‘Aquilo que se passa na ciclovia da Avenida de Berna é criminoso’

‘Aquilo que se passa na ciclovia da Avenida de Berna é criminoso’


Acredita que o Executivo de Carlos Moedas será destituído daqui a um ano, por uma nova geringonça e defende que há desonestidade intelectual dos aiatolas das bicicletas.


É um dos nomes mais respeitados no que à Mobilidade e Urbanismo diz respeito, tendo assumido o lugar de vereador da mobilidade e transportes na Câmara de Lisboa até 2013. Professor universitário, e com vários cargos nacionais e internacionais no currículo, Fernando Nunes da Silva é um homem que não se esconde por detrás das palavras. Recebeu-nos no Instituo Superior Técnico, onde ainda tem um gabinete e onde colabora em duas disciplinas, apesar de estar reformado. Como o entrevistado e o entrevistador gostam de falar, a entrevista ficou muito maior do que é normal numa edição em papel. Dessa forma, e para que não se perca o essencial da longa conversa, optámos por dividi-la em duas partes. Aqui fica a primeira.

O que acha desta medida da cidade ficar cercada por 41 radares?

Tenho pena que este Executivo não tenha tido a oportunidade, o tempo ou a vontade de rever a herança envenenada que lhe foi deixada, porque para quem está minimamente atento, quer à sinalização dos limites de velocidade quer à localização dos radares, percebe que em alguns sítios aquilo tem muito pouco a ver com segurança rodoviária técnico e nada a ver com boas práticas e a aplicação de normas técnicas internacionais, mas tem a ver com fundamentalismos de alguns técnicos, provavelmente, e com a expectativa de obter uma nova fonte de receitas para a Câmara Municipal que, quando assume a Carris e toda uma série de mecanismos de apoio à mobilidade ativa, tem que procurar novos financiamentos. E, de facto, as receitas do estacionamento não eram suficientes para garantir tudo isso e para garantir também aquilo que ficou por concluir, nomeadamente o estacionamento de residentes na maior parte de bairros onde não há, quer na vida pública quer nos próprios edifícios, espaço para estacionar. E uma das missões da CML era exatamente resolver esses problemas com alguma prioridade, e que ficou completamente abandonado desde 2013 até esta parte.

O Orçamento da Câmara prevê 5,5 milhões. Não é por aí que vão resolver alguma coisa. Se o ano passado sem estes radares funcionarem em pleno faturaram 5,3 milhões…

O faturar mais ou menos vai depender fundamentalmente de uma coisa que no meu tempo na câmara não se conseguiu resolver. Ficou quase resolvido, mas faltou resolver uma questão política administrativa entre polícias e autoridades de segurança rodoviária que é o seguinte: a eficácia da multa mede-se pelo reduzido tempo entre a ocorrência da infração e a pessoa receber a comunicação dessa falta. Se receber um ano depois ou meses depois já nem se lembra onde aquilo ocorreu. O efeito dissuasor de uma multa ou de uma contraordenação é exatamente o sancionamento de uma infração em tempo real, o que seria o desejável. Os outros países fizeram isso há muito tempo quase. Aquilo que fazem é que no dia seguinte ou dois dias depois a pessoa está a receber no correio e tem um prazo para pagar, de 48h ou algo parecido.  Quando passa meses ou prescreve, perde-se completamente a eficácia do sancionamento da infração.

Na altura em que esteve na câmara defendeu a introdução de radares falsos.

Por uma razão muito simples. Um dos problemas que tínhamos detetado na altura era que as pessoas sabiam exatamente onde é que estava o radar, abrandavam para passar o radar e logo a seguir aceleravam para recuperar o tempo perdido. O que é importante é assegurar uma certa continuidade no controlo de velocidade durante os troços em que isso se justifica. Como não havia dinheiro para comprar radares, aquilo que eu dizia era para colocarmos uns radares efetivos e outros falsos. A pessoa nunca saberia o que funcionava e o que não funcionava, garantindo-se desse modo uma certa continuidade na velocidade praticada em vez do harmónio que era aquilo que acontecia sempre que os automobilistas viam um radar. E dava-se muito o exemplo ali da Avenida das Descobertas e da Segunda Circular que quando se via o radar aquela gente abrandava toda, provocando o efeito harmónio, e depois a seguir acelerava por ali fora. Esse era o objetivo. Agora, vamos ter que separar aqui duas ou três coisas que são bastante distintas.

