50 anos do hip-hop: entre a aclamação e a crise de meia-idade

50 anos do hip-hop: entre a aclamação e a crise de meia-idade


Em Agosto de 1973, um DJ que dava pelo nome de Kool Herc combinou duas faixas numa festa no Bronx e deu origem a algo novo. 50 anos depois, o hip-hop arrisca-se a cair na pura ostentação.


Nos últimos 50 anos, os elementos cruciais de uma crónica que foi sabendo devolver de forma impetuosa e corrosiva os ecos de uma narrativa central, revirando-a a partir das margens da sociedade de forma a poder dar conta das ansiedades e dos dilemas, mas também das aspirações e das fantasias desses jovens negros excluídos, assumiu, através do hip-hop, uma influência nuclear no campo das expressões artísticas mais autênticas, que o que lhe permitiu fazer furos na caixa e ter uma compreensão mais complexa das tensões sociopolíticas do nosso tempo, ao mesmo tempo que descompunha a etiqueta cultural, e impunha uma outra ideia do que significa ser ousado. Isto através de uma expressão que abarca um sem número de manifestações, sempre muito físicas, sempre numa relação de suspeita e confronto, e que constrói a sua perspectiva por meio da recriação melódica e recomposição dos códigos culturais, impondo uma crítica consciente sobre a exaustiva decadência moral do nosso tempo. No fundo, o hip-hop foi provando ser uma receita esplendorosa de subversão, num género destemido e marcado por todo o tipo de excessos, um regime enfático e aventuroso no meio de uma sociedade que propende para o conformismo e a aceitação acrítica. Meio século depois, a urgência desta forma de arte não se esvaiu, e continua a deixar claro o quanto ela se mostra relevante e a necessidade deste regime de genial parasitismo que se estendeu dos bairros depredados do Bronx, em Nova Iorque, a toda a parte, sinalizando também como só resiste até aos nossos dias uma comunidade dos explorados. São 50 anos que foram assinalados através de um sem número de eventos efusivos que tanto demonstram as posições conquistadas por este movimento como esse efeito de transição da crença para um mero efeito estético, essa atitude de irónico distanciamento, própria do capitalismo pós-moderno, na linha daquilo que um crítico da cultura como Mark Fisher havia já sinalizado. Assim, num momento em que é celebrado este marco de uma expressão cultural que assumiu uma influência transversal, o hip-hop enfrenta ao mesmo tempo o maior desafio à sua capacidade de continuar a evoluir e a desafiar as convenções, numa altura em que a própria dimensão lucrativa procura desmontar os seus códigos, para os metabolizar e absorver, reinstalando-os numa base inofensiva. Se as últimas décadas fazem da hip-hop a crónica de um movimento que se caracteriza pela desfaçatez, a sua destreza no aproveitamento de todo o tipo de influências, a sua elasticidade e inventividade definida pela capacidade de se inspirar na desordem e no caos, de se expor ao ridículo, de levantar um testemunho a partir da desolação, e provar que a verdadeira coragem é uma resiliência das almas que atravessaram o inferno, nos últimos tempos o risco é o de esta arte que, na sua essência, revestiu sempre uma dinâmica de protesto, decair na arrogância e na pura ostentação, transformando-se num mero ruído de fundo, já incapaz de causar agitação e dar novos rumos para que a inteligência possa desfiar as ideias feitas e os preconceitos. No fundo, o perigo dessa inteligência e humor devastadores cederem à luxúria consumista esteve sempre lá, mas há sinais de que o hip-hop possa estar a perder a sua capacidade de regeneração e inovação, e sobretudo a sua vertente ameaçadora e o elemento essencial de perigo que lhe é congénito.

 

