Deveria ser um dia de celebração e de reconhecimento da importância e contributo das mulheres para a sociedade. Em vez disso, o Dia da Mulher na África do Sul, 9 de agosto, ficou marcado por uma mensagem enviada por ativistas ao Presidente que dizia apenas: “Não há nada a celebrar”.
São aterradores os números que retratam a violência perpetrada contra as mulheres naquele país. O ministro da Polícia sul-africano garantiu em 2019 que são registadas 114 violações por dia – os números “reais” deverão ser, segundo previsões, duas vezes superiores – e que uma mulher é assassinada a cada três horas. Entre 2018 e 2019 houve um aumento de 4,6% no número de mortes e mais agressões sexuais, incluindo violações (foram 52.420). Os números não têm parado de crescer na última década. A ONU, em março deste ano, publicou inclusivamente um relatório onde previa um aumento da violência doméstica no país em 20% por causa do confinamento imposto pela covid-19.
“Nada a Celebrar” é a mensagem do “The Embrace Project”, a organização não-governamental determinada em alterar a condição de extrema precariedade e vulnerabilidade das mulheres no país. A organização colabora com uma rede de artistas que vendem obras de arte numa plataforma virtual, revertendo os lucros a favor de instituições locais que trabalham nas suas comunidades para combater a violência de género.
Criada em junho do ano passado, num ano a “The Embrace Project” recolheu já mais de 5.200 assinaturas na internet que serão acompanhadas por uma carta que chegará ao Presidente Cyril Ramaphosa no Union Building, sede do governo sul-africano, no final do mês de agosto. Ramaphosa já foi, porém, notificado na segunda-feira sobre a carta.
A manifestação junto do chefe de Estado e do executivo sul-africano vem carregada de simbolismo. A opressão, a violência e a discriminação sofridas pelas mulheres no país não tem conhecido limites, e o dia assinalado tornou-se mais de luto do que de celebração.
A co-fundadora do projecto, Lee-Anne Germanos, explica por que “não há motivos para celebrar” o Dia da Mulher: “Sendo uma mulher sul-africana, tenho medo de andar sozinha numa rua mesmo que seja uma principal em plena luz do dia. Sei que me podem roubar, sequestrar, acusar sexualmente ou mesmo matar”.
“Homens acham que têm o direito de violar mulheres”
A violência machista está amplamente documentada, mas o cenário só tem vindo a agravar-se. Em 2019, a violação e assassínio de uma rapariga de 19 chocou o país. O movimento Am I Next? levou milhares às ruas para expressar a sua raiva pela morte da rapariga e pôs na agenda política a violência contra as mulheres.
Assim, em 2020, um protesto virtual organizado chegou pela primeira vez ao Presidente. Daí resultou a implementação de um Plano de Resposta e Ação de Emergência, incumbido de capacitar as instituições que lutam contra este flagelo. Do plano, nada resultou. O fundo de financiamento para essas instituições estava aparentemente disponível, mas a falta de informação e de transparência na solicitação do dinheiro fez com que ninguém o tenha recebido. Germanos denunciou a situação: “Em Abril, a Comissão de Igualdade de Género da África do Sul admitiu que há um vazio de vontade política em todos os departamentos governamentais para implementar o plano”.
A ativista explica que o passado recente do país “é muito violento, primeiro o colonialismo, depois o apartheid… Esses sistemas reprimiram a maioria da população, o que gera opressão e um baixo nível de auto-estima. Na África do Sul, a cultura de violência que temos faz com que os homens achem que têm o direito de violar mulheres”. E tem pena que mesmo no regime democrático que se vive seja quase impossível contrariar os ciclos de pobreza e desemprego. “A violência de género baseia-se no alcance de um certo controlo sobre os mais vulneráveis, mulheres e crianças, para o agressor sentir que domina algo”.
Para as próximas gerações, o comportamento será facilmente transmissível porque “o rapaz vai-se tornar agressor por ter experienciado as agressões, e a rapariga vai achar normal que se reproduza na sua vida adulta” disse ao El País. A solução, como em todos os países onde estes casos sejam frequentes, deve passar pela educação, sugere: “Apoiamos uma ONG perto de Joanesburgo para tentar romper este círculo a que estão condenados os miúdos, por terem nascido num meio pobre e com poucas oportunidades. Mas o Estado deve envolver-se no sistema educativo, houve também muitos casos de professores que abusam de raparigas”.
Com 2022 em vista, Lee-Anne Germanos nomeou uma ação a curto prazo que o governo poderia implementar para melhorar a situação. Defende “uma formação real para que a polícia seja capaz de tratar com respeito e cuidado as mulheres que tenham sofrido uma violação”, tal como livrar o próprio corpo policial de casos de abuso, pois “não podemos ter um polícia que comete os mesmos crimes dos que supostamente nos está a proteger”.