Tribunal Constitucional em Coimbra


A Assembleia da República vota, hoje, um projecto de lei para transferir para Coimbra a sede do Tribunal Constitucional. Espero vê-lo aprovado na generalidade e que assim prossiga até final.


A Assembleia da República vota, hoje, um projecto de lei para transferir para Coimbra a sede do Tribunal Constitucional. Espero vê-lo aprovado na generalidade e que assim prossiga até final. Mais espero que, afinando-se, na especialidade, eventuais arestas, o PS mantenha na votação final global a posição de viabilizar a importante reforma. Seria sinal de oportunismo deplorável que, no final, passada a pressão das eleições autárquicas, o PS viesse opor-se à reforma que tinham viabilizado, em lugar de evoluírem para o voto a favor. Uma leviandade assim seria desrespeito pela descentralização, por Coimbra e pela dignidade do Estado e das instituições.

Agradeço à direcção do jornal o desafio que me fez para recordar, aqui, a minha história neste tema. De facto, junto com colegas do CDS, fomos os primeiros a apresentar a iniciativa.

Muito jovem, em 1969 ou 1970, creio que antes de entrar na Faculdade de Direito, li num suplemento semanal do “Diário de Notícias” que se dedicava a reformas várias, um artigo de Diogo Freitas do Amaral em que, ocupando-se em abstracto da descentralização (grande e antiga necessidade nossa), apresentava o que designava de “descentralização institucional”.

O que era? Não se tratava de parcelar geograficamente certos poderes ou competências, confiando o seu desempenho a entidades territorialmente dispersas. Tratava-se de sedear em cidades que não a capital do país entidades nacionais com competências nacionais integrais. Esta ideia fascinou-me. Nunca mais me esqueci.

Há vários exemplos assim pelo mundo, dependendo, como é evidente, da história de cada país, suas tradições e circunstâncias que rodeiam cada decisão. O que tem de novo? Tem a visibilidade maior que essa específica localização dá, em simultâneo, à própria instituição de que se trata e à cidade onde é sedeada.

Em 1999, pouco depois de voltar à actividade política, fui reeleito deputado. Nessa 8.ª legislatura, estive na Assembleia quase um mês, de 25 de Outubro a 22 de Novembro. Nesses dias, ainda apresentei alguns projectos, entre eles o Projecto de Lei n.º 19/VIII/1.ª: “Transfere para Coimbra a sede do Tribunal Constitucional”. Tinha amadurecido a ideia e obtive o apoio da direcção. O projecto foi co-assinado pelos Manuel Queiró, Sílvio Cervan e Paulo Portas, o presidente do partido. Ainda coincidimos uns poucos dias em S. Bento – ele quis vir de Bruxelas para Lisboa, eu fui substituí-lo no Parlamento Europeu.

O Tribunal Constitucional parecera-me caso óbvio de descentralização institucional, para que despertara no artigo de Freitas do Amaral, trinta anos antes. O país precisava de reformas que sacudissem de vez a modorra centralista e centralizadora em que se afundou. (Hoje, é igual. De 1999 para cá, a única coisa que mudou é que estamos pior.) O Tribunal Constitucional dispõe de perfil absolutamente único, que favorece o seu afastamento da capital do país e até convida a que assim aconteça, apoiando a sua independência e a percepção e veneração pública dessa independência, singularidade e autoridade.

A Alemanha é bom exemplo, com o Tribunal Constitucional sedeado em Karlsruhe desde 1951, intencionalmente afastado da sede das outras instituições federais. O mundo só houve falar de Karlsruhe por causa do Tribunal Constitucional. O que, apesar do hipercentralismo nacional, não acontecerá com Coimbra. Coimbra é já a sede da primeira e mais antiga Universidade portuguesa, fundada em 1290 e ali definitivamente estabilizada por D. João III, depois de decisões similares de D. Dinis e D. Afonso IV. A nova sede do Tribunal será também saudação à ancestralidade universitária da cidade e, sem desprimor para as demais, um cumprimento à sua escola de Direito, de longa e sólida tradição. Eu não tinha dúvidas de a medida ser win-win, como é moda dizer-se. Creio mesmo, sem exagerar, que é win-win-win-win-win: ganha Coimbra, ganha o Tribunal, ganha o país, ganha a descentralização e ganha o Estado.

