‘Quando não estamos sentados no palácio, ficamos aquém das expectativas’

‘Quando não estamos sentados no palácio, ficamos aquém das expectativas’


O sobrinho de ‘Nino’ falou do embate entre o Presidente e o PAIGC, de um país que nunca se desenvolveu e da instabilidade que o atrofia. 


A política guineense é sempre um turbilhão, com um ritmo próprio, pouco recomendável a quem não aprecia emoções fortes. Como porta-voz do PAIGC, João Bernardo Vieira deu a cara pelo partido enquanto este perdia terreno, passando de ter quase 50% dos votos nas legislativas de 2014 para pouco mais de 35% em 2019. Acabou derrotado nas presidenciais de novembro desse ano, por Umaro Sissoco Embaló, do Madem-G15. Numa reviravolta, o PAIGC, sob liderança de Domingos Simões Pereira, candidato à presidência, acusou Embaló de fraude, num impasse que deixou por momentos o país com dois Governos. Agora, voltámos às discussões do quotidiano, como acusações de espancamentos de ativistas, jornalistas e políticos. «A maturidade política não é tão grande na Guiné-Bissau», assume João Bernardo Vieira. Sabe do que fala. Se o seu nome soa familiar, é porque o herdou do tio, João Bernardo ‘Nino’ Vieira, derrubado na guerra civil de 1998, assassinado brutalmente em 2009. Após uma passagem por Portugal e Estados Unidos para estudar Direito, o seu sobrinho quer mudar um país onde há demasiado dinheiro na política, com alianças fluidas e pagas a preço de ouro.  

A Guiné-Bissau entrou em estado de calamidade, devido à covid-19, quando já havia acusações de autoritarismo e abusos da parte do Governo e do Presidente Umaro Sissoco Embaló. Isso pode agravar-se com estas restrições?

Não podemos associar a realidade pandémica e a política. Mas a Guiné-Bissau tem vivido um retrocesso democrático, com alguns sinais de deriva autoritária, e isso é preocupante. Vimos durante a quarentena serem tomadas algumas medidas que correspondem a violações de direitos humanos, de pessoas a serem espancadas por não cumprirem com as restrições. Há esse receio, mas creio que depois da experiência da quarentena serão tomadas medidas para impedir que isso se repita.

Recentemente, a Assembleia Nacional emitiu um comunicado a propósito de uma tentativa de assassínio do advogado Luís Vaz Martins, antigo presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos. Mas em ponto nenhum mencionava quem são os autores. Quem é responsável por essas tentativas de assassinato?

São as autoridades competentes, que estão no poder e a governar o país que têm de zelar e proteger os cidadãos. Esta situação não é isolada. Quando falamos em retrocesso democrático é porque vemos que desde que as autoridades que governam o país assumiram funções tem havido espancamento de políticos e de pessoas que têm uma intervenção direta na vida política da Guiné-Bissau. Temos o caso do espancamento do Marciano Indi [então líder da bancada parlamentar da APU-PDGB], temos casos de jornalistas e ativistas, e recentemente vimos o presidente do maior partido do país, o PAIGC, a ser impedido de viajar sem qualquer fundamento legal. 

Mas no que toca a esses abusos, o PAIGC aponta o dedo diretamente ao Presidente Umaro Sissoco Embaló e ao primeiro-ministro Nuno Nabiam ou não?

O PAIGC aponta o dedo às autoridades que estão a governar o país. E apela a que se abandonem agendas pessoais e se coloque a Guiné-Bissau em primeiro lugar, que se respeitem os direitos humanos. 

O PAIGC tem tido resultados eleitorais cada vez mais fracos ao longo dos últimos anos, mesmo dando crédito às alegações de fraude nas últimas presidenciais. Começa a haver contestação interna? 

O mais importante para o PAIGC neste momento é combatermos este retrocesso democrático, esta deriva autoritária. E penso que, no momento oportuno, todos aqueles que eventualmente quererão ser candidatos à liderança do PAIGC terão oportunidade de no fórum próprio anunciar as suas candidaturas. Agora, a verdade é que todos os objetivos preconizados ficaram aquém das expectativas. O PAIGC é um partido de governação, e quando não estamos sentados no palácio obviamente que temos de ter a honestidade de reconhecer que os objetivos ficaram aquém das expectativas. Neste momento é isso que é importante. 