Isso é o que existe nas autoestradas.

Sim, em muitos sítios. Porque não há hipótese de ter radares em todo o lado. O que se vai fazendo é ir mudando a localização do radar. Qual é o objetivo que se pretende atingir? Um controlo efetivo de velocidade por razões que têm a ver fundamentalmente com segurança. Nem se pode falar que sejam questões ambientais. Podia haver uma questão ambiental em termos de ruído ou emissões poluentes, mas nem é esse o caso. Na maior parte das situações é fundamentalmente uma questão de segurança. Ora, essas questões de segurança em meio urbano podem ser resolvidas de maneiras muito diferenciadas. Por exemplo, nas zonas residenciais ou zonas centrais, como por exemplo o Chiado, isso resolve-se através de zonas 30, através de zonas de convivência onde o automóvel só pode circular a 20 quilómetros por hora, é baixar de 50 para 20 quilómetros por hora, onde o carro convive com o peão, mas é o peão que tem prioridade. Como se faz isso? Com dispositivos que implicam a redução de velocidade, pavimentos diferentes… Se for, por exemplo, a França, Suíça, Bélgica e muitas cidades em Espanha, nessas zonas mais históricas eles reduziram a faixa de rodagem a 3,5 metros que é para passar o carro do lixo. E quando alguém precisa de parar, param todos. O que é um tipo de pressão para a pessoa não demorar muito tempo e muito menos estacionar. Só para para fazer aquilo que é estritamente necessário. E vai devagar porque é uma zona de convivência. Há dispositivos físicos que têm que ser introduzidos. Nas zonas de 30 há toda a questão relacionada com os estreitamentos das entradas, com as passadeiras sobrelevadas, com as gincanas… Obriga a uma mudança da arquitetura e do desenho do espaço público para introduzir uma nova forma de olhar para as coisas. A segunda forma de controlo de velocidade que se pode e deve aplicar nas outras vias urbanas, recorre aos semáforos. Há mais de 20 ou 30 anos que na Suíça se adotou essa solução, sobretudo à noite. É uma solução absolutamente genial. À partida todos os semáforos estão vermelhos. A prioridade é o peão, tudo verde para o peão e tudo vermelho para os automóveis. Se um condutor se aproximar à velocidade que está definida, o semáforo passa a verde. Psicologicamente isto é fundamental porque a pessoa sabe que, se for depressa, o sinal continua vermelho. E pára. Não é como na Avenida Marginal em que o sinal está verde e se a pessoa exceder a velocidade passa a vermelho. O que acontece? Se um condutor que for a exceder a velocidade for muito rápido, ele passa e os outros que estavam a cumprir é que param.

Foi uma ideia para cortar um abuso generalizado de excesso velocidade…

Foi uma ideia excelente. O impacto que teve foi muito grande. O que estou a dizer é que hoje já se pode fazer melhor. Sobretudo quando há pouco tráfego. Onde há muito tráfego não vale a pena. Mas à noite isso é muito útil porque a pessoa tem a noção que está tudo vermelho e automaticamente reduz a velocidade.

Acha que Carlos Moedas poderia ter colocado isso em prática?

Este Executivo já está há seis na câmara, e tive a oportunidade de alertar para isso o vereador do pelouro por quem tenho bastante estima. Seis meses é tempo suficiente para pelo menos corrigir os limites de velocidade. Aquilo que se passa na Segunda Circular, na zona do Fonte Nova, é absolutamente inadmissível.

Passa a 50.

