1.O problema de um progressismo identitário consiste no facto de a identidade (pessoal) remeter para um "eu interior" e, neste sentido, negar o comum. Despolitizar. Favorecer, portanto, o princípio individualista. Que é, tão só, aquele que está na base do conservadorismo libertário. Dito de outra forma, o liberalismo identitário, o liberalismo (esquerda, centro-esquerda, em acepção norte-americano daquele que é, muito provavelmente, um dos vocábulos mais polissémicos em política) focado/centrado em diferentes minorias (e/ou nichos), deslocado das grandes questões (económico-) sociais, torna-se caucionante do fundamento cultural de última ordem – o individualismo – que subjaz a todas as políticas que negam qualquer obrigação de fazer por parte do Estado, em particular com os mais desfavorecidos. A tese de Mark Lilla, em The Once and Future Liberal. After identity politics (traduzido, pela Tinta da China, agora, por De Esquerda, Agora e Sempre: para além das políticas identitárias) conhecido académico de esquerda, Professor de Humanidades em Columbia é a de que se o movimento progressista, consubstanciado no Partido Democrata, nos EUA, quiser, de novo, conformar mentes, corações, sentimentos e substantivar políticas terá que abandonar a sua centralidade na política identitária e focar-se nas questões sociais. Terá que aprender a falar com(o) Roosevelt – embora não a repetir o mesmo exacto programa, dados os contextos e circunstâncias diversas – e deixar de seguir a escola da Nova Esquerda (a tal na qual se regista, desde logo na Academia, a preeminência da identidade sobre tudo o mais). A esquerda, se se preferir ainda, não pode alimentar uma cultura (hiper-individualista) que alimenta a consequente política de direita liberal (de um Estado abstencionista, não redistributivo e, mesmo, execrado, em especial, nos EUA), assume Lilla.
2.Vivemos um tempo de interregno (p.48), uma verdadeira crise do pensamento (p.81: "desde há duas gerações que a América não possui uma visão política do seu destino. Não temos uma visão conservadora; não temos uma visão liberal. (…) Somos governados por partidos que já não sabem o que querem a uma escala global, apenas o que não querem a uma escala reduzida. Os republicanos não querem os programas e as reformas herdados do New Deal, da Nova Fronteira e da Grande Sociedade. Os democratas não querem que os republicanos eliminem esses programas e essas reformas. Mas quais são as metas finais dos partidos, independentemente da dimensão e forma do Governo? O que procuram acima de qualquer outra coisa? Qual a imagem do futuro que determina as suas acções? Parece que deixaram de saber, e assim também não se pode esperar que o povo saiba. Damos por nós numa América que se sucedeu à era das visões"), de ausência política-ideológica de um sintonizar com o sentimento (do povo) americano – ou de projectar uma visão e de contribuir para criar esse sentimento -, após as duas grandes narrativas, as duas grandes eras (ou Dispensações, como diz o autor, recorrendo a uma categoria teológica protestante, que diz o modo como Deus administra determinados períodos de tempo, que correspondem a diferentes formas de testar a obediência dos fiéis), as ideologias que dominaram o século XX americano: a de Roosevelt – o New Deal, a projecção da Great Society de Lyndon Johnson -, e a sua marca de não deixar ninguém desprotegido, de um seguro social, de um enfrentar conjunto as dificuldades da vida (a doença, o desemprego, a velhice, etc.; "envolviam um projecto colectivo com vista à protecção dos direitos fundamentais. As palavras de ordem eram: solidariedade, oportunidade e dever público", p.15); e a de Reagan, com as suas ideias de desregulação, de confiança absoluta no mercado, de deixar rédea solta aos diferentes agentes para que a economia se voltasse viçosa ("uma América mais individualista, onde as famílias e as pequenas comunidades e empresas iriam florescer assim que fossem libertadas dos grilhões do Estado. As palavras de ordem eram: auto-suficiência e Governo mínimo", p.15).