Já lá iremos, mas antes convém recordar que este 50º aniversário remonta a uma festa que teve lugar no Bronx, em agosto de 1973, em que um DJ que dava pelo nome de Kool Herc se debruçou sobre dois gira-discos e combinou duas faixas para produzir um encavalgamento rítmico, o que não era propriamente inédito e outros tinham já feito experiências do mesmo género, mas naquela noite esta audácia foi registada intimamente como algo de sísmico pelas pessoas que dançavam e sentiram o impacto daquele registo sonoro e que não mais se calaram. O Big Bang, o tal acontecimento mítico, foi uma espécie de gota de água que fez derramar o copo, e que sinalizou como o hip-hop tem desde o momento de incepção esse elemento dionisíaco em si, pois foi nessas festas que foi sendo concebido um regime espontâneo de inovação, sendo o intuito principal o de levantar o ânimo e transmitir essa forma de gozo irradiante. E se começarmos a traçar a género do hip-hop tendo esta noção em mente, percebe-se também de que forma esta forma de arte se distingue das origens do blues, que nasce nas plantações e como um exuberante idioma dos escravos. Também o jazz, dependendo do momento que se define para o seu nascimento, sendo possível cair numa teia nebulosa entre a história e a mitologia, foi uma criação dos filhos dessa forma de ira, que transmitiam ainda a dor dos pais, que tinham sido escravos, e o desejo de libertação e esplendor daqueles que eram os primeiros a sentir-se donos do seu destino. Daí a vertente inescapável do elemento de improvisação. E se os tipos que lançaram as sementes do rock 'n' roll vinham com os seus bolsos descosidos de partes do centro e do sul dos EUA, vendo depois esse género ser apropriado pela angústia adolescente dos brancos, o hip-hop nasce de uma infusão que se inicia precisamente na altura em que essa grande odisseia migratória dos negros termina, e a partir daí passa a ser esta expressão que viaja e vai evoluindo e ganhando experiência com as diferentes estirpes que origina. Mas os primórdios localizam-se já a norte, e são definidos pela mistura urbana nos bairros negligenciados de uma cidade que se tornara uma selva moderna. Como apontam os aficionados, e todos eles são mais do que admiradores, sentindo-se parte desta expressão, o hip-hop deve a sua força pulsante a essa combinação de experiências e pela mistura entre comunidades negras e porto-riquenhas atiradas, em conjunto, para as margens da sociedade.

 

Depois de terem sido os DJ’s a levar ao rubro os recintos de festa nesses laboratórios sonoros, os primeiros rappers foram os mestres de cerimónia que ajudavam a exaltar os ânimos lançando sobre a multidão frases de ordem, procurando lançar-se sobre a garupa da música e tentando capturar o espírito ou propor um rumo através de rimas memoráveis. Mais tarde viriam as batidas e em breve a festa iria assaltar as ondas de rádio, surgindo os primeiros traficantes das cassetes de mistura vendidas a partir dos porta-bagagens ou à margem das actuações nos palcos disponíveis. Mas o elemento decisivo sempre foi o facto de este ser um género que foi sempre elevando a parada e arrojando através do engenho de pessoas que se sabiam destinadas à subjugação, e daí ser uma forma de arte que regista a crónica dessas vidas que o mais certo era serem apagadas, pelo que a urgência que lhe é tão característica vem com esse sinal de revolta de quem faz os possíveis para não cair na invisibilidade, assinalando as tensões sociais e as formas de degradação que sinalizam todos esses regimes que escapam à narrativa do poder. Naturalmente, antes de um efeito de contágio e sedução, este género só teve um impacto tão grande porque começou por ser uma expressão que se libertava da mordaça, e tinha uma capacidade de agressão estupenda, espicaçando e agravando o registo de preconceitos que sempre recaiu sobre aqueles em nome de quem falava. Eram as roupas que eram excessivamente garridas ou largas, os gestos que eram grosseiros e ameaçadores, a dança que envolvia acrobacias que pareciam um aquecimento antes de uma luta, eram os corpos demasiado musculados, a própria música era demasiado ruidosa e ecoava incessantemente os tambores de guerra. Tudo estava mal no hip-hop, e nunca lhe foi facilitado nenhum dos seus avanços, sendo que para uma forma de arte nunca cumpria os requisitos, ou porque era demasiado caótica ou demasiado fácil, faltando-lhe um suporte teórico e sobretudo um modo de adaptação à regularidade das tendências que animam as estações do mercado. Muita coisa mudou desde então, e, 50 anos mais tarde, não só o barulho que registava o ritmo e a energia daquela gandaia, que muito cedo tinha de fazer pela vida nos bairros sociais do Bronx e que tinha nas suas formas de expressão artística simultaneamente um modo de iniciação a uma vida de dureza e humilhação e também um ânimo de revolta, definiu também a própria textura do comércio transnacional, influenciando aspectos bem mais vastos não só na arte, como na política e na vida quotidiana em todo o mundo.

