Incontinência verbal devia dar cadeia


Se na fotografia constassem oito géneros indefinidos, com cabelos às cores, saiotes de tule, barbas rarefeitas, calções de ciclista combinados com tops de lantejoulas numa cor berrante, unhas de gel pontiagudas em mãos peludas e pochetes a tiracolo, e a legenda fosse a mesma, “caía o Carmo e a Trindade”.


Publicou no Twitter e horas depois retirou a publicação. O mal estava feito. A fotografia já andava nas bocas do mundo e havia sido partilhada vezes sem conta. Os comentários da publicação eram mordazes, cínicos e brejeiros. Destilavam uma acidez própria de quem o faz por diversão, sem qualquer pejo ou civismo, num ambiente digital que protege a exposição do comentador oportunista e precipitado. 

A fotografia era daquelas para guardar no álbum de uma vida (e continuará a ser!): ambiente de festa, um grupo de miúdos bem vestidos a posar para o fotógrafo, com o presidente da Câmara ao centro e, ao fundo, a referência a um clube de rugby, o organizador do evento. Já referi que os miúdos tinham boa pinta, não já? Quis o acaso, ou as tendências atuais da moda, que todos eles estivessem a usar calças creme, com camisa azul clara ou branca e quase todos de blaser azul-escuro, tal como o dress code destes eventos “obriga”. Tudo “comme il faut”, sem nada a apontar no que respeita à indumentária. Talvez um pouco monocromáticos e sem muita criatividade, mas, de resto, estavam sóbrios e com porte digno. Afinal, tinham acabado de vencer a Super Taça ao Agronomia e deixavam transparecer essa responsabilidade de vencedores exemplares na sua atitude e aparência.

O autor do tweet, jornalista e com muita experiência nas manchetes e parangonas, não gostou da fotografia, e muito menos de quem constava nela. Politiquices à parte, porque não pode haver desculpas para momentos execráveis e de mal-dizer gratuito, como aqui foi o caso, e vai de postar a fotografia com uma legenda que só pode ser diagnosticada como um episódio de diarreia verbal ou de incontinência oral. Os oito miúdos e o próprio Carlos Moedas tiveram direito à distinção, atribuída por este senhor, de melhor foto LGBT do ano. Ora, como todos sabem e têm obrigação de saber depois das campanhas publicitárias patrocinadas pela Fox Life nos mupis (mobiliário urbano para informação) da cidade de Lisboa, LGBT é a sigla de lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros, o que levanta muitas questões quando o autor de tal legenda opta por esta referência para titular a fotografia que descrevi. Primeira questão: saberá o senhor o significado de tal sigla? A resposta, depois de ter ido “googlar” o autor, é obviamente afirmativa, não sendo provável que tenha havido incúria devido ao desconhecimento da terminologia utilizada. A segunda questão: será que o autor tem conhecimentos acrescidos para além do que é visível na fotografia e pareceu-lhe bem proceder à identificação destes géneros através de imagem visual? Além destas perguntas, muitas outras se poderiam elencar e haveria resposta para todas elas.

Ultrapassada a incredulidade de tal ato perpetrado por um homem adulto e com conhecimento de causa do impacto que uma fotografia com aquela legenda poderia causar nos intervenientes, que na sua maioria são menores, exceção feita ao número um da Câmara Municipal de Lisboa, importa salientar que aqueles oito rapazes têm famílias que repudiaram este comportamento abusivo e odioso. Sim, porque se na fotografia constassem oito géneros indefinidos, com cabelos às cores, saiotes de tule, barbas rarefeitas, calções de ciclista combinados com tops de lantejoulas numa cor berrante, unhas de gel pontiagudas em mãos peludas e pochetes a tiracolo, e a legenda fosse a mesma, “caía o Carmo e a Trindade” e todas as associações defensoras do tema viriam a praça pública pedir a condenação e o cancelamento do autor nas redes sociais deste mundo e arredores. 

Mas não. Houve um burburinho nos comentários verrinosos, alimentado pelos que não tardaram em comentar as vestes dos modelos fotográficos, como se fossem críticos de moda certificados, sentados na primeira fila do Moda Lisboa. Só que na passerelle estavam menores, alheios a esta dinâmica doentia de certos adultos e que, de um momento para o outro, viram o seu rosto a viajar pelas plataformas digitais, à velocidade da luz, com um rótulo que não lhes assenta.