É. Mas passa a 50 depois de se ter uma saída sinalizada a 60. Isto é, sai da Segunda Circular para uma praça urbana, como é a do Fonte Nova a 60 e quem continua na Segunda Circular tem de circular a 50. Isto cabe na cabeça de alguém? E logo a seguir passa os 80, que é a velocidade limite na maior parte da Segunda Circular. Há alguma lógica disso? É por causa da existência de um ramal de entrada nessa zona? Esse ramal tem via própria de aceleração! Então qual é o problema? Nenhum. Aquilo ali é pura e simplesmente uma caça à multa. Já passei lá duas vezes antes disto estar a funcionar e já assisti a um quase acidente. Porquê? Porque a pessoa vai normalmente a 80 e de repente aparece um sinal a 50 e o condutor trava de repente. E quando trava de repente ia provocando um choque em cadeia. Outra situação é a da Avenida das Descobertas na zona de Caselas. Estamos a brincar. Não há atravessamentos, o único atravessamento da Avenida está semaforizado. Você sai de uma autoestrada e passa para 50 a que propósito, quando não há actividades urbanas de cada lado da rua e só muito mais à frente, junto ao Colégio S. José, é que se justificaria a redução da velocidade para os 50, ou mesmo 40 km/h?

Como a Marechal Gomes da Costa.

Como a Marechal Gomes da Costa, como a Infante D. Henrique na zona do Porto de Lisboa em que não se pode atravessar para a zona portuária. Qual é o problema? Na Avenida Brasília a mesma conversa. Há que distinguir – e era isso que gostaria de frisar – o seguinte: não venham com falsas guerras de alecrim e manjerona sobre os que são a favor do automóvel e contra a segurança e aqueles que primam pela segurança das pessoas. Isso é aldrabice, só serve para guerra de política baixa, não tem nada a ver com aquilo que se está a discutir e aquilo que se está a fazer. A questão é: queremos ou não queremos ter ruas mais seguras nas diferentes situações em que elas são utilizadas? E para ter ruas mais seguras, as formas de as resolver são diversas. Os radares são apenas uma delas e só se aplicam em determinadas situações e é preciso que estejam de acordo com a velocidade que lá está apontada. Porque se houver incoerência entre a velocidade que lá está assinalada e o ambiente urbano em que se está a circular, o radar, para fazer respeitar aquela velocidade inexplicável, só serve para caçar multas.

Que é o caso das nossas autoestradas urbanas, chamemos-lhe assim.

Como é óbvio. E só para retornar ao Executivo do Moedas e no que em seis meses era possível fazer, era pura e simplesmente retirar essa sinalização dos 50 km/h onde não se justifica. Pura e simplesmente tirava.

E deixava os 80.

Exato, deixava o que lá estava anteriormente. Porque não há justificação. E outros casos que estavam a 50 passava para 70, como é o caso em muitas avenidas com separador central e sem atravessamentos de nível ou com semáforos, porque não há justificação de estar lá o 50. Aí justificava-se então o radar e as pessoas compreendiam. Penso que uma medida destas, anunciada por este Executivo mostrava duas coisas: primeiro, que não estava na caça à multa e, segundo, que tinha uma maneira de pensar diferente do Executivo anterior a quem nem sequer passava pela cabeça estas questões. Terceiro, que tinha muito mais competência técnica porque estava a colocar os limites de velocidade de acordo com aquilo que era o ambiente urbano e a hierarquia da rede viária.

E a Câmara tem essa competência para aumentar a velocidade?

Tem, sim. Dentro do meio urbano pode fazê-lo, tendo em conta o tipo de via em causa. Aliás não fazia mais do que ter um único critério em toda a cidade, em vez de ter quase “vias rápidas” com limite de 80 km/h e outras, absolutamente idênticas onde o limite é 50.

Como viu esta medida aprovada pelo Livre, com os votos do BE e do PS, de reduzir cegamente a velocidade em 10, além do fecho da Avenida da Liberdade aos domingos e feriados?