 

Assim, esta expressão cujo regime de fermentação produz sempre níveis inesperados de uma reviravolta a partir dessas experiências que, de outro modo, são negadas e ocultadas, provou a sua força omnívora a partir de tensões concorrentes e espalhando a sua mancha pelo mapa como um vírus que força o despertar da consciência nas comunidades mais fragilizadas, com esses pólos como Houston e Atlanta, Miami, Nova Orleães e Memphis, em estados tão distintos como os da Virgínia ou a Califórnia, a permitirem ao organismo do hip-hop uma capacidade de se alastrar e tecer essa rede fluída de influências, levando-o até hipóteses exuberantes e tresloucadas, revestindo-se de aspectos divertidos, hilariantes, maliciosos, alimentando-se tanto do coração das treva, como de territórios oníricos e instáveis. Daí lhe advém os seus poderes, da combinação da sua exposição e fragilidade, do elemento de paranoia e agressão, mas também da experiência agregadora do afrocentrismo e de um balanço retemperador minimalista. É uma música que não vira costas a nada, explora o passado mas perde de vista o presente, e sabe que o futuro é sempre um campo de batalha. O hip-hop é dos miúdos, é menos uma tradição que se vai transmitindo de forma solene e petrificada do que um modo de conhecer e confrontar a realidade. O sofrimento dá-lhe a sua espessura, mas o encanto está nessa desaustinada luta contra a repetição.

 

E a sua arrogância e força deve-se precisamente ao facto de as suas manifestações nascentes estarem sempre a ser postas em causa, sendo que ao longo das últimas décadas, ao contrário da celebração do jazz, do blues, do R.&B. e do rock ‘n’ roll, tudo o que o hip-hop introduz não deixa de ser contestado antes de ser admitido, como se fosse uma arte que se define precisamente por esse valor de atrito e resistência, como se houvesse sempre um elemento de injúria às expectativas, sendo isso precisamente o que prova que um novo registo é relevante e consegue ainda causar sobressalto. É uma música que mesmo quando cede aos tresvarios da ostentação, o faz por estar imbuída do trauma da penúria, da negligência social, do facto de tantos dos seus artistas mais celebrados terem um passado ligado ao consumo ou ao tráfico de drogas, sem esquecer a perpetuação dos estigmas herdados dos seus antepassados. Se é um género que traz em si um elemento de desilusão depois do abandono do messianismo do movimento da luta pelos direitos civis, revolta-se contra essas formas de apropriação e exploração da cultura negra, deplorando a forma como essas populações suburbanas continuam a esquivar-se à devastação e às divisões que uma economia brutalmente assimétrica gera, levando à Casa Branca crápulas como Nixon, que travou a discriminação no acesso à habituação, seguido de Reagan com a sua política de cortes nos apoios sociais, condenando os esforços de integração a nível dos bairros sociais, o que permitiu que aqueles bairros se degradassem e fossem depois zonas de proliferação das formas de dependência química patrocinadas pelo Estado e os seus traficantes de desespero. Houve até quem lembrasse que o combate às drogas, que permitiu criar uma população de escravos maioritariamente negra nas prisões norte-americanas, impedindo-a de exercer os seus direitos, celebrou discretamente um marco decisivo este ano, uma vez que se o hip-hop fez 50 anos, a D.E.A. (órgão federal de segurança do Departamento de Justiça dos EUA encarregado da repressão e controle de narcóticos) soprou o mesmo número de velas.

 

Contudo, numa altura em que se multiplicaram as festas de aniversário e os eventos em que o hip-hop parecia já estar disposto a colher os louros e quando os seus patriarcas já parecem ter metido os papéis para cobrar a reforma, se o Spotify anunciava que este género está constantemente entre os três mais ouvidos nesta plataforma de streaming que chega a todo o lado, e controla as preferências musicais em todo o mundo, se adiantou que nos últimos três anos, pelo menos metade dos 50 artistas se podem considerar nomes ligados a esta cultura, e se em 2018 este domínio foi incontestado, tendo representado 24% das vendas de discos nos EUA, com Eminem a ser o cabeça de cartaz no Coachella, Drake a liderar as tabelas ao longo de meses e Kendrick Lamar a conquistar o Pulitzer com o álbum “DAMN”, desde então esse efeito de galvanização tem vindo a perder gás.

