Simone Veil. O insustentável peso da sobrevivência

Simone Veil. O insustentável peso da sobrevivência


Passou 14 meses nos campos de concentração nazis, foi ministra da Saúde de França e presidente do Parlamento Europeu. A Madrugada em Birkenau (ed. Quetzal), um acervo testemunhal coligido pelo cineasta David Teboul, devolve-nos a voz de Simone Veil, juntando-lhe a de outros sobreviventes da Shoah.


Em Birkenau, a verde relva de hoje não evoca a pesada lama que submetia as galochas que a atravessavam, nos anos 40, para carregar pedras aos ombros; o céu limpo não permite aproximação alguma a uma atmosfera escura, saturada de fumo e cinzas que caíam sobre os campos e poluíam os corpos; o entranhado cheiro a carne humana queimada que permeava tudo e todos, a todas as horas, dissipou-se com o século; das torres de vigia dos kapos nazis desapareceram quaisquer figuras humanas, para mais com o seu sinistro recorte de um alemão berrado a ódio, que traiu a língua de Hölderlin, mais os cães que mordiam a sério, as chibatas, as bofetadas, os espancamentos; os edifícios estão cuidados e “até o arame farpado parece sereno”. Numa palavra, quando as pessoas, hoje, vão a Auschwitz-Birkenau, garante Simone Veil, “observam um certo número de coisas, mas fica-se longe da transmissão de uma experiência”.

Paris, 1945. Depois do fim da guerra, um amigo de quem Veil gostava muito dizia-lhe sobre a sua passagem pelos campos de concentração e extermínio nazis: “Foste decerto violada várias vezes…” E um jovem judeu perguntou-lhe num debate: “Que fez você para regressar viva dos campos?”.

 Se Primo Levi, em Os que sucumbem e os que se salvam, pôde dizer que os melhores de entre os prisioneiros nos lager, pelo facto de o serem, pereceram de imediato face à absoluta inadaptabilidade a Auschwitz, há, nesta curiosidade quase mórbida, lançada a Veil, como que uma acusação implícita. “Que fez você para regressar viva dos campos?” é uma pergunta que se assemelha demasiado a inquirir, quão perverso havia sido aquele que escapou às malhas da morte. Talvez na sua maldade objetiva, a pergunta do jovem judeu tenha o condão de nos aproximar, com maior intensidade, do insustentável peso que recaiu sobre os sobreviventes. Muitos (como Levi) suicidaram-se.

Quanto à interrogação acerca dos abusos sexuais perpetrados nos campos, Veil (que os não sofreu) regista que ela e suas companheiras estavam, paradoxalmente, “protegidas pelo antissemitismo dos nazis. O contacto com uma mulher judia era-lhes interdito”.

A memória de Veil conservou vários outros comentários que configuraram o equívoco do regresso – como “julgava que tinham morrido todos” ou “depois do que viveram, como podem ainda pensar em divertir-se?”. Tudo se lhe colou à pele: durante anos, no pós-1945, teve medo de entrar numa esquadra, de passar por um uniforme ou de franquear uma fronteira; e até de ver crianças.

 

Relatos inacreditáveis Simone Veil vivia em Nice, numa família judia (não religiosa), oriunda da Alsácia-Lorena. O pai, um arquiteto que ficara em cativeiro durante quatro longos anos durante a I Grande Guerra, tornara-se austero, autoritário e manifestamente antigermânico. De ascendência aristocrática, dava grande valor aos livros, numa casa sem rádio ou televisão. A mãe, destinada a cuidar da família, de uma grande sensibilidade, nem nos campos se permitia responder com indignidade à indignidade, superior em carácter e bondade a todos os demais – a verdadeira figura que Simone Veil admirará profundamente. No início dos anos 40, Nice ficará sob o jugo de Mussolini. E àquela cidade, vão chegando, entretanto, refugiados judeus alemães. A família tem uma atitude favorável a estes, percebe que fugiram, claramente, do mal. Mas os concretos relatos que trazem são inacreditáveis – como em Auschwitz era necessário ir a cantar enquanto se carregam pedregulhos, para aguentar o quotidiano dantesco.