3.Enquanto duraram – cada uma destas visões – influenciaram, completamente, o campo partidário contrário àquele da origem das mesmas. Pelo que, pois, as visões, ou ideologias de largo espectro, no fundo, a conformação de uma cultura, a superarem, mesmo, a dimensão partidária. Se Roosevelt proveio dos democratas, observa-se que mesmo um republicano como Richard Nixon "criou uma vasta rede de subsídios estaduais e locais, com vista à implementação de programas sociais, fundou um organismo imponente para regulamentar a saúde e segurança dos trabalhadores. Procurou ainda estabelecer um rendimento mínimo garantido para todas as famílias trabalhadoras e, além disso, propôs um plano de saúde nacional que teria oferecido um seguro governamental para famílias de baixos rendimentos, exigindo às entidades patronais que dessem um seguro a todos os trabalhadores e definindo normas para os seguros privados"(p.33, nota de rodapé I). Do mesmo modo, nos anos 90, quando o hiper-individualismo já estava aí, a desregulação imposta, a ideia de Estado Mínimo havia feito o seu caminho, alguém como Bill Clinton, ainda que membro do Partido Democrata (de Roosevelt, do New Deal e da Great Society) não deixou de desregular – histórico fim da lei de separação da banca comercial da especulativa – e, de alguma forma, hostilizando também alguns tipos de benefícios sociais (estatais).
O que isto significará, ainda, é que visões de tipo essencialista – quando temos ideologias de sentido contrário a prevalecerem durante 50 anos, num caso, e, pelo menos 30, noutro – sobre o que os americanos são politicamente devem, claramente, ser relativizadas.
4.Por outro lado, não basta aos líderes captarem, sintonizarem ou formularem ("uma dispensação não se alicerça num conjunto de princípios e argumentos; alicerça-se em sentimentos e percepções que conferem força psicológica aos princípios e argumentos", p.26), ou, eventualmente, ajudarem a forjar o espírito de um tempo. São necessários esses líderes, mas não são suficientes. Explicar Roosevelt e o New Deal é procurar perceber, do ponto de vista histórico e económico (com alguma ironia, Mark Lilla escreve que "nisto Marx tinha razão: as condições materiais ajudam a determinar quais as ideias políticas que encontram eco num dado momento", p.27), o que se passa quando há uma Grande Depressão económica e social, com níveis gigantescos de desemprego e indigência, em que, portanto, "o debate sobre a responsabilidade fiscal e o equilíbrio orçamental dissipou-se" (p.26), e o Estado assume o comando, com obrigações e finalidades mais amplas a cumprir. A dispensação de Roosevelt "foi adoptada na década de 1930 porque dava resposta ao fracasso evidente dos conservadores em usarem o Governo para fazer frente aos dois grandes desafios desses anos: o colapso económico e a propagação do fascismo" (p.33). Na realidade, o pós-Guerra redundou em três décadas de grande sucesso económico e, dir-se-ia, que a ideologia prevalecente nesse período, em parte, foi vítima do seu próprio sucesso (um argumento que Tony Judt usa a propósito da social-democracia também na Europa: foi tão bem sucedida que, a certa altura, as pessoas julgaram que já podiam abdicar das "amarras" inerentes a esta política; sendo que por "amarras", entre outras coisas, podemos pensar em impostos consideráveis e uma política redistributiva). Mas não apenas. Veremos, de seguida, em que medida é que a passagem do paradigma rooseveltiano a um reaganiano se deveu ao seu próprio sucesso, ou às suas fragilidades, ou, na verdade, a ambas as coisas.