 

Como assinalou Jason England num dos poucos artigos que ousou alinhar os sinais de uma crise de meia-idade que este género estaria a enfrentar, pela primeira vez em três décadas, nenhum single de hip-hop atingiu o primeiro lugar este ano. As vendas de discos também estão em queda, e os festivais têm-se mostrado relutantes em contratar rappers como cabeças de cartaz desde 2021, depois de oito pessoas terem perdido a vida esmagadas no Astroworld Festival em Houston, num incidente do qual resultariam outras duas mortes pelos ferimentos sustidos depois de a multidão ter entrado em frenesi, supostamente depois de o rapper Travis Scott que lançou o evento ter acicatado os ânimos.

No entender deste crítico que foi das raras vozes que destoou do geral tom de adesão cerimoniosa, aos 50 o hip-hop não apenas enfrenta uma crise de meia-idade, mas “aceitou um cargo corporativo, comprou o Ferrari, deixou a família e dedicou-se ao engate nas aplicações de encontros. Triunfou junto de novas audiências, e se ainda vai aos clubes e discotecas, está longe de ser o cabrão mais estiloso na sala. E o pior é que também cedeu ao lamentável cliché de se tornar conservador à medida que envelhecia”. England reconhece que, em parte, há um elemento de inevitabilidade neste percurso. “Como proclamou Logan Roy, o patriarca da série Sucession (HBO), no fim, ‘o dinheiro triunfa’.” E mesmo se a morte do hip-hop foi sendo anunciada de cada vez que este soprava mais dez décadas, há sinais de que desta vez aqueles que afirmam que as festas de aniversário se parecem muito com exéquias fúnebres começam a reunir argumentos cada vez mais eloquentes, isto numa altura em que esta forma de arte tem muitos dos seus grandes nomes a dirigirem campanhas de relações públicas e marketing no sentido de vender todo o tipo de porcarias à juventude. Seja este um momento em que certos mecanismos de hipocrisia e esquemas de lucro têm conseguido dar a impressão de que esta forma de arte está a ver dissipar-se a sua energia confrontativa, seja já um encadeamento de factores que encorajam uma primeira autópsia de uma cultura local em tempos tão vibrante, o certo é que há motivos para que se reconheça que hoje a linha que assinala as posição em guerra passa pelo próprio hip-hop, e para se manter relevante este não pode apenas limitar-se a crescer, mas tem de travar uma guerra no sentido de expurgar certos efeitos que degradam a sua mensagem, de tal modo que em muitos aspectos o hip-hop se tornou de facto uma pura linguagem de aspirações e propaganda consumista.

“O método de assimilação da nossa sociedade hiper-capitalista passa por aplanar, padronizar e remodelar tudo o que seja contracultura de forma a que esta sirva os seus interesses”, regista England numa crítica que não anda longe da leitura feita por Fisher em “Realismo Capitalista”. “Pode ser o Martin Luther King, o Pat Tillman ou o Che Guevara (cujo rosto já passou das t-shirts para as jóias dos rappers), uma vez que a profundidade e a exactidão importam menos do que a estética vendável; o espírito real de qualquer movimento importa menos do que o facto de o podermos adaptar para satisfazer (e, em alguns casos, fabricar) um sentimento de nostalgia. É claro que a nostalgia é a história desprovida de moral. É precisamente esse o seu atractivo. Neste caso, recompensa uma fetichização da cultura negra sem o ónus de a apreciar ou mesmo compreender. E isto faz-me pensar em tudo o que li sobre a história do jazz, uma arte construída sobre o talento, a perseverança, o sangue e o fôlego de órfãos, de sábios desapossados, privados de direitos – tocando para congregações de igrejas improvisadas, ou em clubes que depois esses mesmos artistas não podiam frequentar, tendo muitos deles definhado e morrido na penúria, devido aos abusos da vida: do racismo, do assédio, da pobreza, da toxicodependência, do alcoolismo. Mas quem consultar hoje os programas académicos que ensinam jazz em todo o país atualmente, quem for ler os críticos, fica com a sensação de que tudo isso foi convertido numa mitologia sem grumos, cativante e enternecedora. Os americanos, de um modo geral, querem a negritude sem os negros. Vem-me à mente a canção dos Public Enemy intitulada "The Anti-Nigger Machine". E quando essa máquina acelera, só me resta desejar: boa noite, Irene. E sei que o hip-hop há-de lá chegar, porque é inevitável.”