Os tambores de guerra ouvem-se, uma vez mais, na Europa. A mobilização é total, arregimenta corpos e espíritos e não deixa espaço a qualquer dúvida. A ponderação, valor propagado por meios possíveis, é, agora, a linha da frente da guerra em curso e todos os nossos democratas, todos os nossos tolerantes e pacifistas uniram a artilharia à retórica e são hoje a guarda avançada, a primeira linha de defesa de uma guerra que coloca em causa, dizem-nos, nada menos que o nosso estilo de vida, os nossos valores. O peso todo, como facilmente se pode ver, não reside no vocábulo “valores”, bastante ambíguo, ou mesmo no “estilo de vida”, mas na pertença arcaica, mítica, que esta forma de colocar as questões impõe: além de qualquer divisão, de qualquer pequena guerra, de qualquer fratura mais ou menos urgente da sociedade, existiria o facto bruto, inegável, da pertença, que mobiliza vida e alma e que não deixa espaço a qualquer forma de questionamento. É a militarização – progressiva, imparável – da vida civil, das palavras, das imagens e dos sons.
“As guerras são processos de purificação e de limpeza, são sementeiras da virtude e fazem despertar os heróis (…) são uma bênção, não apenas pelos ideais que defendem, mas também pela purificação que trazem ao povo que as trava em nome dos mais preciosos bens.”
Um pouco por toda a parte encontramos o gesto comum de procurar constantemente, nos anos anteriores à II Guerra Mundial, uma analogia para os tempos que correm, como se as décadas de vinte e trinta do século passado contivessem a cifra escondida desta época. Mas talvez se possa ir um pouco atrás e notar, como se vê pela citação, que a militarização da linguagem (e não só) começa um pouco antes. A citação, aliás, é de Karl Kraus e de um dos monumentos maiores à estupidez humana que o século XX conheceu: Os Últimos Dias da Humanidade. O que se lê nesta colagem monumental que Kraus produz – nada, no livro, é inventado, tudo foi, a dada altura, proferido por alguém – é a mobilização total das palavras ao serviço do militarismo, uma retórica guerreira que foi fazendo o seu caminho até ao descalabro das trincheiras e à catástrofe, posterior, dos campos de concentração.
Mas para quem gosta de analogias históricas, há um pequeno documento, de 1936, que conviria ler com atenção, porque nele encontramos a mesma retórica militarizada que, nos últimos tempos, tem vindo a fazer o seu caminho e tem construído um dispositivo linguístico, imagético, carregado de heróis, de resistência e de bravura – quando a guerra, na realidade, só produz mortos e miséria.
“O nosso ser-aí histórico experimenta, com premência e clareza crescentes, que o seu futuro se equivale à crua alternativa ou de uma salvação da Europa ou da sua destruição. A possibilidade da salvação requer, no entanto, duas coisas: 1) a conservação dos povos europeus perante o asiático. 2) a superação do desenraizamento e da fragmentação que lhe são próprios”.
Tudo nesta pequena citação merecia uma demorada atenção; o termo “premência”, por exemplo, diz respeito a uma urgência e à impossibilidade de alguém se subtrair à tarefa de se posicionar perante a salvação da Europa. E é interessante notar que não é preciso muito, bem pelo contrário, para que os nossos democratas e os nossos pacifistas concordem com estas palavras proferidas pelo filósofo nazi Martin Heidegger no Kaiser-Wilheim-Institut, em Roma – o que não equivale a dizer que entre uns e outros haja igualdade. O mesmo perigo – o “asiático” -, a mesma forma de colocar a questão – ou a salvação da Europa ou a sua destruição -, a mesma obrigação em ir além da “fragmentação” e do “desenraizamento”, isto é, de todas as diferenças, afinal superficiais, para fazer valer o nosso estilo de vida, os nossos valores.
Com tradução de José Miranda Justo, saiu há pouco tempo um livro que reúne dois pequenos textos que acabam por ressoar com acontecimentos recentes. O primeiro, Nós, Refugiados data de 1943 e é assinado por Hannah Arendt, que conheceu bem o problema dos refugiados – e, em particular, o problema particular dos judeus, que mesmo refugiados continuavam a ser alvos de antissemitismo.
“No mundo inteiro, é a mesma história que se repete uma e outra vez. Na Europa, os nazis confiscaram o que possuíamos; mas no Brasil temos de pagar 30% da nossa riqueza, como o mais leal dos membros do Bund der Auslandsdeutschen. Em Paris, não podíamos sair de casa depois das oito da noite porque éramos judeus; mas em Los Angeles confinam-nos porque somos «estrangeiros vindos do inimigo»”.