5.O contexto histórico e político de sucesso que acabou por se voltar contra as próprias políticas (democratas) que lhe estavam associadas, foi o seguinte: "o aumento dos salários e as políticas públicas que encorajavam a compra de casa e de carro desencadearam o rápido crescimento dos subúrbios em redor das grandes cidades e, posteriormente, uma deslocação lenta da população para as regiões sul e oeste. À medida que saíam dos velhos bairros onde viviam com a família e os amigos – abandonando também o contacto com os problemas sociais de qualquer grande cidade -, as pessoas deram por si no que se afigurava território virgem, rodeadas por gente com quem não possuíam qualquer vínculo e que também parecia estar apenas de passagem. (…) Vejamos a família. Com o aparecimento dos novos eletrodomésticos e do automóvel, as trabalhadoras domésticas dos anos 1950 ficaram mais independentes, libertas de algumas tarefas fatigantes, mas também mais isoladas e afastadas de oportunidades de trabalho (…) A pílula, o divórcio sem culpa e a legalização do aborto permitiram que marido e mulher conquistassem independência sexual um do outro. Como seria de esperar, as taxas de divórcio subiram, e os casamentos passaram a ser mais tardios ou inexistentes. Também como previsto, aumentou o número de mães a braços com a tarefa árdua de criar os filhos sozinhas. Nas décadas que se seguiram, a vida mudou também para as crianças. Passaram a ter menos irmãos, e habituaram-se a passar muito tempo sozinhas (…) As comunidades em que viviam eram parcial ou completamente fechadas, e nunca aprenderam a passear sozinhas e a conhecer outras crianças espontaneamente (…) Estas crianças foram para a universidade, que muitas vezes se situava a grande distância, e, depois de se licenciarem, ingressaram na nova classe urbana independente, na casa dos 20 ou 30 anos, sem responsabilidades com ninguém além de si próprios. Visitavam os pais e os irmãos de fugida nas férias; durante o resto do ano, mantinham contacto pela internet. Até ao dia em que casaram, foram viver para os subúrbios, e o ciclo recomeçou." (p.30). Com este caldo de cultura, pois, "tornámo-nos numa sociedade burguesa hiperindividualista, tanto materialmente como no que respeita aos dogmas culturais". Eis um ponto de centralidade inequívoca e muito bem captado pelo académico de esquerda: "quase todas as ideias, crenças ou sentimentos que outrora reprimiram a eterna exigência de autonomia individual se evaporaram. Escolha pessoal. Direitos individuais. Definição própria. Preferimos estas palavras como se fossem votos de casamento. Ouvimo-las na escola, na televisão, em salas de reunião abafadas de Wall Street, em parques infantis soalheiros de Sillicon Valley, na Igreja [quase sempre protestante, nos EUA] – até as ouvimos na cama. Ouvimo-las tão frequentemente, que se tornou difícil pensar ou falar sobre qualquer assunto sem ser nestes termos egocêntricos" (pp.30-31).
6.Em realidade, reconhece o ensaísta, as pessoas deixaram de compreender porque têm obrigações para com as outras. O dever desapareceu do vocabulário e do mapa. Não conseguimos explicar-lhes (isso, essa obrigação). Este nós é de democratas, poderia ser um nós de políticos, mas faz sentido a ausência de universalidade, neste âmbito, porque ao político que pretende despolitizar – mesmo que sob a forma mais demagógica que consiste em dizer que o Governo/Estado é intrinsecamente mau, mas querer ocupá-lo em permanência -, ao político que diz dedicai-vos ao comércio que a vida florescerá e não vos preocupeis com a política, ao político que subscreve a ideia de que não há sociedade, só há indivíduos (como disse Thatcher, na esteira de Nozick) não interessará a promoção destas obrigações de uns para com os outros – que, para si, de facto, não existem.
Porque têm os mais prósperos "um dever permanente para com os desfavorecidos?"(p.99). De que armas dispõem, no arsenal de argumentos, os que assim crêem? "Isto é algo que a Bíblia costuma fazer [ensinar esta verdade], mas esse tempo passou. Apesar dos EUA ainda serem uma nação que cumpre os ritos, o evangelho que agora se apregoa, em particular nos círculos evangélicos, foi infectado com o mesmo individualismo, egoísmo e superficialidade que contamina outros sectores da vida norte-americana. São muitas as pessoas que ainda pagam dízimo às igrejas a que pertencem; mas ao mesmo tempo rejeitam inequivocamente a ideia de que os impostos constituem uma espécie de dízimo democrático que serve para ajudar os cidadãos seus semelhantes. Tal como a gorjeta, a caridade é algo que hoje em dia fica ao critério do cliente" (p.99). Desde logo, pois, alguém que se situa na esquerda do espectro político é capaz de reconhecer a força mobilizadora, os recursos espirituais, imateriais decisivos – e porventura, sem paralelo – que a fé – nomeadamente, a cristã – poderia conter para mobilizar as pessoas/cidadãos na ajuda ao seu próximo mais desfavorecido. No pensamento de Mark Lilla, tal acquis é, ainda, denunciado na seguinte formulação: "sem uma fé caritativa capaz de motivar, a única forma de instilar um sentido do dever é estabelecendo uma certa identificação entre privilegiados e desfavorecidos"(p.99). Esta identificação, a única outra forma, para lá de uma "fé caritativa" de proceder a essa identificação é convocar, claramente, o conceito de cidadania – de sermos e nos vermos todos iguais como cidadãos, no mesmo barco, e estarmos ligados por esse vínculo na cidade.