Um disparate completo. É mais uma vez uma situação que não tem nada a ver com os objetivos que se propagam. É pura e simplesmente revelador de duas coisas: em relação ao PS, uma atitude de descredibilização total dos seus vereadores e do que é a política. Não é admissível que vereadores que aprovaram o plano diretor ou que fazem parte da força política dominante que aprovou o Plano diretor, venham agora aprovar medidas contra aquilo que está estipulado no próprio plano diretor. É muito claro, e sei do que falo, porque essa parte teve a ver comigo e colaborei na redação desses artigos do regulamento. Todo o capítulo relacionado com isso, transportes, acessibilidades, passou pelas minhas mãos. Está lá isso definido, estão tipificadas e regulamentadas as condições de circulação, o tipo de ocupação que pode haver e o que não deve haver em termos de estacionamento e paragens de transportes. Atuar deste modo quando se está na oposição, depois de se ter outra posição quando de foi governo, é mais um elemento de descrédito em relação àquilo que são os partidos políticos e a maneira como se faz política. Quando estão no poder fazem uma coisa, quando estão na oposição fazem exatamente o contrário com a mesma cara como se nada fosse. Mas depois a outra questão que me parece extremamente grave, e que tem muito a ver com uma forma que começa a ser comum de fazer política, é as pessoas quererem arranjar uma caixa para os jornais e depois logo se vê como se concretiza. Primeiro decide-se e depois se estuda, logo se vê quais são os resultados, se é ou não é uma solução para atingir aquele tipo de objetivos, etc.

Se essas medidas forem implementadas, até porque são aprovadas…

Foi aprovada outra coisa espantosa que é o estudo. O que é notável é ser o Partido Comunista a revelar o melhor bom senso no meio daquilo tudo. O Partido Comunista, que está afastado da gestão da Câmara Municipal de Lisboa desde o tempo de João Soares, é aquele que dá a mão ao PS que governou nos últimos 14 anos para sair de uma alhada e de uma situação absolutamente ridícula, o que é notável. Só mostra o desnorte que passa neste momento pela oposição da câmara, cujo único objetivo parece ser – toda a gente já percebeu – derrubar a câmara o mais depressa possível. Nuns seis meses não, mas daqui a um ano não tenho dúvida nenhuma que haverá, a propósito de qualquer pretexto, uma coligação para derrubar a câmara e a coligação é muito simples de fazer. É dar um lugar na vereação ao Bloco, como já teve no passado, ao PC e ao Livre. No fundo, fazer uma geringonça na Câmara de Lisboa.

Eles têm essa hipótese de destituir?

Têm. Têm maioria dos vereadores, se a maioria se demitir, a câmara cai. E o Executivo fica sem quórum e cai. Foi o que aconteceu com o Carmona Rodrigues. A câmara caiu por causa da demissão em bloco não só da oposição como de uma parte do PSD.

Disse que no passado pior foi quando o PS ficou com maioria absoluta na câmara sem a ter na assembleia.

De facto, no mandato em que estive tínhamos maioria na câmara, mas não na assembleia. Depois passou a haver maioria nos dois órgãos municipais. Quando foi só havia maioria na câmara foi ótimo. Algumas das minhas propostas foram chumbadas na assembleia municipal, nomeadamente a reformulação do sistema tarifário do estacionamento em Lisboa e a passagem da EMEL a empresa de mobilidade e não apenas empresa de estacionamento.

Mas depois criaram-se os três tarifários.

Exatamente. Isso obrigou-me a negociar com o PSD e com o CDS porque o Bloco e o PC achavam que não tinha que se pagar estacionamento. E, aquilo que saiu, foi melhor que aquilo que eu tinha proposto inicialmente. E, aliás, agradeço isso quer ao Vitor Gonçalves quer ao colega do CDS que teve uma atitude mais clandestina porque era mais difícil assumir o seu contributo, mas, apesar disso, deu apoio do ponto de vista da redação jurídica dos estatutos. Foi extremamente útil. Não estou nada arrependido disso e acho que funcionou bem. Penso que o modelo de governação nas câmaras municipais devia ser repensado para que o Executivo saísse de uma assembleia municipal com o programa aprovado como acontece com o Governo. No fundo, a lista mais votada, tal como para a AR, indica o primeiro-ministro, neste caso indica o presidente da Câmara que tem um prazo para apresentar o seu executivo. É aliás o que se passa nas juntas de freguesia. Não percebo porque é que nas juntas de freguesia o modelo é este e numa câmara municipal o modelo é diferente. Não se consegue perceber. Numa junta de freguesia o que você elege é a assembleia de freguesia, sendo o presidente da junta de freguesia o primeiro da lista mais votada e depois ele tem que fazer o Executivo em função da maioria que consiga obter na assembleia de freguesia. Nas Avenidas Novas havia uma coligação entre a maioria PS com o CDS.