O despautério não ficou por aqui, porque o tweet foi eliminado e substituído por um tweet “fofinho” (palavra mais uma vez escolhida pelo autor, que tão bem domina o funcionamento da língua portuguesa) com o vídeo de cachorrinhos amorosos que despertam nos espetadores aquela sensação de bem-estar e de doçura. Este tweet não seria assinalado, se não tivesse surgido no seguimento da eliminação do anterior. A contrariedade do autor ao sentir-se compelido a retirar a publicação que havia feito, não fosse sofrer consequências sociais e, quem sabe, penais, perante o alcance que o seu tweet estava a ter, é evidente no tom irónico e sagaz que utilizou para dar encadeamento ao que estava em curso, mesmo depois de ser eliminado. 

Não é necessário descrever como estes pais se sentiram ao tomarem conhecimento desta situação, que envolvia descaradamente os seus filhos, e da impotência que os invadiu perante a impunidade de quem tudo pode e tudo quer. Não há registo de nenhuma nota a desculpabilizar um momento obscuro e descabido como o que aqui foi descrito, porque, na verdade, ficou a impressão de que houve uma intenção, uma má intenção, no meio de tudo isto. Ao autor de tal publicação ficará a consciência de avaliar se foi correto para com quem trouxe para a ribalta, aos comentadores de serviço pede-se contenção e que, antes de escreverem o que a língua afiada ainda não verbalizou, reflitam se teriam coragem de o dizer “cara a cara” e aos quatro ventos. 

As palavras sempre tiveram o seu significado e há palavras que depois de ditas são muito difíceis de retirar; levam o seu tempo a cair no esquecimento. Nas redes sociais, ainda que muitos pensem que não, esta gravidade assume uma proporção maior, pelo simples facto de que, muitas vezes, quando os posts, os tweets ou as fotografias são eliminadas, há sempre alguém que fez um print screen e “congelou” o que foi escrito para mais tarde recordar. O grande mal das redes sociais é que não deixam cair nada no esquecimento, somando registos desenfreados à medida que vão sendo publicados. 

Se não existissem plataformas como o Facebook ou o Twitter, será que este senhor ousaria dizer “alto e em bom som”, para quem quisesse ouvir, o que acabou por escrever? 

Escreve quinzenalmente

Incontinência verbal devia dar cadeia


Se na fotografia constassem oito géneros indefinidos, com cabelos às cores, saiotes de tule, barbas rarefeitas, calções de ciclista combinados com tops de lantejoulas numa cor berrante, unhas de gel pontiagudas em mãos peludas e pochetes a tiracolo, e a legenda fosse a mesma, “caía o Carmo e a Trindade”.


Publicou no Twitter e horas depois retirou a publicação. O mal estava feito. A fotografia já andava nas bocas do mundo e havia sido partilhada vezes sem conta. Os comentários da publicação eram mordazes, cínicos e brejeiros. Destilavam uma acidez própria de quem o faz por diversão, sem qualquer pejo ou civismo, num ambiente digital que protege a exposição do comentador oportunista e precipitado. 

A fotografia era daquelas para guardar no álbum de uma vida (e continuará a ser!): ambiente de festa, um grupo de miúdos bem vestidos a posar para o fotógrafo, com o presidente da Câmara ao centro e, ao fundo, a referência a um clube de rugby, o organizador do evento. Já referi que os miúdos tinham boa pinta, não já? Quis o acaso, ou as tendências atuais da moda, que todos eles estivessem a usar calças creme, com camisa azul clara ou branca e quase todos de blaser azul-escuro, tal como o dress code destes eventos “obriga”. Tudo “comme il faut”, sem nada a apontar no que respeita à indumentária. Talvez um pouco monocromáticos e sem muita criatividade, mas, de resto, estavam sóbrios e com porte digno. Afinal, tinham acabado de vencer a Super Taça ao Agronomia e deixavam transparecer essa responsabilidade de vencedores exemplares na sua atitude e aparência.

