Nelson Pereira. “A estratégia tem de mudar, senão pomos em risco todos os doentes”

Nelson Pereira. “A estratégia tem de mudar, senão pomos em risco todos os doentes”


No São João, a procura às urgências começou a semana a bater recordes. Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão da Urgência e de Medicina Intensiva, diz que mesmo com menor severidade, aumento de infeções vai perturbar a resposta dos serviços de saúde. Recomendação para o fim de ano? Ficar em casa.


Alertou para uma “black monday” esta segunda-feira no serviço de urgência, inundado por pessoas a tentar fazer o teste da covid-19 e com sintomas ligeiros sem conseguir ter orientações do SNS24. Como está a situação?

Na segunda-feira praticamente batemos o recorde de sempre em termos de afluência à urgência no Hospital de São João, com 604 doentes. Pior que isso só houve um dia em 2017, com 608 pessoas. Portanto esse alerta que tentei fazer para pessoas com sintomas ligeiros não irem à urgência não valeu de nada, as pessoas continuam a vir, não têm alternativas ou sentem que não têm alternativas e não estão suficientemente informadas de que não devem ir ao serviço de urgência quando têm sintomas minor. Têm um pingo no nariz, o SNS24 não atende e atiram-se para o serviço de urgência. É inaceitável. Tivemos na segunda-feira 250 não urgentes. É 41% da procura, obviamente que isto põe em risco a missão dos serviços de urgência.

Esta terça-feira foi de novo assim?

Era meio-dia e já tínhamos 200 doentes admitidos, vamos pelo mesmo caminho. Na segunda-feira, dos 157 doentes que entraram na área covid-19 como casos suspeitos, 60 foram positivos, estamos a falar de 38% de doentes positivos, o que é uma brutalidade. Internámos menos de 2%, pelo que o que estamos a ver são doentes sintomáticos, pouco graves e que não deviam estar no serviço de urgência, onde acabam por estar a ocupar uma estrutura diferenciada e a desviar equipas que deviam estar concentradas em doentes graves que neste momento continuam a ser maioritariamente doentes não covid.

Os primeiros indícios são também cá de que a Omicron causa doença mais ligeira?

Há essa sensação, os dados de outros países indiciam isso mas não consigo confirmá-lo com os nossos casos porque estamos a falar, pelo menos aqui no S. João, de um pico de procura que tem uma semana. O que sabemos até aqui da covid-19 é que os doentes agravam ao 10.º dia de doença, pelo que é muito cedo para perceber se a variante tem o mesmo nível de gravidade que a anterior ou não. Admitindo que seja uma severidade menor, com um volume tão elevado de infeções haverá sempre repercussões no sistema de saúde. No nosso hospital o que posso dizer é que neste momento não é um problema nos internamentos, mas já é claramente um problema no serviço de urgência e isto é especialmente preocupante porque sabemos que não atingimos o pico. Só vai piorar. E portanto é altura de dizer que isto está a funcionar mal e vai piorar senão houver medidas corretivas na estratégia global que estamos a seguir.

Que medidas lhe parecem necessárias no imediato? O SNS24 está entupido, as pessoas querem confirmar a sua situação até para terem acesso a baixa quando não podem ir trabalhar e não conseguem.

Há várias componentes que é preciso ajustar. Temos de desburocratizar e descomplicar todo este processo. Percebo perfeitamente que as pessoas precisam de documentação, mas a primeira coisa que me preocupa enquanto médico é a componente clínica. Não podemos continuar a olhar para a fase da epidemia em que estamos da mesma maneira que olhávamos no início de 2020. Há de haver um momento, e não me compete a mim dizer se é já ou mais daqui a algum tempo, em que teremos de olhar para esta doença, de tal forma disseminada está, como uma doença em que as pessoas só devem ir aos serviços de saúde com sintomas graves. Ou seja, olhar como em tempos olhámos para a gripe. As pessoas com sintomas ficam em casa, não vão trabalhar mas não precisam obrigatoriamente de ter um teste confirmatório nem precisamos de fazer um inquérito epidemiológico alargado para saber todos os contactos. As pessoas têm de começar a ser instruídas para serem elas próprias a fazer isso, a ficar em casa, a avisarem os outros, e deixarmos de ter profissionais de saúde ocupados com essa missão. Os profissionais de saúde não vão chegar para tudo. Não vão chegar para fazer as tarefas que não são iminentemente clínicas e tratar dos doentes que realmente precisam. E esse é o risco corremos ao manter uma estratégia que fez sentido noutras vagas da pandemia, hoje pode ainda dar mas dentro de alguns dias vai deixar de dar para garantir resposta. É preciso pôr as coisas em perspetiva, perceber onde estamos, que recursos temos. Às vezes estamos de tal forma metidos no barulho que somos incapazes de perceber que as coisas não estão a funcionar e que estamos a afundar-nos sem resolver os problemas de fundo.