Nunca há hipótese de se deitar isso abaixo? Provocar eleições antecipadas? O próprio Moedas.

Ele próprio não. Só a oposição.

Moedas está nas mãos da oposição.

Exatamente.

O que pensou ao ver o Livre a não apresentar nenhum estudo para a redução da velocidade em menos 10km/h e, segundo me disse, até provoca mais poluição? Como especialista, como vê isto?

Isso era a outra coisa que lhe queria dizer. Infelizmente os partidos políticos hoje em dia deixaram de ter os chamados gabinetes de estudo, deixaram de ter uma relação com a sociedade civil e com as pessoas que trabalham. Lembro-me de ter participado, a seguir ao 25 de Abril, numa coisa que na altura era APU, Aliança Povo Unido, que tinha os cadernos municipais. O PS também tinha. O PSD também tinha. Eram revistas apoiadas por fundações, normalmente alemãs e suecas, para a formação de quadros e tinham cursos e tinham debates, chamavam os técnicos. Fiz sessões no PSD, no PS e no PC. Era conhecido nesta área, convidavam-me e não tinha problema nenhum em explicar como era. E no Bloco por maioria de razão, já que fui um dos fundadores. E separava-se aquilo que eram questões do foro iminentemente técnico daquilo que eram decisões políticas. Não vale a pena estar a dizer que uma faixa de rodagem tem dois metros e depois o camião do lixo ou dos bombeiros tem uma largura maior e para circular à velocidade normal precisa de 3m a 3,5m. Não vale a pena estar a dizer que posso pôr o estacionamento de uma determinada maneira – e tive esse problema em Lisboa – porque depois o carro dos bombeiros que tem as escadas Magirus, para pôr as sapatas de fora para estabilizar, precisa de uma determinada largura que inviabiliza esse estacionamento. Não vale a pena dizer que aquilo não existe ou então eu assumo que se houver um incêndio naquela rua os carros de bombeiros não chegam lá. Uma coisa são parâmetros técnicos, são condições técnicas de funcionamento. Aquilo que a própria experiência mostrou. Uma das coisas que me irrita profundamente em relação a alguns colegas meus – que são grandes defensores e promotores das bicicletas, uma espécie de aiatolas das bicicletas – é omitirem, ainda que o saibam, que uma sociedade passar de uma situação em que o uso da bicicleta quase não existia, como era o caso da sociedade portuguesa até 2017, para a situação em que a bicicleta é um modo de transporte verdadeiramente alternativo, não é exequível. No inquérito à mobilidade feito no país todo, a percentagem de utilizadores de bicicleta nas deslocações por motivo de trabalho ou escola era apenas de 0,5 %. Estamos a falar de 2017. Há cinco anos. Não posso dizer a um político que a mudança da repartição modal e a melhoria da qualidade do ar passa sobretudo pela utilização das bicicletas. É verdade que elas serão importantes para uma mobilidade mais sustentável, mas isso pode demorar de 25 a 30 anos, que foi o que demorou na Holanda, que era um país que tinha a tradição da utilização da bicicleta e que nunca a perdeu. Nós tivemos e perdemo-la. Na Holanda, se for ver as estatísticas do que foi a utilização da bicicleta a seguir ao pós-guerra até chegar ao momento em que ela hoje representa 25% da repartição modal, demoraram 25 a 30 anos. Não posso dizer, como aconteceu no mandato anterior na câmara de Lisboa, que os problemas da mobilidade em Lisboa se resolviam com bicicletas e trotinetes. Isto não é honesto do ponto de vista intelectual. E não é honesto do ponto de vista técnico. O que não quer dizer que eu não deva criar as condições – e nós fizemos isso e colocámos isso como uma das prioridades no nosso mandato, que era dar melhores condições de circulação aos modos ativos, a começar pelos peões, que até atinge mais pessoas, além da criação de ciclovias, claro está. Mas, com uma consciência clara de que isso era um início de um caminho que era preciso ser continuado, mas que não se esperassem milagres nos próximos 5, 10 ou 15 anos. Havia que atuar era onde havia transporte de massas, onde havia transportes coletivos. Aí sim era preciso melhorar, nas estações e paragens, na frequência, na regularidade do serviço, no conforto, na cobertura espacial, na cobertura do horário, etc. Nos custos. Aí é que tinha que se atuar com prioridade. E criar ao mesmo tempo algumas tarraxas em relação ao uso abusivo do automóvel em certas zonas, criando alternativas. Criou-se o bilhete integrado de estacionamento de transporte coletivo que depois foi abandonado. É isto que quero dizer. E penso que há alguma desonestidade, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista técnico, quer mesmo do ponto de vista de alguns meios de comunicação, ao não colocarem as coisas de uma forma absolutamente clara e aberta. É preciso criar estas condições para a utilização da bicicleta como modo de transporte urbano, mas não é para amanhã que ela vai contribuir para uma alteração significativa da repartição modal. Repare o que aconteceu com a Almirante Reis.