A exposição de motivos do nosso projecto exprimia estas convicções. Cito três excertos. Primeiro: “Um modo de descentralizar o Estado consiste na chamada ‘descentralização institucional’ por que se localiza em cidades diversas da capital a sede de instituições relevantes do País ou de outros organismos públicos.” Segundo: “Uma tal estratégia descentralizadora oferece ainda particulares vantagens quando se trata de instituições cujo estatuto é de marcada especificidade e independência. Trata-se, por um lado, de atrair a outras cidades o efeito de polarização que a deslocação de sedes de decisão pública relevante sempre representa na compreensão pública e no dinamismo social; e trata-se também, por outro, de consolidar a independência de tais instituições e do seu funcionamento corrente, favorecendo que funcionem mais agilmente fora do torvelinho da capital e do quadro de pressões múltiplas que é próprio dos centros de decisão política dos países e dos respectivos ambientes.” Terceiro: “Do mesmo passo, a longa tradição universitária da cidade de Coimbra e o relevo especial que a respectiva escola de direito assume no pensamento português e na tradição da doutrina jurídica nacional constituem fundamento inspirador a que aí se situe a sede do Tribunal Constitucional.”

O projecto viria a falecer. Caducou no fim da Legislatura, que foi antecipado: 4 de Abril de 2002. E não seria renovado. Saí da Assembleia, pouco depois de lhe dar entrada e não sei exactamente o que se passou: provavelmente não houve condições para prosseguir ou atravessaram-se outras prioridades. Ainda gerou ideias de propormos movimento semelhante do Banco de Portugal para o Porto. E cheguei a fazer com outros colegas um requerimento parlamentar ao Banco Portugal nessa perspectiva. Seria respondido, quando eu já saíra, mas o tema não teve seguimento. Por vezes tenho-me interrogado se o Banco de Portugal, sedeado no Porto, longe da açorda bancária da capital, não teria sido mais independente e distante dos supervisionados, de tal forma que a supervisão funcionasse com o rigor devido e tivéssemos sido poupados ao fracasso estrondoso a que assistimos e aos efeitos pesados que ainda pagamos.

Nunca perdi estas ideias. Em Janeiro de 2020, fui a Coimbra fazer uma apresentação pública da reforma eleitoral em que tenho trabalhado, num jantar no Club Tiro & Sport. A sessão correu muito bem. Melhor ainda porque, na conversa extra-programa na mesa principal, veio à baila o centralismo e, atendendo às figuras coimbrãs que ali estavam, com categorizados juristas e juízes do Tribunal Constitucional, recordei a história de 1999. A conversa foi animada e um alto dirigente do PSD mostrou interesse em retomar a ideia. Partilhei com ele os elementos que tinha e foi com esperança que, meses depois, vi o Projeto de Lei n.º 516/XIV/2.ª com este propósito.

O PSD fez um texto mais completo do que aquele que, em poucos dias, eu pudera preparar em 1999. A norma fundamental da reforma é exactamente a mesma: «O Tribunal Constitucional exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa e tem sede em Coimbra.» Mas o PSD agrega também a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, como é natural, e o Supremo Tribunal Administrativo. E inclui algumas disposições para o regime de mobilidade.

Só posso regozijar-me. Por um lado, as ideias não têm dono: uma vez apresentadas, ficam no mercado para quem as queira aproveitar. Por outro, só posso felicitar o PSD e agradeço ter posto de novo a caminho uma ideia em que acredito muito. Oxalá toda a Assembleia da República o entenda e esta reforma possa ser aprovada por unanimidade.

Coimbra não desvaloriza o Tribunal Constitucional. Coimbra valoriza o Tribunal Constitucional. Acima de tudo, o Tribunal Constitucional em Coimbra valoriza Portugal: faz soprar sobre o país, a partir da sua imagem singular de autoridade suprema, um exemplo e uma brisa descentralizadora. Bem precisamos. Portugal não é só Lisboa.

Advogado

Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990