A Exposição Invisível. Aqui, a arte não é para se ver

A Exposição Invisível. Aqui, a arte não é para se ver


É quase provocatória a ideia de uma exposição em que não há nada para se ver. Admite o próprio curador, Delfim Sardo, que numa coletiva de obras sonoras percorre, desde os modernistas, a arte do século XX (e XXI).


De Parsifal, a ópera em três atos com libreto de Richard Wagner pela primeira vez apresentada em Bayreuth, na Alemanha, em julho de 1882, conta-se uma história, a história que nos conta hoje Delfim Sardo: quando o encenador lhe pediu que alongasse um trecho demasiado curto para permitir uma mudança de cenário, Wagner recusou-se. Ter-lhe-á dito que não compunha música a metro. Terá sido então que Engelbert Humperdinck, seu discípulo e no caso concreto assistente, se propôs a encontrar uma solução para o problema e a partir do trecho de Wagner compôs um novo, uma variação de nove compassos que, podendo ser repetida, terminaria sempre no último compasso do trecho que Wagner se recusara a alongar. “Com as técnicas de palco mais modernas deixou de ser necessário utilizar o trecho de Humperdinck e portanto o trecho 90 ficou perdido numa biblioteca”, explica o curador d’ A Exposição Invisível, acabada de inaugurar na Culturgest, em Lisboa. E começamos a aproximar-nos da razão pela qual Wagner é chamado aqui. Até porque, embora possa parecer, não é Parsifal que se ouve já como som de fundo.

Mais de 100 anos depois dessa estreia, já no início da década de 90 do século XX, o artista canadiano Rodney Graham foi à procura desse trecho não para voltar a apresentá-lo como Humperdinck o pensou, mas para também ele o modificar. E modificou. Modificou-o de forma a que, “utilizando uma sucessão de números primos, haja um desacerto na composição que nunca mais vai acertar no compasso 89”. Mas se um “nunca mais” pode ser quase sempre relativo, também aqui. Se tocado ininterruptamente, há um dia em que acerta. “Segundo contas feitas por um matemático que trabalhou com Graham, se tocar ininterruptamente durante 39 mil milhões de anos, [a composição] volta ao compasso de Wagner”. 39 mil milhões de anos e aqui estamos: a ouvir o que seria o trecho “tal qual como seria ouvido daqui a 39 mil milhões de anos se tocado ininterruptamente desde o momento inaugural da peça de Wagner no século XIX em Bayreuth”.

39 milhões de anos. Demasiado tempo, mas tempos menos longínquos ainda assim do que aqueles para os quais o japonês On Kawara nos empurra no projeto One Million Years, que o curador recuperou para esta exposição que teve a sua primeira versão já no final de 2006 no Museu de Arte Contemporânea de Vigo e que chega agora pela primeira vez a Portugal depois de ter passado também por Telavive. Para One Million Years, o artista cujo corpo de trabalho está iminentemente marcado pela questão do tempo (a prática do envio de telegramas com a frase ‘I am still alive’ que manteve durante anos é apenas um dos exemplos), On Kawara produziu aquilo a que se pode chamar uma compilação: uma compilação de um milhão de anos em direção ao passado, mais um milhão de anos para o futuro, que editou num livro. Para esse livro organizava leituras nos locais por onde passava. Ouvimos na Culturgest uma gravação da leitura feita em Vigo, em inglês, como sucedia sempre: estamos no ano de 31.582 depois de Cristo. Não tão longe daquele tempo para o qual nos havia atirado Rodney Graham afinal. Quanto teríamos de esperar para lá chegar também nesta sala?

“A poética deste trabalho tem a ver com ele ser um relógio, um metrónomo, que nos liga no presente à passagem do tempo. Quando fizemos a exposição em Espanha o On Kawara ainda estava vivo, portanto pudemos editar estes CDs com as instruções dele. Os CDs que dizem respeito ao futuro são dedicados ao ‘último que existir’ e os CDs que têm a gravação do passado são dedicados a todos aqueles que já existiram”, explica Delfim Sardo sobre os livros e CDs expostos numa vitrine.

Não haverá para lá deles muito mais que ver em A Exposição Invisível, exposição que se auto explica logo no título. Nada para ver além de colunas, auscultadores, cadeiras, com sorte poltronas, cortinas, paredes brancas. Como esta sala retangular em que se é interpelado por Tribu, obra de 1978 de Julião Sarmento que poderá ser descrita nas palavras do próprio artista, que a definia como uma obra que nunca existiu. “Nem existirá”, acrescenta o curador. E começa assim o artista, presente pela sua voz: ‘Tribu, description of process. Preparation of premisses: considering the interior of the gallery is a rectangular space which will be divided into two by a wall build out from the middle of the longest wall and parallel to the shortest wall, the result will be the two rectangular similar rooms necessary for the installation”. Depressa estaremos dentro de uma sala verde com duas fotografias de uma floresta “vagamente tropical” com um livro sobre uma pequena mesa preta ao centro: Tristes Tropiques, de Claude Lévi-Strauss. “Ouvimos a descrição para uma coisa que não vemos, configuramo-la na nossa imaginação e produzimos nós alguma coisa que só existe como especulação própria e como descrição”, explica Delfim Sardo para quem Tribu “é sobre esse intervalo entre a palavra, a descrição e o espaço, sabendo que este espaço não corresponde ao espaço que ele está a descrever”.

A Exposição Invisível não deixa de estar classificada como uma exposição de artes visuais da Culturgest. São de facto da autoria de artistas visuais as obras que reúne. Recuando tanto quanto até ao período modernista, através de Raoul Hausmann, Luigi Russolo, Marinetti ou Kurt Schwitters, e até aos dias de hoje, numa viagem pela arte sonora que se inicia logo na segunda década do século XX. “O século do som, século do som gravado, século em que temos pela primeira vez a possibilidade de aceder a uma memória sonora que de outra maneira se teria diluído no espaço”, nota o curador numa conversa (disponível online) com o programador de artes visuais da Culturgest, Bruno Marchand, a propósito desta exposição.