Se a perda cultural, do "nós" em favor do "eu", se a perda do sentido do "dever" e o hiperindividualismo são bem denunciados por Lilla, já a solução do apelo à – ao uso do vocábulo – "cidadania" – mais reclamada, mais exigida na linguagem progressista – não parece antídoto suficiente para as maleitas apontadas.
Para que haja uma verdadeira democracia – quer dizer, plenamente social, impedindo, assim, até derivas totalitárias de pendor socializante -, escrevia Jacques Maritain a meio do século XX, há uma seiva essencial fora da qual é bem difícil de aquela medrar. A mesma pergunta de Bockenforde, de se o Estado não consome pressupostos culturais não autóctones do liberalismo (até que ponto a neutralidade é possível?) e as revisões implicaram que a religação primeira e última pudesse, afinal, motivar e ser dada a respectiva indicação aos concidadãos.
7.A alternativa a esse dever para com os mais desfavorecidos – Lilla não recorre ao excurso rawlsiano de Uma Teoria da Justiça, nascemos com talentos que não merecemos, em famílias e contextos psicossociais que nos permitiram desenvolvê-los e aceder a lugares melhores remunerados, pelo que faz sentido, pelos impostos, financiarmos, nomeadamente a educação dos que não tiveram as mesmas possibilidades, ou não emergiram com a mesma sorte da lotaria natural (genética), social e cultural, mas poderia e deveria tê-lo feito no contraponto à visão contrária que é de seguida convocada – é o outro entendimento, o individualismo feito teoria política, sagaz e sofisticadamente desenvolvido por Robert Nozick em Estado, Anarquia e Utopia: "Nenhuma entidade social é detentora de um bem que justifique qualquer sacrifício em proveito próprio desse bem. Só existem pessoas individuais, pessoas individuais diferentes, com as suas vidas individuais. Usar uma destas pessoas para benefício das outras significa usar essa pessoa para favorecer as outras. Nada mais…Discutir um bem social genérico serve apenas para encobrir este facto" (p.31). Ou seja, e em termos kantianos, se a pessoa é fim em si mesma, e nunca meio, então, ainda que para melhorar a existência de outra pessoa, ainda que com boa vontade para melhorar a vida de alguém mais desfavorecido, eu estou a usar "uma pessoa próspera" (nomeadamente) como meio. Logo, não aceitável. Talvez as duas grandes dispensações filosóficas – no caso da de Rawls, com a enunciação/conceptualização do princípio da diferença, a secularização da ideia de "opção preferencial pelos mais pobres", da Igreja Católica, como notará, em Ética económica e social, Philippe Von Parijs.
8. Num certo sentido, e em boa medida, o livro de Mark Lilla, vai bem para lá do estrito enquadramento norte-americano e revê a matéria dada do que foi a evolução política ocidental nas últimas décadas: a) o fim das "grandes narrativas" (aqui, a época de interregno, após as dispensações de Roosevelt e Reagan; a crise do pensamento, a ausência de visão par ao futuro); b) os avanços do Estado Social no pós-guerra, a ideia de protecção e seguro social para os azares da vida a emergir até aos anos 70 (a era de Roosevelt e Lyndon Johnson, à escala americana), mas o sucesso da política a dar lugar a uma sociedade hiper-individualista, a reclamar sucessivos direitos individuais e a erodir um chão comum, a partilha de um destino na cidade; c) a ideia de liberdade dos antigos – participar nas decisões da cidade – a ser substituída por uma nova ideia de liberdade para os modernos – não me incomodem, deixem-me em paz, não quero saber da política, quero saber do meu trabalho, da família e dos amigos, nada mais; d) uma sociedade cristã desafiada pela concentração das megalópoles (seria uma realidade ribeirinha?); e) Rawls e Nozick, o dever de ajudar os mais necessitados, ou a libertação de todas as amarras para que a mão invisível faça a distribuição, sem condicionamentos de nenhuma agência central ("só existem pessoas individuais" – não existe a sociedade, eis o lema libertário); f) em que fontes haurir na motivação para essa ajuda aos desvalidos – o repensar da importância da fé, neste contexto, a cidadania de novo trazida ao vocabulário.