A perda dos laços sociais, a pressa com que tantos se tentam integrar, a perda da língua (Elias Canetti, também ele refugiado, contava a dada altura que o alemão lhe era proscrito, mas que ainda não conseguia pensar em inglês), a perda de tudo quanto é familiar, faz do refugiado o extremo limite do humano e o relato de Arendt é um documento importante para percebermos a miséria humana que funciona como negativo da máquina de guerra – e a forma como a pertença, uma pertença mítica, funciona quando todos os laços e todas as qualidades desaparecem.
“Um homem que quer perder o seu eu descobre, de facto, as possibilidades da existência humana, as quais são infinitas, tanto quanto a criação é infinita. Mas a reaquisição de uma nova personalidade é tão difícil – e tão sem esperança – como uma nova criação do mundo. Seja o que for que façamos, seja o que for que finjamos ser, revelamos apenas o nosso desejo insano de nos transformarmos, de deixarmos de ser judeus. Todas as nossas atividades se dirigem no sentido de alcançarmos um objetivo: não queremos ser refugiados, uma vez que não queremos ser judeus.”
O segundo texto, Para lá dos Direitos do Homem, é de Giorgio Agamben e foi publicado 50 anos após o texto de Arendt, em 1993. Não é propriamente um comentário ao primeiro, que funciona como uma fenomenologia do fenómeno do refugiado, mas parte dele para interrogar a pressuposição que existe entre, por um lado, os direitos do homem e, por outro, o fenómeno moderno do Estado-Nação.
Giorgio Agamben, outrora um dos filósofos mais relevantes dos últimos anos, entrou numa deriva conspirativa e vê o seu nome arregimentado por todos aqueles que inscrevem uma lógica paranóica no seio do real, como se este mais não fosse que a face visível de poderes invisíveis. Há quem se apresse a “salvar” Agamben, a garantir-nos que o contributo que deu é demasiado valioso para ser colocado em causa pela “loucura” dos últimos dois anos. Mas, da mesma forma que o seu mestre Heidegger era tão nazi nas páginas de Ser e Tempo como nos delírios antissemitas dos recentes cadernos negros, é difícil não perceber que a lógica conspirativa atuava já nos anos 90, quando publicava o primeiro volume de Homo Sacer, e não é apenas um desvio dos últimos anos. Aliás, seria preciso voltar a olhar, a partir dos últimos escritos de Agamben, para esse campo de que se tornou um dos seus maiores expoentes, a biopolítica, e ver o que é que neste, pelo menos em certas formulações, permite as derivas conspiracionistas do primeiro, o que é que neste, que vê em todo o minúsculo acontecimento a prefiguração dos campos de concentração, é incapacidade de estabelecer distinções.
Em todo o caso, este pequeno texto publicado pela primeira vez no jornal francês Libération coloca em evidência o laço que existe entre os direitos do homem e o Estado-Nação, mostrando que os primeiros só existem, na realidade, pressupondo a existência dos segundos e mostrando, igualmente, que o refugiado é o caso limite que mostra essa pressuposição no exato momento em que a coloca em causa: “É preciso procurar levar a sério esta formulação, que liga de modo indissolúvel os destinos dos direitos do homem e do moderno estado nacional, de tal modo que o declínio deste último implica necessariamente a obsolescência dos primeiros.”
O refugiado, então, permanece uma figura paradoxal: por um lado, é ele, e mais ninguém, que devia ser objeto dos “direitos do homem”, esses direitos inalienáveis que pertencem a todo e qualquer homem pelo mero facto de o ser; mas, por outro, ele demonstra que, sem o Estado-Nação, todo e qualquer direito do homem se torna impossível de aplicar.
“No sistema do Estado-Nação, os chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem encontram-se desprovidos de toda e qualquer tutela no exacto momento em que deixa de ser possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um estado”
Toda a crítica que Agamben tece aos direitos do homem – que estes pressupõem tudo aquilo que pretendem ultrapassar – encontrou, nos últimos acontecimentos, menos uma confirmação que a necessidade de um aditamento. Os direitos do homem mantêm, efetivamente, relações complexas e contraditórias com o fenómeno moderno do Estado-Nação. Mas a isso é preciso acrescentar o que neles existe de fenómeno de pertença mítica, arcaica, que é revelado pela despolitização que neles é levado a cabo. Para esta despolitização concorre, sem dúvida, todo um dispositivo que arregimenta palavra e imagem: as reportagens, os textos sobre aqueles que fogem à guerra, transformam-se, muitas vezes, numa construção de empatia. Ora esta, por mais bem-intencionada que seja, acaba sempre por construir uma imagem do semelhante – a mim, a nós. É esta dimensão arcaica, tribal, que se tem tornado cada vez mais patente quando a retórica dos direitos do homem deixa as vacuidades de circunstância e encontra o real.