Neste momento temos a cidade completamente invadida de trotinetes e bicicletas onde a segurança dos peões e das pessoas mais idosas está posta em causa sem que ninguém diga grande coisa sobre isso. Não sei se há algum estudo…

Há sim. Houve algumas estatísticas de acidentes, quer com bicicletas quer com trotinetes, inclusivamente estudos de velocidades, que revelaram serem estas excessivas. Acho uma graça enorme quererem reduzir a velocidade dos automóveis que têm capacidade de travagem – hoje a tecnologia permite maior rapidez e eficácia na travagem – e depois permitem andar em bicicletas a 25 quilómetros por hora, sem qualquer proteção. E ainda por cima em passeios. O carro pode andar a 30 ou 50 quilómetros por hora, mas tem a sua faixa de rodagem, está separado e tem capacidade de travagem muitíssimo maior. Mas é considerado a “bête noire”. Mas trotinetes a andarem pelo passeio, em contrassentido, a 25 quilómetros por hora, com duas pessoas, sem capacete, isso já não há problema nenhum porque é uma trotinete e está no politicamente correto e na moda. Acho isto espantoso.

Não se pode dizer que é um lobby das bicicletas, é mais o politicamente correto.

É mesmo isso.

Mas os estudos que viu eram preocupantes ou não?

De uma forma muito interessante esses resultados desapareceram dos meios de comunicação. Neste momento não sei. Na altura eram preocupantes.

Há quanto tempo?

Há seis, sete anos. Mas já na altura havia um conjunto de acidentes registado precisamente por isso. Também havia uma justificação para isso. Muitas vezes não havia tantas pistas cicláveis e, portanto, as pessoas utilizavam mais os passeios e, por isso, a probabilidade de acidentes seria maior. Mas acho incrível que não haja uma monitorização desse tipo de situações.

Hoje já se sente quase um criminoso ou um pecador quem anda de carro em vez de andar de bicicleta.

E há uma outra coisa que queria chamar a atenção. Estou particularmente à vontade sobre isto porque foi no meu mandato que as bicicletas saíram dos espaços verdes e das zonas de jardim para passarem para a cidade. Até essa altura elas estavam essencialmente circunscritas a Monsanto e a alguma parte da zona ribeirinha e da zona de Belém, Alcântara, etc. E não havia mais pistas cicláveis. E as outras que tinham aparecido, algumas delas tiveram de ser encerradas porque eram completamente disparatadas. Havia uma numa transversal à Avenida de Roma que terminava num muro. E não ia para lado nenhum. É uma coisa absolutamente espantosa porque as pessoas esqueceram-se que havia uma escada e, portanto, a pista ciclável terminava na escada. Depois tivemos que fazer do outro lado da linha do caminho-de-ferro para resolver o problema. Estou particularmente à vontade com isso. Não só se criaram um conjunto de quilómetros de pistas cicláveis como, sobretudo, se definiu a rede estruturante de ciclovias na cidade de Lisboa como se elaboraram projetos que, entretanto, foram sendo construídos nos mandatos seguintes. Uma coisa é nós apoiarmos uma maior utilização da bicicleta e criar condições para isso, outra coisa é a maneira como isso está a ser feito. Uma forma – nalguns casos – completamente aberrante. Aquilo que se passa na Avenida de Berna é criminoso. Aquilo não tem as mínimas condições de segurança.

