Há saudades que se sentem ainda antes da despedida. Não têm o sabor a saudades, começam por ser uma inquietação que aumenta, pedaço a pedaço, dominando o nosso corpo, até que o ritmo cardíaco acelera e tudo o que se sente é um aperto no peito. Há quem junte a este aperto no peito, um nó na garganta, como se o primeiro já não custasse tanto.
É o corpo a preparar o coração para o embate da separação, a tentar, por todos os meios, poupar-nos à dor física de um choque traumático, que pode levar o delicado coração, onde se concentram os nossos sentimentos e fragilidades, a uma paragem súbita por não aguentar a dor. A idade ensina-nos tudo sobre a dor, exceto como suportá-la. Sabemos de cor quantas dores existem, mas apenas conhecemos parte delas, aquelas que a vida nos foi oferecendo para que pudéssemos provar as nossas valentias e conhecermos a nossa força.
Há um ato de coragem em querer superar uma dor ou ultrapassar um medo, porque nos leva por um caminho desconhecido, para o qual não há destino certo. Sucumbir à dor ou ao medo é permanecer num estado a que já nos habituámos, que, dentro do marasmo doentio, controlamos, por mais irracional e indesejado que seja aquele modo de estar. A morte quando é lenta parece que custa menos, a dor é menos excruciante e mais silenciosa, assim é o estado da dor que não se abandona.
Não há separações fáceis. Há as que são necessárias para avançar, ainda que à distância dos que amamos. Separar é desunir, dividir um todo que já foi único e que ganha nova forma após este afastamento. Que forma? É a primeira interrogação que a cabeça lança para o remoinho sugador de todas as dúvidas. Não há resposta imediata, só mais lá à frente é que a resposta ganha forma, quando o presente já for um passado longínquo e sem poeira, que nos permita olhar para trás e destrinçar as dúvidas das certezas e o resultado de cada uma delas.
Por todo o lado acontecem separações: pais de filhos, pais de pais, amigos de amigos, colegas de colegas, familiares de outros familiares e pessoas que se separam sem chegarem a ter qualquer estatuto mais substancial para além de meros conhecidos, mas que nem por isso deixam de sofrer com a separação. Não somos só o ADN que carregamos, somos feitos de ligações que estabelecemos, mesmo sem querer ou programar e, por isso, de sentimentos que se estabelecem entre uns e outros.
Não sou daquelas mães corajosas que, desde muito cedo, incentivam os seus filhos a estudarem lá fora. Podia aqui escrever que me defino como patriota e que defendo que “o que é nacional é bom”, mas no final o que acontece é que sou mesmo a clássica mãe-galinha. Tenho dificuldade em apartar-me dos meus rebentos, por mais crescidos que sejam, contudo, estou em tratamento e a terapia que autoprescrevi para esta maleita está a revelar os seus primeiros resultados positivos e uma evolução favorável dos sintomas anteriormente descritos.
Superei-me e, todos os dias, me surpreendo com a força e coragem que mantive no dia da partida do mais velho para um destino que fica a doze horas de carro do aeroporto mais próximo. Lembro-me, com um sorriso meio idiota, do dia em que lhe foi revelado o destino da missão, para a qual se andava a preparar havia mais de seis meses. Da boca dele pareceu-me ouvir que iria para a Costa Rica; fiquei radiante.
Haveria destino mais paradisíaco e atrativo do que aquelas praias e aquela cultura tão rica? Não percebeu o meu entusiasmo (muito alimentado pelo fato de ser um país relativamente seguro e com facilidade de conexão) e voltou a repetir com maior enfâse: Costa do Marfim. O coração caiu-me no chão e o cérebro, como que a substituir o coração e assegurar a sobrevivência da pobre alma desta mãe, logo disparou preocupações incalculáveis derivadas do desconhecimento profundo deste país africano, situado um pouco acima da Linha do Equador.
Já se passaram quase quatro semanas desde o embarque no aeroporto da Portela, muitos dias sem o ouvir ou saber dele, a não ser por umas mensagens telegráficas num grupo criado para as famílias destes missionários escritas por outro alguém que não o meu, e ainda hoje não estou bem certa como tudo isto foi avançando sem a minha resistência até ao dia da partida.
Quando queremos ser corajosos por amor, há sempre um bem maior que sobressai no meio de todas as dificuldades e angústias. Neste caminho que se iniciou no período pandémico, houve um pensamento que germinou com maior significado em mim e que, frequentemente, me sussurrava que não somos só o que pensamos ou o que dizemos sentir, mas sim o que fazemos. As duas primeiras partes sem esta última não são suficientes para nos sentirmos plenos e para compreendermos com maior clarividência os mistérios que se vão sucedendo, enquanto que por cá andarmos.
Em boa hora bati à porta certa e os Missionários da Consolata acolheram o meu filho na sua grande família e ensinaram aquilo de que eu só poderia falar, porque é preciso viver para aprender o sentido de missão. Esta missão está quase a ser cumprida, se bem que quem por lá anda sabe que o caderno de encargos não tem fim. A minha missão, enquanto mãe, está longe de estar cumprida, mas depois deste regresso, anseio por ter o meu coração mais preenchido, e que este tempo em que partilhei o meu filho com outras famílias tenha sido de esperança e de amor, para o próprio e para quem esteve na sua companhia.