Gregory Corso. Afugentar o verme da realidade

Gregory Corso. Afugentar o verme da realidade


Depois de três anos na prisão, onde tomou contato com a poesia, Corso conheceu Allen Ginsberg num bar, e através dele veio a tornar-se um dos nomes maiores da Beat Generation.


Foi abandonado pela mãe (obrigada a fugir aos maus-tratos do pai), reencontrando-a no final da vida, graças a um jornalista, viveu grande parte da infância em orfanatos, esteve preso, vindo a conhecer, na prisão, “Lucky” Luciano, conhecido chefe da máfia americana; esteve internado num hospital psiquiátrico. Gregory Corso, um dos nomes maiores da Beat Generation, nasce em 1930, em Nova Iorque, filho de mãe italiana, e morre em 2001 (as suas cinzas foram colocadas junto a Shelley, poeta que muito admirava), deixando-nos uma poesia onde o conteúdo biográfico mantém uma forte presença, sem com isso cair em qualquer confessionalismo ou num relatório onde a vida mais chã, vertida em verso, pretende ganhar aura de acontecimento – a marca biográfica vê-se neste volume, por exemplo, na referência a Paris, a Nova Iorque, à prisão de Alcatraz, a Marrocos ou mesmo a um hospital psiquiátrico (“E por semelhante traição subo estas luminosas escadas loucas/ e entro neste quarto de luz paradisíaca”). Foi na biblioteca de uma prisão de alta segurança em Nova Iorque, biblioteca doada por “Lucky” Luciano, que, aos dezassete anos, Gregory Corso, nascido Nunzio Corso, tomou contato com a poesia.

Depois de três anos na prisão, vai para Nova Iorque onde encontra, num bar, Allen Ginsberg, de quem se torna amigo e através do qual conhece os outros grandes nomes da Beat Generation, Kerouac, Orlovsky, Burroughs. Vai ter com eles a Marrocos e, daí, rumam a Paris, ficando todos hospedados no mesmo hotel e chegando a dormir na mesma cama. É o mais novo do grupo, com uma vida propícia a lendas e mitos, e vai manter, até ao final da vida, fama de marginal (um poeta inglês contava que, no primeiro encontro, Corso lhe mostrara um conjunto de objetos que foi roubando de outras casas ao longo dos anos).

Com tradução de Hugo Pinto Santos, chega a Portugal a primeira obra deste poeta central para compreender um dos mais importantes movimentos poéticos dos EUA. A edição é cuidada, mas enferma de um mal que se tem alastrado por parte da edição independente portuguesa: o preço, que tem vindo a tornar-se incomportável para o salário médio português, fazendo com que os livros se transformem progressivamente em objetos de luxo apenas ao alcance de poucos. 

Apesar da vida atribulada que levou, fazendo com que facilmente pudesse ter caído numa tentativa de construir para si uma aura de marginal (uma aura, diga-se, que vende, tendo os seus tiques e os seus guardiões), a poesia de Gregory Corso é culta sem nunca cair num culturalismo que se limita a demonstrar um conhecimento mais ou menos rigoroso de objetos culturais maiores (sabe-se, por exemplo, que Corso era um admirador da Grécia Antiga). Encontramos referências ao jazz (Thelonious Monk ou Miles Davis), a poetas da Antiguidade, num poema, aliás, de forte pendor místico (“Quando pus de lado os versos de Mimnermo/ levei uma vida de calor enlatado e mãos cruas”), a Rimbaud, Shelley e Chatterton e à pintura (Boticelli e Uccello, por exemplo). Esta multiplicidade de referências, tal como a dimensão religiosa, é particularmente visível num poema como “Ecce Homo – pintura de Theodoricus” – mas dobrada, digamos assim, a uma dicção própria, atravessada por esta vida, tantas vezes desesperada, que foi a de Gregory Corso.

“Dentro das mãos e dos pés feridos

fragmentos que antigos ferimentos (quase cicatrizados)

como amêndoas negras em crosta

são resposta suficiente – 

os pregos trespassam o homem até deus”.

Este sofrimento (o poema acaba afirmando-o inesquecível: “Que dor esta!/ impossível de esquecer”), que tantas vezes parece dar lugar a uma errância onde encontramos apenas as “loucas/ crias de caricas de refrigerante” – imagem particularmente feliz, onde a cidade ganha todo um poder de alucinação -, confere a tonalidade a esta poesia que não deixa de ser profundamente cosmopolita. E, de facto, ao longo de Gasolina encontramos múltiplas referências não só ao jazz, mas a uma paisagem urbana: S. Francisco e a conhecida prisão de Alcatraz (em tom messiânico: “vasta porta da humanidade se abrirá, que todos os homens serão livres, que tanto a dobradiça como a fechadura morrem e todas as portas, fechando, fecham como sinos chineses”), Nova Iorque, Roterdão, Paris, Chicago, St. Louis, mas também a Itália e o México.