Estamos a falar da ciclovia.

Sim, não tem as mínimas condições de segurança. Aliás, um dos técnicos que chamou a atenção para isso e disse que não subscrevia aquela solução, foi-lhe dito que aquilo era só para as eleições e que depois das eleições se ia mudar. O que se fez na Almirante Reis é completamente disparatado, ao introduzir a ciclovia no sentido ascendente, sendo este o que é mais utilizado pelo tráfego e as ambulâncias do hospital de S. José. A ideia de que só é possível criar condições para andar de bicicleta construindo ciclovias ou então pintando aquelas marcar verdes no pavimento, sinalização que não consta do código da estrada – um traço verde depois com um 30 no pavimento – aquilo não existe como sinalização horizontal. Estar lá ou não estar, não tem qualquer tipo de consequências penais, mas as pessoas acham graça àquilo. Não é assim. O plano diretor definiu a rede viária e a rede ciclável, propondo uma chamada grelha de vias estruturantes que são protegidas, de formas diferentes, mas protegidas. Umas integradas no passeio, mas com diferenciação de pavimento, como na Av. da República, outras integradas na faixa de rodagem, mas devidamente separadas… E depois propõe um conjunto de zonas 30 ou um conjunto de zonas de convivência onde não é preciso estar a fazer pistas nenhumas. As pessoas preferem andar à vontade nessas zonas do que noutras zonas quaisquer, do que ter um sitiozinho para andar. Nesses sítios as pessoas andam à vontade na bicicleta porque têm condições para o fazer. E era isso que estava previsto com uma determinada lógica. Não quiseram fazer isso, quiseram fazer quilómetros de qualquer maneira e, nalguns sítios, sem interesse absolutamente nenhum e sem utilização nenhuma. Acho que essas coisas acabam por descredibilizar a própria situação e acabam por criar uma oposição porque depois é aquilo que estava a dizer: às duas por três as pessoas que não sabem andar de bicicleta, que não têm condições para andar de bicicleta, parece que são uns párias na sociedade. Isto numa cidade em que a população idosa é enorme e onde os pais não deixam as crianças irem para a escola a pé. Quer dizer que, acima dos 60 anos e até pelo menos aos 12 anos, a utilização da bicicleta como modo de transporte é praticamente inexistente. E isto é uma percentagem da população muito significativa na cidade de Lisboa. Estar a ter uma política de mobilidade, como teve o anterior vereador da câmara, que é essencialmente baseada em bicicletas e trotinetes é estar a fazer uma segregação social absolutamente inaceitável numa cidade como a nossa.

E de um fanatismo…

Claro. Como normalmente acontece nestas coisas. Quando você, em vez de querer resolver o problema, quer é defender uma causa, e essa causa é uma causa que tem mais a ver com tribos, com setores de sociedade do que com a sociedade no seu conjunto, se você fizer uma causa global, isto é, ‘eu quero assegurar uma acessibilidade a todas as pessoas, aos bens essenciais, num tempo máximo de 15 minutos, isto é uma causa. Então vamos trabalhar nisso e vamos conseguir criar uma base de apoio onde desde a criança até aos idosos todos podem ter acessibilidade aos seus bens essenciais, às suas atividades fundamentais nesse espaço. Como se faz isso? De muitas maneiras diferentes. Não é só andar de bicicleta, não é só andar a pé. Nalguns casos é andar em pequenos autocarros que fazem o serviço de porta a porta. Noutros casos, como já são serviços que estão mais distantes, tem que ser o transporte coletivo em sítio próprio, etc. Vamos trabalhar nisso. Isso é uma causa global. Agora quando a causa é a bicicleta… Estão a marginalizar todos os outros que não podem, não sabem ou não querem usar a bicicleta. Isso é altamente negativo, porque uma sociedade é feita da diversidade e, portanto, se cada vez que eu afunilo as minhas políticas para um único setor é, no meu ponto de vista, por um lado diminuir o apoio à democracia e por outro lado criar campo para os populismos férteis: os Trumps, Bolsonaros, Orbans, as Le Pens… chegaram à frente à conta disso.