O autor do tweet, jornalista e com muita experiência nas manchetes e parangonas, não gostou da fotografia, e muito menos de quem constava nela. Politiquices à parte, porque não pode haver desculpas para momentos execráveis e de mal-dizer gratuito, como aqui foi o caso, e vai de postar a fotografia com uma legenda que só pode ser diagnosticada como um episódio de diarreia verbal ou de incontinência oral. Os oito miúdos e o próprio Carlos Moedas tiveram direito à distinção, atribuída por este senhor, de melhor foto LGBT do ano. Ora, como todos sabem e têm obrigação de saber depois das campanhas publicitárias patrocinadas pela Fox Life nos mupis (mobiliário urbano para informação) da cidade de Lisboa, LGBT é a sigla de lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros, o que levanta muitas questões quando o autor de tal legenda opta por esta referência para titular a fotografia que descrevi. Primeira questão: saberá o senhor o significado de tal sigla? A resposta, depois de ter ido “googlar” o autor, é obviamente afirmativa, não sendo provável que tenha havido incúria devido ao desconhecimento da terminologia utilizada. A segunda questão: será que o autor tem conhecimentos acrescidos para além do que é visível na fotografia e pareceu-lhe bem proceder à identificação destes géneros através de imagem visual? Além destas perguntas, muitas outras se poderiam elencar e haveria resposta para todas elas.

Ultrapassada a incredulidade de tal ato perpetrado por um homem adulto e com conhecimento de causa do impacto que uma fotografia com aquela legenda poderia causar nos intervenientes, que na sua maioria são menores, exceção feita ao número um da Câmara Municipal de Lisboa, importa salientar que aqueles oito rapazes têm famílias que repudiaram este comportamento abusivo e odioso. Sim, porque se na fotografia constassem oito géneros indefinidos, com cabelos às cores, saiotes de tule, barbas rarefeitas, calções de ciclista combinados com tops de lantejoulas numa cor berrante, unhas de gel pontiagudas em mãos peludas e pochetes a tiracolo, e a legenda fosse a mesma, “caía o Carmo e a Trindade” e todas as associações defensoras do tema viriam a praça pública pedir a condenação e o cancelamento do autor nas redes sociais deste mundo e arredores. 

Mas não. Houve um burburinho nos comentários verrinosos, alimentado pelos que não tardaram em comentar as vestes dos modelos fotográficos, como se fossem críticos de moda certificados, sentados na primeira fila do Moda Lisboa. Só que na passerelle estavam menores, alheios a esta dinâmica doentia de certos adultos e que, de um momento para o outro, viram o seu rosto a viajar pelas plataformas digitais, à velocidade da luz, com um rótulo que não lhes assenta.

O despautério não ficou por aqui, porque o tweet foi eliminado e substituído por um tweet “fofinho” (palavra mais uma vez escolhida pelo autor, que tão bem domina o funcionamento da língua portuguesa) com o vídeo de cachorrinhos amorosos que despertam nos espetadores aquela sensação de bem-estar e de doçura. Este tweet não seria assinalado, se não tivesse surgido no seguimento da eliminação do anterior. A contrariedade do autor ao sentir-se compelido a retirar a publicação que havia feito, não fosse sofrer consequências sociais e, quem sabe, penais, perante o alcance que o seu tweet estava a ter, é evidente no tom irónico e sagaz que utilizou para dar encadeamento ao que estava em curso, mesmo depois de ser eliminado. 

Não é necessário descrever como estes pais se sentiram ao tomarem conhecimento desta situação, que envolvia descaradamente os seus filhos, e da impotência que os invadiu perante a impunidade de quem tudo pode e tudo quer. Não há registo de nenhuma nota a desculpabilizar um momento obscuro e descabido como o que aqui foi descrito, porque, na verdade, ficou a impressão de que houve uma intenção, uma má intenção, no meio de tudo isto. Ao autor de tal publicação ficará a consciência de avaliar se foi correto para com quem trouxe para a ribalta, aos comentadores de serviço pede-se contenção e que, antes de escreverem o que a língua afiada ainda não verbalizou, reflitam se teriam coragem de o dizer “cara a cara” e aos quatro ventos. 

As palavras sempre tiveram o seu significado e há palavras que depois de ditas são muito difíceis de retirar; levam o seu tempo a cair no esquecimento. Nas redes sociais, ainda que muitos pensem que não, esta gravidade assume uma proporção maior, pelo simples facto de que, muitas vezes, quando os posts, os tweets ou as fotografias são eliminadas, há sempre alguém que fez um print screen e “congelou” o que foi escrito para mais tarde recordar. O grande mal das redes sociais é que não deixam cair nada no esquecimento, somando registos desenfreados à medida que vão sendo publicados. 

Se não existissem plataformas como o Facebook ou o Twitter, será que este senhor ousaria dizer “alto e em bom som”, para quem quisesse ouvir, o que acabou por escrever? 

Escreve quinzenalmente