9. A soma das partes é menor do que o todo. Mark Lilla percorre o site do Partido Democrata e, enquanto no site homólogo dos Republicanos encontra um documento intitulado «Princípios da Renovação Americana», vê, neste, "uma lista de hiperligações encabeçada pelo título 'Pessoas'. Cada hiperligação conduz a uma página feita à medida e ao gosto de grupos e identidades separadas: mulheres, hispânicos, 'norte-americanos étnicos', comunidade LGBT, norte-americanos nativos, afro-americanos, asiáticos-americanos e habitantes das ilhas do Pacífico…Estão lá 17 grupos distintos, para os quais existem 17 mensagens distintas. Dir-se-ia que, por um qualquer erro, fomos parar ao site do Governo libanês"(p.17). Este aspecto, sim, assinalar-se-á como mais específico do progressismo norte-americano (não passível de uma fácil transposição para os movimentos progressistas continentais em muitos aspectos), de um progressismo identitário (no seio do movimento progressista, e dentro do qual se vê, por este ensaio, que muitos, ainda assim, criticam na declinação identitária encontrada; eis uma parte de um discurso de Bernie Sanders convocada pelo autor: "um dos conflitos a que vamos assistir no Partido Democrata tem que ver com a questão de irmos ou não para além da política identitária. Acho que é um avanço para os EUA se tivermos um director ou CEO afro-americano à frente de uma grande empresa. Mas, sabem, se essa pessoa vai expedir postos de trabalho para fora deste país e explorar os seus trabalhadores, não importa peva se ela é negra ou branca ou latina…Precisamos de candidatos – negros e brancos, e latinos, e gays, e do sexo masculino. Precisamos disso tudo. Mas precisamos que todos esses candidatos e pessoas em cargos públicos tenham a coragem de se opor à oligarquia. É essa a luta dos dias que correm" (nota de rodapé I, p.98). A luta sobre qual deve ser o foco do Partido Democrata assim em cima da mesa, o debate estratégico lançado no interior do partido. A posição de Lilla – as questões sociais a deverem primar sobre as identitárias – é muito clara e passa por considerar que o que falta aos Democratas é colocarem a questão e responderem-lhe acerca de quem nós [americanos] somos (?), o que é que todos partilhamos (?). A política identitária coloca o acento na diferença, na fractura, no isolamento (de indivíduos e pequenos grupos); o Professor de Humanidades pede que se deixem os estilhaços, a política fracturante, os nichos como alvo, a profusão de mensagens, a prioridade à identidade. A política identitária reforçou o individualismo de Reagan, não o contestou (p.17) – noutros termos, ainda: "a identidade não é o futuro da esquerda, não é uma força hostil ao neoliberalismo. A identidade é a doutrina de Reagan adaptada à medida dos esquerdistas" (p.78)
Ainda que às especificidades norte-americanas este aspecto diga respeito, vale a pena ainda indagá-lo no que concerne a perspectivas políticas, noutras latitudes, entre as quais a portuguesa, porque não?, que se apresentam como progressistas e que fazem, justamente, da fractura um traço decisivo. Se concluirmos com Lilla, essa fractura acentua aspectos do "eu interior", despolitiza, mina a ideia de "comum" – seria interessante perceber isso em muitos debates nossos contemporâneos quando se arremete contra pretensas "ditaduras" que a lei acomodaria, sempre que se erige – e exige – a autonomia da vontade como único e absoluto critério. Enquanto se fizer esse combate cultural de aprofundamento de um individualismo que marca o tempo com o ferro, dificilmente se estará, com efeito, em condições de entrar, depois e em sentido inverso deste, na luta por "socializar" aspectos que se pretendem fundamentais ao nível económico-social (a seguir, nessas discussões, não mudamos de horizonte, o mundo continua a ser o mesmo, as concepções antropológicas predominantes também, e de aí se tiram as consequências que se conhecem, de recusar a obrigação com os outros; o entendimento do humano enquanto "mónada” repercute-se em todas as dimensões a que o debate político chegue).