Simone tinha 16 anos quando a sua família foi deportada para os campos nazis. Durante a viagem para Auschwitz, nos vagões para gado dos comboios da morte, quase não há uma frincha por onde respirar. Fazer a refeição, por pior que ela seja? Daria calorias necessárias, é certo, mas também acarretaria sede. E não há o menor líquido à disposição dos detidos. E conversar? Falar também dá sede. Melhor calado. E há necessidades biológicas impreteríveis. As latrinas enchem, os cheiros são nauseabundos, líquidos circulam sem entraves. Muitos morrem antes de chegar a Auschwitz.

As famílias são separadas à chegada ao lager, há gente conhecida posta de lado. Quando mais tarde se pergunta o que é feito delas, a resposta surge com a mais absoluta das cruezas: “Aquele fumo, eis o que resta deles”. E, sem embargo, uma dessas mulheres, salva da morte a bela Simone, sabe-se lá por que motivo, arranjando-lhe trabalhos e condições que lhe permitem permanecer à tona.

Veil nunca se separa da mãe e da irmã. As três, naqueles andrajos cheios de piolhos que lhes entregaram à chegada aos campos, cabelo cortado, se bem que não rapado, serão exemplo extraordinário para quem os contempla. Mas como será ver a própria mãe esbofeteada? “Deve ser muito penoso estar ali com a própria mãe”, diz-lhe a amiga Marceline.

A sopa, nos campos, é dada numa gamela enferrujada; só o aspeto repugna. E, no entanto, a sobrevivência implica consumir aquela mistela, naquelas condições. A humanidade revela o melhor (uma enorme solidariedade entre os que estão próximos) e o pior, mesmo entre os prisioneiros. Há um conjunto de detidas comunistas, com as quais é possível ter conversas interessantes sobre política. E há guardas que deixam, deliberadamente, cair folhas de um jornal para indicar o que se passa na frente de batalha. A libertação estará para breve. Simone Veil esteve no total 14 meses nos campos de concentração e extermínio. A sua mãe morre de tifo no campo de Bergen Belsen.

 

“Um país tão desenvolvido e culto” No pós-guerra (já com a notícia de que o pai e o irmão tinham morrido), Veil foi morar para casa de uns tios, em Paris, que tinha sido atacada pelo facto de ali morarem judeus. Voltará a estudar – na Sciences Po – e cursará Direito (recordará, nessa altura, o caso de um rapaz de 12/13 anos que fora escravo sexual dos SS e kapos nazis no lager e que se alcandorará a uma carreira académica brilhante). Estará na Administração Penitenciária. Terá três filhos. Aprenderão alemão, ao contrário da mãe.

Valéry Giscard d’Estaing, eleito Presidente francês em 1974, convida-a para integrar o Executivo liderado por Chirac. Será ministra da Saúde. Mais tarde, presidente do Parlamento Europeu. Não raramente, as páginas dos periódicos hodiernos, em discorrendo sobre o tema do aborto, acenam o caso francês – o da Presidência Giscard, com Chirac primeiro-ministro e Simone Veil ministra da Saúde – como exemplo de uma direita “muito progressista” neste campo. Veil ajuda a olhar de modo mais complexo. Para começar, não havia militado em qualquer partido e votara tanto à esquerda como à direita. Dizia que o dogmatismo dos comunistas a assustava e considerava a Frente Nacional “repugnante”.

Depois de aprovada a lei de despenalização do aborto, Simone Veil recebeu inúmera correspondência, muitas vezes insultuosa, de carácter antissemita, de gente que se proclamava de direita.

À semelhança de tantos outros, questionou-se como o nazismo e suas fábricas de morte se deu “num país tão desenvolvido e culto” como a Alemanha. Um dia indagou o grande violinista Yehudi Menuhin sobre este problema: “A cultura alemã, tão requintada, não servira de barreira. A música, tão tocada, tão apreciada nesse país, não servira de nada”. A Alemanha, acrescenta, tinha uma cultura particular, antiga, mais favorável aos judeus do que a de muitos países europeus. O antissemitismo nazi rompia, pois, com a tradição alemã.

Quanto ao não menos espinhoso ponto do perdão, quem podia perdoar já não se encontrava na Terra. A questão passava por como conviver depois de Auschwitz (com os alemães, mas não só). A resposta de Simone Veil era clara: “Desejei que a Europa se fizesse. Mas na condição de nunca esquecer”.