A Universidade de Washington prevê 3 mil milhões de infeções nos próximos três meses em todo o mundo, 60 mil casos em Portugal diários no pico do inverno mais infeções assintomáticas, se houvesse capacidade para manter o sistema atual. São projeções da semana passada, devem ser valorizadas?

Não sei se lá vamos chegar, mas mesmo que cheguemos, como é que se pode ter equipas para lidar com todos esses casos, a rastrear contactos e a pôr as pessoas em isolamento? A estratégia tem de mudar porque se não não só pomos em risco os doentes com covid-19, porque não nos concentramos nos doentes que têm doença mais grave, como pomos em risco todos os outros doentes. É preciso ser capaz de vislumbrar um pouco à frente, antecipar e planear esse momento para mudar a estratégia e qual será a estratégia, se não vamos claramente afundarmo-nos nesta areia movediça.

Disse que não sabe se é já o momento para alterar a estratégia, o que começou a ser feito em alguns países. Há alguma coisa que já devesse ou pudesse ter sido feita?

Neste momento parece-me que falha novamente a comunicação. Não se vê ninguém a dizer às pessoas, face à dificuldade nomeadamente do SNS24, o que devem fazer. Ok, falhamos enquanto sistema, o SNS24 não funciona, o que devem fazer as pessoas? Quando não se diz nada, as pessoas atiram-se para as urgências. Ao não dizer nada, estamos a contribuir para este disfuncionamento da rede. Temos tido toda a gente em silêncio.

Já se começa a discutir se uma variante mais contagiosa mas com menor severidade pode ser o final da pandemia. Tem alguma perspetiva?

Acho que estamos de tal maneira metidos no problema que não conseguimos perceber se é o fim ou o princípio. Prognósticos nesta altura do campeonato são demasiado perigosos. O que sentimos aqui no hospital é que estamos metidos numa grande alhada, no serviço de urgência, em particular, esta situação atual é muito difícil de gerir.

Já se sente o impacto do aumento de pessoas infetadas e de baixa nas equipas?

Tem havido um aumento progressivo das pessoas de baixa, não é catastrófico e temos conseguido colmatar, mas o número de pessoas a ficar em casa é crescente. E sabemos que vai agravar-se. No Estados Unidos, a norma do Centro de Controlo de Doenças (CDC) prevê que em caso de necessidade os profissionais de saúde mesmo infetados vão trabalhar.

Pensa que será preciso ir por aí ou bastará reduzir períodos de isolamento?

Penso que em termos de cenarização tudo é possível e estes cenários sempre tiveram que estar equacionados. Não precisam de ser cenários públicos, mas quero crer que existem. Dou este exemplo dos EUA sobre como é necessário ver mais além. Os EUA não implementaram ainda estas regras, mas têm um plano para o caso de serem necessárias. E o que nos falta muitas vezes aqui é esta antecipação: perceber o que está a acontecer agora, é provável que aconteça daqui a duas semanas, daqui a três semanas e planear as medidas. Isto que estamos a ver agora não é nenhuma surpresa, sabíamos que ia acontecer um aumento de infeções, alertámos para isso, para a pressão nos serviços de urgência. 

Algumas pessoas continuam a questionar para que serviram as vacinas. O que vê no seu serviço?

Sem vacinas, com este nível de infeção, tínhamos estoirado os hospitais há muito tempo. A esmagadora maioria das pessoas que chega ao hospital está vacinada porque a maior parte da população está vacinada. Agora a percentagem de pessoas que têm sintomas graves e precisa de internamento é menor e disso não haja a menor dúvida, por isso temos de continuar a apostar no reforço da vacinação. Como dizia, ontem fizemos 60 testes com resultado positivo e tivemos mais umas 10 a 15 pessoas que vieram à urgência já com resultado positivo, portanto em 70 ou 80 casos confirmados que nos passaram pelas mãos, internámos um doente, menos de 2%. Dantes seriam pelo menos 10% a precisar de internamento. Quer dizer que neste momento em vez de 14 doentes em UCI, poderíamos ter cinco vezes mais, que é mais do que o máximo que tivemos em cuidados intensivos, 52 doentes, e isto numa altura em que as infeções estão a aumentar. Já tínhamos estoirado há muito. Não haja dúvidas de que a vacina é a única coisa que nos salva neste momento.

Vem aí o Ano Novo. Já estão a receber pessoas que pensam que se terão infetado no Natal, mesmo fazendo o auto teste?

Uma coisa que temos visto com a Omicron é que tem um tempo de incubação mais curto e muitas pessoas estão a relatar que estiveram com alguém infetado no Natal. Não sei se todos fizeram auto teste, mas muita gente fez e essa foi uma mensagem que felizmente passou, mas temos de ter noção de que a população não fez toda auto testes e que isso não garante a 100% que não se estava infetado.

Já está muita gente em casa, mas mantêm-se festas de fim de ano planeadas para quem possa ir. Que conselho daria neste momento?

Neste momento o único conselho que posso dar é fiquem em casa e festejem o ano novo em frente à lareira com as pessoas com quem vivem.