Pergunto-lhe isto porque o congresso do PAIGC será no próximo ano, deverão em breve começar a surgir candidatos. Como sobrinho de um nome histórico do partido, tem ambições políticas nessa disputa?

No fórum próprio, haverá a oportunidade de cada um que preencha os requisitos de apresentar candidatura. Daqui até lá, o que é importante é que eu, enquanto soldado do partido, estou e estarei sempre disponível a servi-lo em qualquer circunstância. Sobretudo num contexto político marcado por tantos desafios, que precisam de uma resposta estruturada e bem pensada. Tudo a seu tempo. 

Dadas as alegações de fraude lançadas contra Umaro Sissoco Embaló, como é que se pode andar para a frente? É que enquanto o PAIGC considerar que houve fraude, se quiser colaborar nas medidas de governação, não estaria apenas a negociar com um rival, estaria a negociar com alguém que dizem estar ilegitimamente no poder.

O PAIGC reconheceu Umaro Sissoco Embaló como Presidente após o pronunciamento do Supremo Tribunal de justiça. O que o PAIGC exigiu foi que ele fosse empossado como a Constituição exige, pelos deputados do Parlamento, e não foi isso que aconteceu. Que preste juramento no Parlamento.

O acórdão do Supremo Tribunal surgiu bem antes da visita do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa à Guiné-Bissau. Na altura o PAIGC disse que Embaló não era um líder legítimo e que, logo, Marcelo não deveria legitimar a sua presidência ao visitar o país. Se era apenas uma questão formal, porquê essa posição?

Os portugueses são sempre bem-vindos na Guiné-Bissau. A questão levantada foi naquele contexto político, com sucessivos atropelos aos direitos humanos, o espancamento de políticos por terem opiniões diferentes ao regime, ou rádios vandalizadas por transmitirem informação. A questão que foi levantada foi o momento escolhido para a visita, poder-se-ia entender que Portugal estaria a pactuar com essas situações. Temos de aprender a viver na divergência de opiniões, esse é o maior desafio. Podemos ter opiniões diferentes, mas não somos inimigos. 

Isso é algo que tenho muita dificuldade de compreender. Pessoalmente, se achasse sinceramente que algum partido, ou dirigentes políticos, estavam envolvidos em espancamentos de ativistas, jornalistas, em ataques a rádios, não vejo como não vê-los como inimigos.

Bom, você tem de compreender que a maturidade política não é tão grande na Guiné-Bissau. Temos trinta anos de sistema democrático e isto é um processo. É preciso grandes consensos nacionais, colocar a Guiné-Bissau acima de interesses pessoais, não olhar para os seus umbigos, que é o que temos assistido nos últimos anos.

Na política guineense fala-se muito de nomes e disputas pessoais, mas nunca ouvi falar de programa. Disse que o PAIGC é o único com uma ideologia forte. O que fariam diferente do atual Governo? 

Haveria mais investimento público. Há pouco tempo o ministro das Finanças disse que o país ia entrar em bancarrota. Porquê? Devido à desgovernação. O PAIGC nunca iria aprovar subsídios milionários aos órgãos de soberania. Isto são histórias do arco da velha. Como é que é possível que num dos países mais pobres do mundo haja subsídios de quase 1 milhão de euros para o Presidente da República, ou 600 milhões de francos CFA para o presidente da Assembleia Nacional Popular (são quase 400 mil euros), para o primeiro-ministro idem-aspas, para o presidente do Supremo Tribunal de Justiça são uns 150 mil euros. Como é que é aceitável? É puro desrespeito para com os guineenses.

Cortar esses subsídios chegaria para investimento público sério? 

Outro aspeto são os empréstimos sucessivos que estão a ser contraídos junto de organizações internacionais e da banca. Esse dinheiro é consumido, vai para pagar salários, viagens, mas era dinheiro para ser investido, para criar riqueza, construir estradas e hospitais. O processo que levou estas pessoas a serem instaladas no poder resulta de aliançasde circunstância. E as alianças na Guiné-Bissau nunca duram muito tempo, são fruto de interesses pessoais. E são pagas a preço de ouro. Quando falamos do nosso programa, não temos como objetivo negar a existência dos outros partidos. Mas os outros partidos pretendem acabar com o PAIGC, entendem que para sairmos deste marasmo é preciso a sua extinção. Isso não é possível, acabar com o PAIGC seria acabar com a história da Guiné-Bissau.  