10 – Apesar de ter obtido quatro dos últimos 10 mandatos para a Presidência, o Partido Democrata não conseguiu moldar a opinião pública norte-americana. Esta continua a pender para a direita. O Partido Republicano continua a conseguir ser representado, num imaginário bastante partilhado, como o partido típico do americano comum, face a democratas não raro vistos como uma elite cultural que não sente, nem realiza o que é uma vida do simples mortal em terras do Tio Sam. Ou seja, para os Democratas conquistar a Presidência não basta. Ou o Partido Democrata vence eleições locais, consegue nomear juízes, leva vantagem nos órgãos legislativos, ou mudanças efectivas que pretende nunca chegarão a ocorrer (p.41). Mais: há uma grande tradição de empenho democrata em movimentos sociais, estes foram/são muito importantes como impulsionadores de mudanças com que se sonha, mas sem uma institucionalização (p.88), sem uma força partidária-burocrática para concretizar as alterações, tais movimentos não chegam.
11 – Um dos pontos que Mark Lilla faz notar acerca da política identitária – e a identidade só entrou no discurso político na década de 60 do séc.XX – é este: como a soma de discursos, a ausência de foco nos problemas sociais faz perder os democratas, até aqueles que são, neste momento, os destinatários dessa mesma política identitária – os vários segmentos populacionais a que se dirige – ficam a perder (pela ausência de eficácia em alcançar o poder, por parte dos democratas, em virtude desta política identitária). E isto porque sem os mayor, sem o conforto de juízes mais próximos da visão democrata, sem um conjunto de agentes/burocracia que não esteja empenhada em boicotar, mesmo adquiridos legais ou constitucionais – em prol de cada minoria – serão, como são em muitos casos no terreno, "letra morta". Evidentemente, este raciocínio não deixará de expor o académico à crítica de em nome de uma suposta protecção de que cada um dos grupos alvo da política identitária, deixar cair as reivindicações, ou o reconhecimento destas. Ou, se se preferir, para que as pretensões de tais grupos alcancem vencimento, seria preciso que estes se escondessem. Sendo que esta leitura de Lilla, exposta pouco depois da derrota democrata de 2016, não pode integrar os acontecimentos decorridos desde então e, em particular, a articulação da luta contra o racismo, com o movimento Black Lives Matter a ser compreendido por muitos como revigorante das forças à esquerda.
12 – A política identitária fez esquecer ou ignorar grupos sociais que haviam sido determinantes nas vitórias políticas democratas (sindicatos de operários, funcionários públicos). Arrumou com o "nós" para os confins. Fez sermões – e por muito que, na ordem ideal, os democratas pudessem sonhar outros americanos, para conquistar as suas mentes, as dos americanos reais, a dos americanos que existem, a esperança, mais do que a acidez crítica tem que estar presente; a mobilização do que têm de bom, mais do que o desdenhar do que não possuem, determinante -, mais do que procurou persuadir diferentes para causas que estes, à partida, não estariam tão inclinados a apoiar. Trata-se, na perspectiva de Lilla, de deixar o solipsismo, de avançar agora que com Trump os progressistas americanos "não têm adversário ideológico". E cura-se de fazê-lo com base na educação, na promoção de uma ideia de país partilhado, de cidadania, de pertença ao mesmo, de destino comum. Passagem do liberalismo identitário a um liberalismo cívico. Ainda que, diríamos, essa ideia de ausência de adversário ideológico, mesmo que se perceba o que o autor quer dizer relativamente a um corpo (político) bastante estranho como Trump seja não pouco controvertida – as políticas de Trump não contêm, objectivamente, uma ideologia?, mesmo que ele, de facto, não tenha construído qualquer visão sólida, fundamentada do mundo – não signifique que a cultura que permanece – a tal "hiper-individualista" – não faça soprar o vento para longe das condições que mais facilmente permitiriam a implementação de políticas tipicamente democratas. E que a solução proposta pelo autor para a reforma do progressismo americano seja tão essencial quanto um tanto genérica: uma educação para a vida comum, para a ideia de que somos iguais na cidade, para a cidadania. Que esta seja a panaceia para que os americanos prósperos sintam uma motivação bastante para ajudar os seus concidadãos menos afortunados eis o que me parece mais da ordem do desejo – e com décadas pela frente – do que algo que se veja relativamente simples de implementar.