Só há populistas de direita ou também há populistas de esquerda?

Há, mas são muito diferentes.

Normalmente quem está associado aos lobbies das bicicletas são normalmente identificados como populistas de esquerda.

Sim, mas quando digo o populismo de direita, neste tipo de populismo, é um populismo que é altamente corrosivo do próprio funcionamento da democracia, mas, sobretudo é altamente conservador. O populismo de esquerda alimenta este tipo de populismo. Porquê? Porque o populismo de esquerda o que quer é pegar em causas que são razoavelmente minoritárias e levá-las a uma visibilidade brutal que parece que aquilo é que é o grande problema do país, da sociedade ou da cidade. O que se compreende porque uma causa minoritária normalmente precisa de uma maior visibilidade para começar a ganhar terreno. Mas ao insistir e ao ficar apenas por isso, o que está a fazer é a criar uma oposição brutal em todas as outras pessoas. É o que leva Depois de ter dado a facada nas costas do Seguro, perder as eleições e continuar a troika via PSD e CDS a governarem o país, era o fim da carreira política do António Costa. Estava completamente queimadodepois muitas pessoas a dizer assim: ‘então agora já não posso andar de carro? Agora sou eu o inimigo público número um?’. Assim, em vez de se estar a caminhar no sentido de progressivamente as pessoas irem mudando os seus hábitos e irem-se aproximando mais de uma mobilidade mais sustentável, o que estamos a fazer é criar campos que se guerreiam e que acabam tipicamente por vir a favorecer as posições mais reacionárias, mais retrógradas, mais anti progresso do que aquilo que as pessoas eventualmente gostariam. A esquerda enquanto não perceber isto, há de perder sempre. E quem está a ganhar, como se tem estado a ver, são os populismos de direita.

Em Portugal quem está no poder há não sei quantos anos é o PS.

Sim, mas o PS não é propriamente o exemplo de uma esquerda moderna no sentido lato do termo. O PS, sobretudo este, desde o tempo do Sócrates. No fundo é uma continuidade de um partido mais neoliberal que começa com Guterres. Vamos ser sérios e separar aquilo que são os aspetos da justiça, das trapalhices, daquilo que é a política. A terceira via começa com Guterres. O compromisso com o centro, quer na revisão constitucional, quer nas privatizações, quer nas PPP’s, começa com o Guterres. É bom que a gente tenha essa noção independentemente de terem sido bem-feitas ou malfeitas ou terem justificação. Não é isso que está aqui em causa. O que estou a dizer é que as opções de fundo do ponto de vista da orientação política e da demarcação do que era a esquerda social democrata ou socialista democrata tradicional, começa com Guterres na sequência do Tony Blair, etc. Como a Margaret Thatcher disse, a maior herança que tinha deixado era o Tony Blair. Ela sabia porquê. A seguir, Sócrates aprofunda isso e Costa não faz mais do que dar-lhe continuidade. Só foi apertado na altura porque perdeu as eleições e para poder ascender a primeiro ministro. Se o não fizesse tinha acabado a sua carreira política em 2015. Depois de ter dado a facada nas costas do Seguro, perder as eleições e continuar a troika via PSD e CDS a governarem o país, era o fim da carreira política do António Costa. Estava completamente queimado.

Mas conseguiu tirar esse coelho da cartola, da geringonça, para se manter vivo.

Exatamente. Mas não foi ele que tirou o coelho da cartola, foi o Jerónimo de Sousa. Na noite de eleições Jerónimo disse que o PS só não era Governo se não quisesse.