Buenos Aires afligia-se, toda a Argentina sofria. Centenas de pessoas estavam reunidas em frente à residência Perón e a noite ia passando enquanto o boletim médico, publicado de hora a hora, dava conta de que a saúde de Eva Perón, Evita, Santa Evita para alguns, Senhora dos Descamisados, piorava a olhos vistos.
Um forte cordão policial estendeu-se em redor dos muros e dos portões para lá dos quais Evita agonizava. Que seria de Argentina sem fardas? Ficara nua ao léu? O estado da mulher que mexera com o coração dos argentinos, desde que fora cantora de rádio e de cabarés até subir ao altar com Juan Domingo, ia piorando sem remissão. De nada serviam agora as palavras de Paloma San Basílio, que Andrew Lloyd Weber eternizaria num musical incontrolável: “No llores por mi Argentina/Mi alma está contigo/Mi vida entera te la dedico/Mas no te alejes,te necessito”. Pois, palavras leva-as o vento. Toda a Argentina chorava.
Eram 21h29. Todos os programas radiofónicos foram interrompidos. Haveria um comunicado oficial sobre o assunto. Quem estava em casa rodeou os aparelhos, quem estava na rua rodeou aqueles dois ou três que traziam consigo radiozinhos de pilha. Mais gente ainda veio de todo o lado para se acumular perante a residência presidencial. Gente e mais gente e mais gente. Toda a Argentina estava ali? Polícias a cavalo, insensíveis à dor do povo, tentavam debalde dispersar as pessoas. À bruta, como gostam de fazer certas bestas que cavalgam bestas.
Mas o povo respondia com a teimosia e com o silêncio. A morte rondava-lhes os cérebros confusos. A morte, sempre a maldita morte. Evita estava deitada no seu leito de morte, ainda mais branca do que sempre fora, a sua tez quase transparente deixando entreves finas veias azuis, o seu cabelo amarelo perdera o brilho. O brilho das raízes que a amarravam à terra. “Tenia que aceptar debi cambiar/Y dejar de vivir en lo gris/Siempre tras la ventana/Sin lugar bajo el sol/Busqué ser libre/Pero jamas dejaré de soñar/Y solo podré conseguir/La fe que querrais compartir”.
Obedecendo À vida María Eva Duarte de Perón, que nascera na aldeia de Los Toldos em 1919, continua a obedecer às vozes da vida que lhe mandavam obedecer. Obedecer sempre! Foi de obediência e do controlo da obediência que se construiu a ditadura do seu marido, Juan Domingo. A Argentina aprendera a obedecer e a não fazer perguntas, a não ser as das mães da Praça de Maio, que exigiam resposta para a pergunta: “Onde estão os nossos filhos?” Mortos! Continuarão mortos, tal como foram assassinados na sua luta ineficaz pela Democracia.
O Governo mandou poupar na energia. As últimas noites de Evita serão as mais tristes de Buenos Aires, candeeiros apagados a cada esquina, o lúgubre movimento dos homens e das mulheres vestidos de preto. As igrejas enchiam-se e mantinham-se cheias porque a última solução era rezar.
O último boletim médico da madrugada dizia que a senhora Perón conseguira, finalmente, estar em descanso e que os esculápios consideraram as suas reacções mais positivas. Lutava. Lutava sempre! Lutava como no tempo em que era pobre e a mãe, Juana Ibargurem, fazia limpezas em casa dos senhores ricos. Amante de Juan Duarte, do qual engravidou de Eva, um cavalheiro dono de terras que mantinha sua vida bem vista em Chivilcoy, onde passeava os seis filhos legímitos ao lado da mulher legítima no seu pomposo automóvel legítimo conduzido por um legítimo chofer.
De Juana teve cinco: Juancito, Elisa, Blanca, Erminda e Eva. Quando morreu, reconheceu-os a todos menos a Eva. Condenou-a ao opróbrio de não ter pai. Nunca ter pai. Eva, que sonhava com o cinema, que desejava ser cantora, que se apaixonou por um militar canalha e sem princípios, viria a ser, de todos os filhos de Juan Duarte, a única que perpetuou o seu nome. Mesmo que ele não a tenha autorizado a usá-lo. Foi – quem sabe? –, uma forma de vingança.
Enquanto o povo enchia as ruas, as avenidas e as praças de Buenos Aires, rezando baixinho, como que para si mesmo, pela saúde de Evita, esta lutava bravamente contra a morte: só entregaria a alma ao criador do dia 26 de Julho. Mas o luto já se entranhara nas gentes vestidas de escuro, nas lágrimas que corriam pelas faces, nas preces que pedia a Deus-todo-poderoso que a deixassem subir aos céus – lugar que ele própria tinha dúvida de merecer, tantas foram as suas falhas e os seus pecados.
A religião redime. Buenos Aires era uma igreja a céu aberto, mesmo que este não tivesse deixado entrar Evita. “Jamas poderes ambicioné/Mentiras dijeron de mi/Mi lugar suyo es, por vosotros luché/Yo solo quiero/Sentiros muy cerca/Poder intentar/Abrir mi ventana y saber/Que nunca me vais a olvidar”. A janela e Evita Perón pode nunca mais se ter voltado a abrir, como ela queria, mas a Argentina nunca a esqueceu”.