura, dos 250 homens que tinham partido de Inglaterra a bordo do Wager, restavam 91.

Para repor a ordem, o artilheiro escreveu um conjunto de regras a serem escrupulosamente respeitadas. Duas delas diziam que qualquer um que fosse culpado de roubo de comida ou de ameaçar o próximo seria “deixado na costa mais próxima e aí abandonado”. 

De certa forma foi o que aconteceu ao capitão Cheap, quando Bulkeley e respetivos seguidores zarparam a bordo de uma chalupa que tinha dado à costa intacta. A sua ideia seria provavelmente que Cheap – e mais uns quantos homens que ficaram na ilha – acabariam por ficar ali a apodrecer, podendo os amotinados impor a sua versão dos factos.

O elogio dos índios americanos 

Aparentemente Os náufragos do Wager e Assassinos da Lua das Flores, ambos assinados por David Grann, contam histórias muito diferentes. Mas há um ponto em comum:a presença dos índios nativos da América. Assassinos da Lua das Flores, recentemente adaptado ao cinema por Martin Scorsese, tem no centro da intriga os Osage, a tribo que nos anos 1920 se tornou riquíssima pelo mero acaso de ter sido desterrada para uma terra onde o petróleo abundava – acabando muitos dos seus membros por tornar-se vítimas dessa mesma riqueza.

Por sua vez, em Os náufragos do Wager, dá-se uma reviravolta inesperada quando Cheap, Byron e uma dezena de outros homens que tinham ficado abandonados na ilha se encontram com “um pequeno grupo de nativos da Patagónia”, da tribo chono.

Ajudados pelos chono, quatro deles conseguiram, com grande sacrifício, chegar à Ilha de Chiloé, onde acabaram por ser detidos pelos espanhóis e levados para Santiago. Por fim, quando a guerra entre as duas potências amainou, foram libertados e rumaram a Inglaterra. John Byron, que embarcara com 16 anos, tinha então 22. Regressado a Inglaterra, casou-se e teve dois filhos e sete filhas. Apesar de ser perseguido pelas tempestades, chegou a comodoro, vice-almirante e governador da Terra Nova (Canadá). Viria a escrever um relato das suas aventuras, The narrative of the Honourable John Byron containing an account of the great distresses suffered by himself and his companions on the coast of Patagonia, from the year 1740, till their arrival in England, 1746 (A Narrativa do Honorável John Byron contendo o relato das grandes angústias sofridas por ele e pelos seus companheiros na costa da Patagónia, desde o ano de 1740, até à sua chegada a Inglaterra, em 1746), uma obra publicada em 1769 que iria influenciar decisivamente o seu neto, o poeta romântico Lord Byron.