Larry Flint e João Caupers, a mesma luta


A liberdade de expressão tem de ser defendida quando causa incómodo, sobretudo quando os incomodados não estão habituados a sê-lo por via do contraditório. 


Um dos elementos identificadores da tirania é a limitação da liberdade alheia, circunscrevendo-a à liberdade para concordar com os detentores do poder. Além dos poderes eleitos, há muitos mais poderes fácticos, não filtrados pela legitimidade democrática e, como tal, muito mais perigosos por não serem sujeitos a outra possibilidade de serem sindicados que não a crítica. A maioria dos poderes fácticos convive mal com o desafio e com a discordância. Quem exerce o poder olha com soberba para o exercício da liberdade de expressão que se traduza em crítica ou em alternativa ao poder (ou à ideologia dominante) e, por defeito, considera-a abusiva.

Recordemos um herói do nosso tempo, falecido a semana passada, um mártir às mãos da liberdade de expressão. O martírio incluiu muitos e variados feitos. Quero recordar um e que dificilmente poderia ter ocorrido em Portugal, por falta de candidatos a mártir. Acusar, numa sátira na imprensa, o mais poderoso tele-evangelista dos EUA de ser um bêbado fornicador da respectiva progenitora, fornecendo o detalhe da localização da iniciação sexual (a latrina exterior da casa familiar), teria tido em Portugal um desfecho jurídico muito favorável ao reverendo Jerry Falwell (cf. “Jerry Falwell talks about his first time”). Já nos EUA, o caso chegou ao Supreme Court que, numa decisão unânime (Hustler Magazine vs. Falwell), considerou que o segmento da primeira emenda à Constituição, protegendo a liberdade de expressão e de imprensa (“Congress shall make no law (…) abridging the freedom of speech, or of the press”), não permite a figuras públicas visadas por sátiras, mesmo que estas causem sofrimento emocional, ter direito a uma indemnização.

O Supreme Court conseguiu assim dar um efeito útil à liberdade de expressão. Não basta proclamá-la pela via discursiva nos dias da praxe, de acordo com o calendário hagiográfico constitucional, há que protegê-la dando-lhe um sentido útil e operativo. Se os poderosos, que se sentem ofendidos com o exercício da liberdade de expressão, puderem obter nos tribunais uma compensação financeira pelo exercício da crítica “dolorosa”, o número de candidatos a críticos será drasticamente reduzido.

No país do respeitinho, a multiplicação dos poderes fácticos exige vigilância e activismo. Não há qualquer razão para limitar o objecto da liberdade de expressão afastando do seu âmbito grupos ou categorias que tenham sido ou se reivindiquem actualmente como sendo discriminados. Um tal entendimento viola flagrantemente o texto da Constituição em vigor e de várias convenções internacionais que vinculam a República Portuguesa, com destaque para a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A defesa da liberdade de expressão não deve ser cega. A circunstância do exercício desta liberdade condiciona-a sobremaneira. O pensamento livre é exteriorizado de forma diferente num quartel, num hospital ou numa universidade. Nesta última circunstância é desejável – rectius, é exigido – pensamento crítico. O maior elogio que se pode fazer a um docente passa por repetir a acusação a Sócrates: corromper o pensamento das criancinhas. Neste particular, não posso deixar de saudar a capacidade crítica de João Caupers ao mesmo tempo que me preocupa e me entristece a tentativa, tardia e inútil, de o condicionar nas funções que exerce.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Larry Flint e João Caupers, a mesma luta


A liberdade de expressão tem de ser defendida quando causa incómodo, sobretudo quando os incomodados não estão habituados a sê-lo por via do contraditório. 


Um dos elementos identificadores da tirania é a limitação da liberdade alheia, circunscrevendo-a à liberdade para concordar com os detentores do poder. Além dos poderes eleitos, há muitos mais poderes fácticos, não filtrados pela legitimidade democrática e, como tal, muito mais perigosos por não serem sujeitos a outra possibilidade de serem sindicados que não a crítica. A maioria dos poderes fácticos convive mal com o desafio e com a discordância. Quem exerce o poder olha com soberba para o exercício da liberdade de expressão que se traduza em crítica ou em alternativa ao poder (ou à ideologia dominante) e, por defeito, considera-a abusiva.

Recordemos um herói do nosso tempo, falecido a semana passada, um mártir às mãos da liberdade de expressão. O martírio incluiu muitos e variados feitos. Quero recordar um e que dificilmente poderia ter ocorrido em Portugal, por falta de candidatos a mártir. Acusar, numa sátira na imprensa, o mais poderoso tele-evangelista dos EUA de ser um bêbado fornicador da respectiva progenitora, fornecendo o detalhe da localização da iniciação sexual (a latrina exterior da casa familiar), teria tido em Portugal um desfecho jurídico muito favorável ao reverendo Jerry Falwell (cf. “Jerry Falwell talks about his first time”). Já nos EUA, o caso chegou ao Supreme Court que, numa decisão unânime (Hustler Magazine vs. Falwell), considerou que o segmento da primeira emenda à Constituição, protegendo a liberdade de expressão e de imprensa (“Congress shall make no law (…) abridging the freedom of speech, or of the press”), não permite a figuras públicas visadas por sátiras, mesmo que estas causem sofrimento emocional, ter direito a uma indemnização.

O Supreme Court conseguiu assim dar um efeito útil à liberdade de expressão. Não basta proclamá-la pela via discursiva nos dias da praxe, de acordo com o calendário hagiográfico constitucional, há que protegê-la dando-lhe um sentido útil e operativo. Se os poderosos, que se sentem ofendidos com o exercício da liberdade de expressão, puderem obter nos tribunais uma compensação financeira pelo exercício da crítica “dolorosa”, o número de candidatos a críticos será drasticamente reduzido.

No país do respeitinho, a multiplicação dos poderes fácticos exige vigilância e activismo. Não há qualquer razão para limitar o objecto da liberdade de expressão afastando do seu âmbito grupos ou categorias que tenham sido ou se reivindiquem actualmente como sendo discriminados. Um tal entendimento viola flagrantemente o texto da Constituição em vigor e de várias convenções internacionais que vinculam a República Portuguesa, com destaque para a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A defesa da liberdade de expressão não deve ser cega. A circunstância do exercício desta liberdade condiciona-a sobremaneira. O pensamento livre é exteriorizado de forma diferente num quartel, num hospital ou numa universidade. Nesta última circunstância é desejável – rectius, é exigido – pensamento crítico. O maior elogio que se pode fazer a um docente passa por repetir a acusação a Sócrates: corromper o pensamento das criancinhas. Neste particular, não posso deixar de saudar a capacidade crítica de João Caupers ao mesmo tempo que me preocupa e me entristece a tentativa, tardia e inútil, de o condicionar nas funções que exerce.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990