Em todos estes lugares, no entanto, o que Corso nos dá a ler é sempre o mesmo horror, que pode por vezes adquirir tonalidades humorísticas – num poema fala de uma criança que morre com um mês de idade, transportada por um “caixão tão pequeno” e “dez Cadillacs pretos para o levar”. Há dois momentos em que esta condição criatural, se assim se pode dizer, se faz notar em toda a sua pungência. Numa delas, encontramos Roterdão e uma junção de tempos (setembro de 1957 e maio de 1940), a convocação da história e uma cidade que é apenas uma ruína composta de ratazanas, velhos, doentes e loucos, onde “criancinhas loiras em blusas brancas/ rastejam pelas ruas roem as suas casas”. É uma alucinação, o momento em que a história se suspende sobre essa cidade, ameaçando-a de uma catástrofe que, em parte, já se deu e, por outro, permanece ainda por vir – é este “esquema de uma nova Roterdão a trautear no vazio” e um dos momentos maiores de Gasolina:

“Setembro 1957 convocado pelo meu agente-visão

via telegrama ventríloquo

entregue pelas bocas mudas esculpidas na pedra de Notre-Dame

que receberam bilhete de ouro & diagrama século XVII

Saí da cidade-gárgula

Duas malas cheias de desespero

Cheguei a Roterdão”

É uma poesia cosmopolita, mas, enquanto numa certa produção poética contemporânea a cidade só aparece sob o manto dos pequenos acontecimentos diários, de acontecimentos passageiros que, no máximo, dão lugar a uma tristeza quase sem tonalidade, uma cor cinzenta imóvel de onde nada parece escapar, em Corso a cidade é sempre lugar de uma visão quase alucinada em que esta é o momento do desespero e do pesadelo: “árvore doente”, “absurda Babel”, “visão horrível”, “pulmões tuberculosos”, o “Relojoeiro do Nada” impõe à paisagem citadina a ameaça latente de uma catástrofe que é declarada como permanente. 

É a partir desta visão, onde as cidades são prisões “fedendo a sonhos mortos sonhos que ainda finjo enterrar para afugentar o verme da realidade”, em que se tornaram inabitáveis, que Corso vai ensaiando diversas saídas (“Ditosamente louco eu estava Ó torre deitado entre verdes mexericos sonhando com Quetzalcoatl”). As cidades são sempre horríveis, inabitáveis, cheias de “pregos frios contra o céu ocidental” – mas nada há que lhes escape, é a nossa condição e o nosso horizonte inultrapassável. É talvez por isso que o México não surge, em Gasolina, como uma utopia, como um lugar onde se pudesse por fim escapar. Também este é feito de “quilómetros e quilómetros de corpos inteiros de cavalos mortos – / Puros-sangues ingleses e cavalos de tracção, os lados espalmados/ Enrijecidos pelas pernas a direito e bocas sem beijo.” E sob o fundo destes “sonhos equestres de pesadelo”, Corso conclui em tom humorístico, naquele humor que apenas o desespero consegue engendrar – riso convulso e sem saída: “No Zoológico mexicano/ eles têm vulgares/ vacas americanas.”

Mas isto, esta impossível saída do pesadelo (citadino, urbano, “manicómio iluminado”), declina-se igualmente numa dimensão metafísica e, por vezes, mística. É a rosa, por exemplo, do poema “A uma rosa caída”: 

Quando ouço a rosa gritar

reúno todas as experiências falhadas de um império anatómico

e, com um qualquer sonho químico, descubro

a odiosa lei da terra e do sol, e o grito da rosa no meio”

Mas é igualmente o sol, que comparece num poema com o mesmo nome. Tal como o sonho já não é alquímico, mas químico – já não transfigura nada, mas é apenas uma queda na matéria -, também a beleza se tornou convulsiva, violenta, e o sol, por sua vez, já não ilumina nada – dá apenas lugar a “criaturas perplexas numa vida deserta sob um sol espantado”. 

“Sol tormento sol ira sol doente sol morto sol podre sol relíquia! 

Sol sobr’ céu africano sol baixo e tombado, vertido, quase vazio, 

Frasquinho sem nada, sol ossificado, sol de ferro, relógio de

sol.”

É preciso sair, escapar – de todas estas cidades que se tornaram irrespiráveis. Mas, não havendo lugar para onde ir, a poesia, esta poesia, pode cartografar o fracasso, a falha, a queda.