Mas o PAIGC esteve no poder tantas décadas, e a Guiné-Bissau não ficou no estado em que está apenas durante este Governo. O que falhou?

Temos de compreender a história da Guiné-Bissau. Em primeiro lugar, foi o PAIGC que trouxe a independência. Foi o PAIGC que introduziu uma economia de mercado e a liberalização política. Essa abertura foi em 1991, as eleições em 1994, e a Guiné-Bissau estava a crescer. Depois veio a guerra de 1998. Teve consequências que estamos a sentir até hoje. O estado da Guiné-Bissau também é responsabilidade do PAIGC, mas não só. O PAIGC nunca teve oportunidade de terminar os seus mandatos, houve sempre golpes, crises. Pergunto-me, porque é que não deixam o PAIGC acabar os mandatos? E as pessoas que hoje se queixam dessa governação estavam dentro do sistema. É importante frisar que há uma nova geração dentro do PAIGC, o partido precisa de rejuvenscimento, e nós estamos a rejuvenescer. 

A sua própria história pessoal mistura-se com esta história. ‘Nino’ Vieira era considerado pelos seus apoiantes um Presidente forte, invencível, pelos seus opositores um déspota terrível. Como foi crescer à sua sombra?

‘Nino’ Vieira ficará marcado para sempre na história da Guiné-Bissau. Lutou com toda a sua energia para a Guiné-Bissau se pudesse libertar. Mas nós temos de compreender aquilo que se passou na guerra. E quando falo do meu tio falo também do Amilcar Cabral, Francisco Mendes, Osvaldo Vieira, Umaro Djaló, todos esses combatentes. Tinham uma missão e cumpriram. O processo de desenvolvimento é muito mais complexo. Compreendo os detratores, que dizem que era autoritário, mas ninguém é perfeito, e creio que ele deu sinais muito positivos com a abertura. E digo-lhe, no tempo do ‘Nino’ os guineenses estavam unidos, ninguém perguntava quem era mandinga, fula, manjaco, papel ou balanta, esta ou outra etnia. Isso agora está exacerbado. 

Mas para si, como foi crescer consciente desse legado, sabendo que o viam na rua e sabiam que era o sobrinho do ‘Nino’?

Muitas vezes a pessoa perde a sua privacidade, que não consegue passar despercebida. Como é uma sociedade muito pequena, uma pessoa é sempre facilmente identificável, isso também tem os seus riscos. É um peso enorme. Por ter o nome dele, sei bem a responsabilidade que tenho, para não defraudar as expectativas de quem acreditou nele. Era o meu herói, um herói vivo.

Depois veio para Portugal estudar na Universidade Lusíada. Cá ainda era reconhecido como o sobrinho do Presidente? 

Não, aqui poucos conheciam. Esta é uma sociedade moderna, é completamente diferente, não era relevante. E quando estive a estudar nos Estados Unidos, eles nem conheciam a Guiné-Bissau [risos]. Tinha que dizer que é em África, em primeiro lugar, depois mostrar no mapa, e apontar que é ao lado do Senegal, aí, mais ou menos, chegavam lá. Agora, falar na Guiné-Bissau, what? [risos]. 

Um jovem guineense comum, que queira ter estudos superiores, oportunidades de carreira, não tem grandes opções sequer em Bissau, tem de sair do país. 

Isso é um facto. Há um desfasamento entre o cidadão e a política, um fosso enorme. E assim há a vontade do cidadão sair, há um sentimento de desespero perante o futuro. Compete às lideranças políticas criar as condições necessárias para que tudo aquilo que Deus nos deu, que é a terra fértil, as ilhas, possam ser traduzidos em ganhos concretos para a população. E quando se diz que o problema são os militares, é falso. O problema são os políticos guineenses.

Sabendo que faz parte de um grupo restrito que teve oportunidades, sente responsabilidade? E como é que se torna esse privilégio num direito?

Esta elite tem de se aproximar mais, descer lá abaixo, estar nas tabancas com a população. Mas isso não pode ser só com discursos, tem de ser com ação. Vemos que a maior parte das pessoas que exerceram funções são pessoas que tiveram o privilégio de ir para fora, mas quando chegam ao poder fazem algo completamente diferente. E temos de condenar isso, que não representa o que é o guineense. O guineense é solidário.